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Exposição ocupacional ao difluobenzuron: avaliação de metemoglobina após a jornada de trabalho dos guardas de endemias atuantes na região do grande Rio de Janeiro

Exposição ocupacional ao difluobenzuron: avaliação de metemoglobina após a jornada de trabalho dos guardas de endemias atuantes na região do grande Rio de Janeiro

Autores:

Cristiane Barata-Silva,
Tatyane Pereira dos Santos,
Adherlene Vieira Gouvêa,
Ariane Leites Larentis,
Josino Costa Moreira,
Paula de Novaes Sarcinelli

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.22 no.2 Rio de Janeiro abr./jun. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462X201400020006

ABSTRACT

Currently, the substance used to combat the dengue vector is diflubenzuron, a larvicide which produces methemoglobin (MHb) in humans. During his working process, applicators may be exposed to this substance at different levels, which depend on the care they adopt in handling and application. Knowing the profile of workers is important to characterize the population and assess the risks they face. The determination of the percentage of MHb in the blood allows to establish a relationship with exposure to diflubenzuron, being used as an indicator of effect. The objective of this study was to evaluate the extent to which these factors can affect the exposure of active endemic guards in two municipalities of the State of Rio de Janeiro contributed to a better understanding of the issues arising from this work process. It was observed that most workers did not use Personal Protective Equipment (PPE) and worked in unsafe working conditions and without proper training. Was observed a large difference in knowledge of the risks arising from the work they perform in the two counties, showing weaknesses in the basic training of these professionals. There was a reduction of about 0.05% of the MHb concentration after exposure to diflubenzuron, with an inverse correlation between this indicator variable effect with smoking (R= -0.742; p=0.035). Since MHb can be formed after exposure to various chemicals and considering the logistical difficulties in implementing this analysis, studies on new more sensitive and selective biomarkers are needed.

Key words: community health workers; diflubenzuron; methemoglobin

INTRODUÇÃO

Atualmente, no Brasil, o diflubenzuron tem sido amplamente utilizado em campanhas de saúde pública para o controle de vetores de doença, principalmente do mosquito transmissor do vírus da dengue, o Aedes aegypti. Essa substância química veio a ser utilizada em substituição do larvicida Temefós e do adulticida Cipermetrina, que possuem uma toxicidade maior em exposições crônicas para os trabalhadores que os manipulavam, quando comparados ao diflubenzuron1. O diflubenzuron é utilizado sob a forma de pó na concentração de 25% e aplicado em containers ou pequenos recipientes residenciais que armazenam água2 , 3.

Para a população em geral, os resíduos de diflubenzuron presentes na água, alimentos e mesmo na residência após a aplicação não apresentam risco significativo (classificação toxicológica IV)4. Porém, para os trabalhadores que manipulam rotineiramente o diflubenzuron durante suas jornadas de trabalho, os cenários são diferentes devido ao processo de aplicação que envolve o fracionamento do produto concentrado, sua diluição, a aplicação do produto diluído, sendo que a forma em spray é a mais perigosa, e a convivência com os depósitos (locais onde não há muita circulação de ar5) que armazenam tal substância.

Dessa forma, o risco de contaminação é elevado e diferenciado, devendo assim ser avaliado de forma específica e rigorosa5, pois a atual visão da saúde do trabalhador objetiva a preservação do indivíduo, com a manutenção do seu estado físico e mental íntegro, para que sua vida não seja afetada negativamente devido à função exercida durante sua jornada de trabalho.

Pouco se conhece sobre a toxicocinética e os potenciais efeitos da exposição humana ao diflubenzuron. O principal efeito tóxico do diflubenzuron em animais de experimentação é a formação de sulfemoglobina e metemoglobina (MHb), que são utilizados como indicativos de alteração da homeostasia do organismo em estudo4.

A MHb é um pigmento da hemoglobina resultante da ação de substâncias que induzem à oxidação do ferro da hemoglobina, do estado ferroso (Fe+2) para o férrico (Fe+3). Sob esta forma, o transporte gasoso no sangue fica comprometido, pois a MHb não consegue se ligar ao oxigênio, ao gás carbônico ou ao monóxido de carbono devido ao estado de oxidação +3 do ferro. Além disso, há a formação de um subproduto, o superóxido (O2 .), que é uma espécie reativa de oxigênio, tendo grande importância em diversos processos fisiopatológicos6.

Estudos sugerem que a formação de MHb ocorre devido à presença do metabólito e contaminante p-cloroanilina (PCA), principalmente quando a exposição ocorre pelas vias inalatória e oral4. Dessa forma, este pigmento sanguíneo (MHb) pode ser utilizado como um biomarcador de efeito, isto é, ele age como um indicador biológico que permite inferir uma correlação entre a intensidade da exposição e/ou o efeito biológico do diflubenzuron sobre o ser humano7. Entretanto, a formação de MHb não é uma propriedade exclusiva do diflubenzuron. Outras substâncias químicas, dentre as quais os nitratos, os nitritos, as sulfonamidas, dapsona e os anestésicos locais, também produzem MHb, de modo que tal bioindicador deve ser considerado de baixa seletividade. Dentre os hábitos cotidianos é descrito na literatura que o fumo, além de contribuir para a formação de MHb, também potencializa a ação desses agentes metemoglobinizantes8.

Adicionalmente, o diflubenzuron pode conter impurezas que são muito mais problemáticas para a saúde humana do que a própria substância. Uma prova disso foi que, em 2012, a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (AESA), em sua reunião de especialistas para a revisão das recomendações sobre o uso do diflubenzuron, concluiu que a exposição ao PCA presente como impureza do diflubenzuron deve ser considerada a priori como preocupante, uma vez que limites para um agente genotóxico e carcinogênico não podem ser estabelecidos9. É importante ressaltar que esse alerta foi feito para a presença de resíduos em alimentos, que constitui uma situação muito menos agressiva do que a exposição ocupacional.

Nesse contexto, o objetivo do presente trabalho foi avaliar a efetividade do uso da MHb como indicador da exposição ao diflubenzuron por meio da determinação de sua concentração no sangue de guardas de endemias atuantes na Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro.

METODOLOGIA

O presente estudo faz parte do projeto "Doenças neurológicas nos trabalhadores expostos cronicamente a agrotóxicos no estado do Rio de Janeiro: o estudo dos guardas de endemias", que está sendo realizado no Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH) e obteve aprovação pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) (Parecer nº 333/11, CAAE: 0351.0.031.000-1) da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).

Os indivíduos aptos a participar do estudo foram aqueles que atenderam ao critério de elegibilidade de estar em contato com o diflubenzuron durante a execução das suas atividades ocupacionais, independentemente da via de introdução do mesmo.

Foram considerados inaptos para a participação no estudo os indivíduos que não tiveram contato com o diflubenzuron e os trabalhadores que no momento da entrevista não tiveram condições de responder ao questionário aplicado. Além desses, também foram excluídos os indivíduos com doenças hematológicas que podiam comprometer a quantificação e a interpretação do indicador de efeito e os indivíduos que estavam fazendo uso de medicamentos sabidamente metemoglobinizantes.

A população selecionada para o estudo foi oriunda de um banco de prontuários de pacientes atendidos no Ambulatório do CESTEH, de forma espontânea. Cerca de 400 trabalhadores já passaram por esse atendimento iniciado há dois anos 13. Dentre este quantitativo, um grupo menor foi recrutado segundo a localidade de moradia e foi obtido um conjunto integrante de 49 trabalhadores. Ao final, teve-se um grupo amostral de conveniência de 22 trabalhadores, sendo o presente trabalho tratado como um estudo piloto para aplicar a metodologia adaptada, para delinear o perfil de guardas de endemias atuantes na Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro e observar o real funcionamento da logística de coleta e análise no cotidiano de um laboratório.

No momento da consulta ocorrida no primeiro contato, o trabalhador respondeu a um questionário semiestruturado. Este tinha por objetivo reunir informações essenciais para caracterizar a exposição e obter associações com o mínimo de influência das variáveis de confundimento, promover a definição do perfil de utilização de Equipamento de Proteção Individual (EPI) durante a jornada de trabalho, obter com qualidade sintomas relevantes para ser possível uma futura associação exposição-desfecho e, por fim, caracterizar o risco a que esses trabalhadores estão submetidos pela atividade laboral.

No segundo contato, o trabalhador respondeu a outro questionário semiestruturado mais específico, com informações essenciais para subsidiar a completa e correta análise dos resultados da MHb, como, por exemplo, alimentação e uso de medicamentos. Com a obtenção dessas informações uma alíquota de aproximadamente 4 mL de sangue foi coletada e mantida sob refrigeração em um recipiente hermeticamente fechado contendo gelo, para posterior análise laboratorial. A coleta ocorreu em dois momentos: antes da exposição, isto é, pela manhã antes do início das atividades diárias, a fim de estabelecer o nível basal de MHb de cada indivíduo, e a segunda realizada no mesmo dia, após a jornada de trabalho (pós-exposição), para a verificação se houve ou não alteração desses níveis. Assim, foi possível testar a hipótese de associação entre exposição e desfecho e afastar possíveis efeitos das variáveis de confundimento nessa associação, como a alteração do nível basal devido ao contato com substâncias metemoglobinizantes.

Para a análise de MHb, foi empregada uma adaptação da metodologia primeiramente descrita por Evelyn-Malloy (1938)10, que foi posteriormente modificada por Meunier (1972) e atualizada por Carrazza (1998)11. O princípio se baseia na determinação da concentração de MHb no sangue venoso por meio da espectrofotometria na região do visível (λmáx=630 nm). Para obter a real alteração do indicador de efeito diante da exposição, foi realizado um cálculo no qual o valor percentual da MHb encontrado na amostra coletada antes a exposição foi subtraído do valor encontrado da amostra adquirida após a exposição (%MHbDepois-%MHbAntes). Tal cálculo se fez necessário, uma vez que o controle adotado para o estabelecimento da exposição foi a taxa basal do trabalhador no período anterior à realização de suas atividades ocupacionais. Detalhes da metodologia podem ser encontrados em Silva12. A análise de MHb foi realizada no Setor de Agrotóxicos do Laboratório de Toxicologia do CESTEH da ENSP da FIOCRUZ.

Após a análise descritiva das variáveis, foi realizado teste estatístico de Shapiro-Wilk, no qual foi possível observar que os resultados possuíam distribuição normal. Testes de correlação de Pearson foram realizados entre a variável percentual de MHb e outras variáveis que possivelmente teriam efeito sobre a oscilação desses níveis, como a frequência e duração da exposição, consumo de álcool e fumo, uso de EPI e consumo de alimentos e remédios.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Perfil ocupacional dos trabalhadores

Quanto ao processo de trabalho, os guardas de endemias relataram que uma determinada quantidade do larvicida em pó é recebida por eles no "ponto de apoio" e posteriormente os aplicadores realizam, manualmente, o fracionamento adequado para a preparação de uma solução de uso geral que é armazenada em frascos plásticos, como, por exemplo, garrafas de refrigerantes recicláveis ou de adoçante líquidos. Estes são levados aos locais de aplicação e a quantidade adequada da solução é aplicada. Essa quantidade depende proporcionalmente do volume de água presente no reservatório ou no espaço possível de proliferação do Aedes aegypti. Ou seja, esse procedimento favorece o contato do aplicador com o larvicida no recebimento da substância ativa, no seu fracionamento, no preparo da solução de uso e em sua aplicação.

O conhecimento do tempo de serviço exercido na função foi questionado, pois a gravidade da exposição crônica está diretamente relacionada com o tempo e a concentração da substância que o indivíduo esteve submetido durante a jornada de trabalho. Dessa forma, foi observado que a faixa predominante de tempo de serviço foi de 11 a 20 anos (55%), seguida da faixa 21 a 30 anos (27%). Esse resultado permite inferir que o grupo pesquisado possui uma larga carga de exposição a agentes exógenos, pois manipula de forma direta ou indireta os agrotóxicos de diferentes famílias, visto que a classe escolhida para a aplicação depende do vetor a ser combatido.

Segundo os relatos dos trabalhadores, o tempo médio de aplicação do agrotóxico no dia da análise foi de 93 minutos, sendo que tal valor se distribui entre 60 a 120 minutos. Mesmo informando a necessidade da execução do trabalho normalmente no dia da coleta sanguínea, três trabalhadores que não aplicaram o diflubenzuron no dia da análise afirmaram que manipularam tal substância e o tempo de contato não foi informado.

Quanto ao tipo de contato com os agrotóxicos durante a jornada de trabalho, 100% dos trabalhadores afirmaram que era um contato direto. Ou seja, que no decorrer da execução da função havia a necessidade de manipulação da substância, seja no processo de diluição, de fracionamento ou de aplicação.

O uso de EPI é um dos principais requisitos para a minimização da exposição individual do trabalhador no ambiente ocupacional. Sendo assim, foram introduzidas no questionário perguntas a respeito do uso e manutenção de EPIs. Como já observado em outros estudos14 , 15, o resultado encontrado foi que a maioria dos entrevistados (64%) não utilizava EPI na rotina ocupacional, seja pela ausência deste no ambiente de trabalho ou por falta de adaptação ao equipamento, como já constatado em outro estudo15. Porém, vale ressaltar que este estudo indicou que os EPIs não são utilizados por falta de fornecimento pelos gestores municipais ou que, quando fornecidos, não são adequados para o seu devido fim, como, por exemplo, uso de máscaras com filtros não trocados que acabam atenuando a exposição à qual o trabalhador está submetido. Além disso, foi observado que as condições de trabalho eram insalubres e que os trabalhadores não possuíam treinamento adequado para exercer tal função, agravando o risco ocupacional ao qual estão expostos os guardas de endemias.

Outra informação pertinente ao estudo foi o conhecimento da presença de Equipamento de Proteção Coletiva (EPC) no ambiente em que os trabalhadores exercem suas funções, como, por exemplo, exaustores e extintores de incêndio. Todos os trabalhadores relataram a ausência EPCs em seus locais de trabalho. Tal informação condiz com as condições observadas pelos entrevistadores, que reportaram que o local onde há a reunião dos trabalhadores para a distribuição das tarefas diárias e dos agrotóxicos, o chamado "ponto de apoio", possui estruturas precárias e improvisadas, podendo ser localizadas em postos de saúde, igrejas ou até mesmo em casas abandonadas apropriadas pelo governo.

Foi verificado que os trabalhadores atuantes no município de Nova Iguaçu tinham mais informações sobre os agrotóxicos utilizados, como, por exemplo, o nome das substâncias e o tipo de exame que eles são submetidos para a avaliação periódica de exposição ocupacional (Avaliação de Atividade de Colinesterase), além de solicitarem uma explicação específica sobre o porquê do exame proposto e qual a contribuição da pesquisa para a sua saúde. O oposto deste cenário foi verificado no município de Duque de Caxias, onde os trabalhadores desconheciam o nome do agrotóxico utilizado e foi observada a falta de interesse dos participantes no esclarecimento da proposta de análise oferecida pelo presente estudo. Isso demonstra que a transmissão das informações toxicológicas básicas aos aplicadores fica a critério das autoridades municipais, indicando uma grande disparidade entre elas e a falta de coordenação estadual ou federal sobre tal necessidade. Obviamente, essa carência de informação tem relação direta com os cuidados adotados e, consequentemente, com os riscos a que os trabalhadores estão expostos. Por outro lado, a falta de cuidados na manipulação dos agentes tóxicos pode afetar igualmente os moradores das casas visitadas.

Como já descrito em outros trabalhos desenvolvidos no CESTEH16, o baixo nível educacional pode agravar a exposição, devido ao desconhecimento sobre o uso adequado de tais substâncias e a forma correta de se proteger da exposição. Sendo assim, foi possível deduzir que os trabalhadores atuantes no município de Duque de Caxias estão mais susceptíveis à contaminação pelas substâncias por eles utilizadas.

Um dos quesitos importantes e com plausibilidade de ser explorado é o hábito de fumar, como já descrito na literatura, uma vez que a interação do uso com a atividade exercida promove um aumento na exposição ao agente tóxico, podendo ser explicado pelo aumento da frequência respiratória ocorrida em indivíduos fumantes17. Entretanto, neste estudo foi possível observar que o consumo de cigarro é reduzido no grupo pesquisado. É importante ressaltar que daqueles que se declararam fumantes, metade afirmou que às vezes fuma durante a execução de suas atividades e a outra metade informou que nunca pratica tal ato.

Também foi avaliado o consumo de bebida alcoólica, uma vez que esta compromete significativamente a função hepática, dependendo da frequência e quantidade de uso, e, dessa forma, a metabolização de substâncias fica comprometida, podendo aumentar ou diminuir a toxicidade do agente tóxico18. O grupo amostral pesquisado relatou majoritariamente a não ingestão de bebidas alcoólicas.

Na tentativa de construir um real cenário de exposição a que o pesquisado estava submetido em seu cotidiano, foi perguntado se havia ou não contato (e a frequência, caso houvesse) com substâncias sabidamente metemoglobinizantes, como, por exemplo, nitrato de amônio e anilina. Os trabalhadores que se recordavam desse histórico relataram que tiveram contato com diversas substâncias químicas, como graxa, cloro e produtos químicos de beleza, mas não aquelas relacionadas no questionário. Porém, até o presente momento não se tem o conhecimento que tais compostos possuem efeito direto sobre a formação de MHb, e as substâncias metemoglobinizantes, na maioria dos casos (95%), não se fazem presentes no cotidiano de cada trabalhador.

O questionário específico aplicado à população de estudo também contemplava questões relacionadas ao tipo de alimentação ingerida frequentemente e a rotina de uso de medicamentos, além de remeter a um histórico recente de realização de procedimentos cirúrgicos. A principal justificativa para a obtenção dessas informações se baseia no conhecimento de que a presença de certos conservantes alimentares (como nitrato e nitrito), certos medicamentos (como dapsona e anestésico) e certas substâncias químicas (como anilinas) induzem à formação de MHb11 , 18 , 19. Dessa forma, a ingestão direta ou indireta dessas substâncias pode influenciar os resultados obtidos na avaliação do indicador de efeito na exposição ao diflubenzuron.

Para a descrição do histórico alimentar, foi questionado qual era o alimento ingerido nas refeições com maior frequência, podendo ser selecionada mais de uma opção de resposta. Sendo assim, os alimentos relatados com maior frequência de consumo foram o arroz e o feijão (23%), seguidos da carne (20%). Tal achado corrobora o resultado do estudo promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)20, no qual o arroz representou cerca de 84% e o feijão 72% da alimentação diária de cada indivíduo.

Uma pergunta específica acerca do hábito de consumir linguiça foi necessária, visto que já é sabido que os conservantes utilizados no processo de fabricação do alimento, nitrato e nitrito, são substâncias metemoglobinizantes21 , 22. Além disso, foi avaliada a frequência de consumo e se o entrevistado tinha o conhecimento da origem da linguiça, se era de fabricação caseira ou industrializada. A maioria dos trabalhadores afirmou que consome linguiça (82%) pelo menos uma vez na semana (67%) e que a origem de fabricação do alimento é preferencialmente industrial (83%).

Determinação de metemoglobina como indicador de efeito

Nos dias em que foi realizado o estudo, os trabalhadores relataram que apenas aplicaram o agrotóxico e não realizaram a atividade de fracionamento. Dessa forma, o contato realizado com a substância foi na forma mais diluída; logo, a exposição foi menor em relação à atividade de fracionamento. Nesta última atividade, o agrotóxico encontra-se sob a forma mais concentrada e em maior quantidade, podendo gerar elevado número de partículas dispersas no ambiente, acentuando, assim, a exposição.

No processo de quantificação do percentual da MHb analisada, antes e após a exposição dos trabalhadores, esperava-se ter como achado o aumento dessa porcentagem, visto que o metabólito do diflubenzuron (PCA) é conhecidamente uma substância metemoglobinizante. Porém, a totalidade das amostras teve seus resultados entre -1,5 a 0,5% do valor inicial de MHb (Tabela 1), estando portanto dentro do limite de erro do método utilizado e bem abaixo do valor tolerado, que, de acordo com a legislação pertinente, é de 2%23.

Tabela 1 Variação do percentual de metemoglobina após a exposição ao diflubenzuron com as características de cada trabalhador dos municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu, em 2012 

Trabalhador Idade (anos) Tempo de serviço (anos) Tempo de aplicação (minutos) Fuma %MHb
1 49 17 90 Não 0,21
2 51 18 90 Sim 0,54
3 50 18 120 Não -0,50
4 46 - 90 - 0,10
5 59 16 120 Sim -0,59
6 45 16 120 Não -0,71
7 47 17 Não aplicou Não -0,23
8 45 26 90 Não -0,44
9 29 1 120 Não -1,24
10 47 22 Não aplicou Não 0,10
11 38 11 90 Não 0,04
12 43 22 Não aplicou Sim -1,07
13 26 1 60 Não -0,11
14 31 11 120 Não -0,14
15 35 11 60 Não 0,08
16 50 22 - Não -0,53
17 55 21 100 Não -0,32
18 37 18 110 Não 0,41
19 62 20 90 Não -0,03
20 47 22 90 Não -0,43
21 40 9 80 Não 0,33
22 39 12 60 Sim 0,46

Para uma melhor visualização, os resultados obtidos foram categorizados em faixas de valores em relação ao percentual de MHb. Dessa forma, foi possível observar que para a maioria dos resultados calculados (59%) não foi possível identificar variações significativas na concentração da MHb antes e depois da jornada de trabalho, como apresentado na Tabela 2. O aumento de 0,01 a 0,10% foi a segunda faixa de prevalência. Este achado confirma que, por serem uma reação de equilíbrio, as exposições brandas levam apenas a um discreto aumento no nível deste indicador de efeito24. Os resultados obtidos cuja diferença do percentual de MHb possui valores negativos podem ser atribuídos à reversão da MHb à hemoglobina dentro do período amostrado (limitação toxicocinética).

Tabela 2 Variação em faixas do percentual de metemoglobina determinado em guardas de endemias dos municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu, em 2012  

Faixas %
<0% 59
0,01-0,10% 18
0,11-0,20% 0
0,21-0,30% 5
0,31-0,40% 5
0,41-0,50% 9
0,51-0,60% 5
Total 100

1: fumantes; 2: não fumantes.

Esses resultados demonstram a necessidade de se obter um indicador mais sensível e mais seletivo a esta contaminação do que a MHb. Certamente isso deve ser um dos fatores limitantes que fazem com que o número de artigos publicados sobre a contaminação humana por esse agrotóxico e seus possíveis efeitos seja praticamente inexistente, mesmo considerando a presença de contaminantes reconhecidamente tóxicos em suas formulações.

A concordância entre os resultados obtidos antes e depois da atividade laboral pode ser justificada pelo fato de a coleta ter sido realizada no momento seguinte ao término da jornada de trabalho, sem ter o tempo necessário para que houvesse a metabolização do diflubenzuron no seu principal metabólito PCA, que é uma substância sabidamente oxidante. Em realidade, a toxicocinética dessa biotransformação no organismo humano ainda é desconhecida4.

Além disso, os trabalhadores que apresentaram valores negativos na comparação dos resultados podem ter utilizado ou ter tido contato com substâncias redutoras, como a Vitamina C e as substâncias que possuem grupamentos "tio", que promovem a retirada de um elétron do ferro (Fe) presente na estrutura do pigmento sanguíneo e consequentemente alteram o equilíbrio para o retorno da MHb à forma de hemoglobina18 , 11.

Outra justificativa plausível para tal achado é a de que o método utilizado é frágil quando objetiva a quantificação de discretas variações, como é a situação do presente trabalho, visto que se tem a reação de equilíbrio entre a forma de MHb e hemoglobina ocorrendo a todo momento. Logo, para se observar uma larga variação da porcentagem de MHb utilizando tal método, se faz necessário ter uma exposição a altas concentrações dos agentes metemoglobinizantes, como observado nos casos de intoxicação por dapsona11.

Dentre todas as correlações realizadas, a única variável que obteve uma correlação com variação da MHb foi a do fumo. Os resultados estatísticos mostram uma forte correlação inversa (R= -0,742; p=0,035), ou seja, os indivíduos que têm o hábito de fumar possuem os maiores valores de variação de MHb, comparando os níveis antes e após a exposição.

A Figura 1 representa graficamente a distribuição dos resultados de MHb quanto ao fato de o trabalhador ser fumante ou não.

Figura 1 Representação gráfica da distribuição dos níveis de MHb por categoria de consumo de tabaco em guardas de endemias dos municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu, em 2012 

O número reduzido de amostras analisadas poderia explicar o porquê de as outras variáveis não apresentaram correlação estatística, mas o fato de ter sido verificada entre %MHb e fumo confirma a grande influência desta variável sobre os processos de formação de MHb.

Os resultados observados mostram que, mesmo com todas as restrições metodológicas deste estudo, o cigarro possui em sua composição substâncias sabidamente oxidantes, como as nitrosaminas, elementos capazes de oxidar a hemoglobina e formar a MHb. Logo, o hábito de fumar pode ser considerado um fator de risco adicional para os guardas de endemias que diariamente estão expostos ao diflubenzuron.

CONCLUSÃO

Com o presente trabalho foi constatado que os guardas de endemias detinham baixo conhecimento sobre os riscos associados à sua atividade ocupacional. Tal achado, assim como a não adoção do uso de EPI relatada pela maioria dos trabalhadores, mostra a necessidade de estabelecer uma estratégia de comunicação clara, explicativa e coordenada nos municípios, seja por meio de treinamentos periódicos ou informes, para que se tenha o conhecimento da substância à qual o trabalhador está sendo exposto e assim os riscos atrelados a essa exposição sejam minimizados.

A MHb pode ser formada da exposição a um número relativamente grande de substâncias químicas e outros fatores endógenos e hexógenos (confundidores), como o hábito de fumar, fazendo com que a interpretação dos resultados obtidos seja bem mais complexa. O entendimento dos fatores endógenos que levam à autoformação de MHb e fazem com que os indivíduos se tornem mais susceptíveis à exposição a agentes oxidantes e de seus mecanismos de ação torna-se igualmente um limitante significativo que requer maiores conhecimentos.

Quanto à avaliação da MHb como biomarcador de efeito, este mostrou-se ineficaz em diferenciar amostras coletadas dos mesmos indivíduos expostos a diflubenzuron, antes e após a jornada de trabalho. Entretanto, esses valores não garantem a inexistência de riscos à saúde dos trabalhadores expostos ao difluobenzuron, mas expõem claramente a necessidade do estudo de novos biomarcadores, mais sensíveis e seletivos, capazes de avaliar a exposição ao diflubenzuron e ao seu metabólito e contaminante, o PCA, além do desenvolvimento de novas metodologias de análise de MHb, visto que a preconizada atualmente possui diversas dificuldades na logística de execução, e o contínuo acompanhamento clínico dos expostos.

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