On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.27 no.5 São Paulo Sept./Oct. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/19820194201400072
O Brasil tem experimentado, nas últimas décadas, o aumento da expectativa de vida, em que a realidade do envelhecimento da população tornou-se um dos principais desafios da modernidade.(1) O cenário se torna mais agravante quando, somado as desigualdades sociais, tem-se a falta de informações, o preconceito e o desrespeito à pessoa idosa. A velhice carrega os estigmas da incapacidade funcional e social do indivíduo, reduzindo o idoso, muitas vezes, a um fardo para os seus responsáveis, concorrendo assim, à exclusão familiar e social, e à violência intrafamiliar.(2)
Considera-se violência intrafamiliar toda e qualquer ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física e psicológica, ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de um integrante do núcleo familiar. Pode ser cometida dentro ou fora de casa, por qualquer membro da família que esteja em relação de poder com a pessoa agredida e inclui também as pessoas que exercem a função de pai ou mãe, mesmo sem laços de sangue.(3)
Mediante o consenso internacional envolvendo todos os países participantes da Rede Internacional de Prevenção contra Maus-Tratos em Idosos, a Organização Mundial de Saúde elencou sete tipos de violências: abuso físico ou maus-tratos físicos (reporta-se ao uso de força física); abuso ou maus-tratos psicológicos (envolve agressões verbais ou gestuais); a negligência (recusa, omissão ou fracasso por parte do responsável no cuidado com a vítima); a autonegligência (negação ou fracasso de prover a si mesma cuidado adequado); o abandono (ausência, por parte do responsável, de assistência necessária ao idoso, a quem caberia prover custódia física e cuidado); abuso financeiro (exploração imprópria ou ilegal e/ou uso não consentido dos recursos financeiros de um idoso), e o abuso sexual (ato ou jogo sexual, destinado a estimular a vítima ou utilizá-la para obter excitação sexual e práticas erótico-sexuais).(4)
Considerando a complexidade da violência e as consequências para a saúde do idoso, vários autores têm enfatizado a necessidade de ações para o enfrentamento imediato desse fenômeno.(5)
Neste sentido, o conhecimento dos fatores de risco para ocorrência da violência permite identificar precocemente idosos que vivenciam esse agravo e/ou prevenir que tal situação aconteça no âmbito doméstico. Pesquisa que investigou a rede de proteção ao idoso no município do Rio de Janeiro, através da análise de 763 registros de ocorrências da delegacia do idoso e 135 do Núcleo Especial de Atendimento à Pessoa Idosa, aponta a importância da implementação de medidas de vigilância à saúde, com enfoque na prevenção de doenças e agravos e promoção da saúde, sobretudo, a partir da manutenção de uma convivência familiar pacífica entre os idosos e seus familiares.(6)
Diante do exposto, o estudo objetivou desvelar as formas de expressão da violência intrafamiliar vivenciada por idosos com comprometimento da capacidade funcional.
O desenho da pesquisa é pesquisa descritiva, de caráter exploratório e natureza qualitativa guiada pelo método da história oral temática, cujo enfoque é a utilização de narrativas transformadas do oral para o escrito, norteando processos sociais ao favorecer investigações no âmbito da memória cultural e individual. A história oral permite estabelecer uma relação dialógica, porém, não consiste em uma conversa, mas em um encontro programado e destinado, sobretudo, à gravação.
O estudo foi realizado nos meses de março e abril de 2012 em um município situado na região sudoeste do estado da Bahia, Brasil.
Foram incluídas 15 pessoas idosas cadastradas numa Unidade de Saúde da Família do município. A escolha dos colaboradores obedeceu aos seguintes critérios de inclusão: possuir idade igual ou superior a 60 anos; residir com familiares; apresentar comprometimento da capacidade funcional e demonstrar condições cognitivas para responder ao instrumento de coleta de dados.
Os dados foram coletados através da entrevista individual, guiada por um roteiro semiestruturado. A questão de pesquisa foi: Como é sua relação com seus familiares hoje, após o comprometimento da capacidade funcional? Todas as entrevistas foram gravadas através de um aparelho eletrônico tipo MP4 e, posteriormente, transcritas na íntegra. A realização das entrevistas se deu na residência dos idosos, em um espaço da casa que garantisse a privacidade dos mesmos e a confidencialidade das informações.
Os dados foram organizados com base na técnica de Análise de Conteúdo Temática Categorial de Laurence Bardin, percorrendo as três fases básicas: a pré-análise; a exploração do material; e o tratamento dos resultados, inferência e interpretação, que viabilizou o delineamento do tema “Expressão da violência vivenciada por idosos” e das seguintes categorias: negligência, violência psicológica, exploração financeira e violência física.
O desenvolvimento do estudo atendeu as recomendações nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
Os idosos entrevistados se caracterizam por ter idade entre 65 a 88 anos, com predomínio de mulheres (73,4%). No que diz respeito ao estado civil, 60,0% não convivem com as (os) companheiras (os), sendo viúvos, separados ou divorciados. O grau de instrução variou de não alfabetizado ao ensino fundamental incompleto. Em relação aos problemas de saúde os mais frequentes foram: Hipertensão Arterial Sistêmica (80,0%), Artrite/Artrose/Osteoporose/Artrite reumatoide (40,0%), Diabetes mellitus (33,3%), Lombalgia (20,0%) e Cardiopatia (6,6%).
Todos os colaboradores apresentavam comprometimento da capacidade funcional para realização das Atividades Instrumentais de Vida Diária (AIVDs), relacionadas com a dependência familiar para atividades como: limpar a casa, cuidar da roupa, da comida, usar equipamentos domésticos, fazer compras, usar transporte pessoal ou público, controlar a própria medicação e finanças.
Os idosos com comprometimento da capacidade funcional entrevistados expressaram a vivência da violência nas relações familiares, apresentadas a partir das categorias a seguir:
Os idosos referem que são negligenciados pelos seus familiares, que deixaram de prover as necessidades de cuidados básicos para o desenvolvimento físico, emocional e social, o que é constatado nas falas:
[...] quando deixa o idoso com fome, preso dentro de casa. Tem hora que falo com Deus para me levar logo e acabar com esse sofrimento. (E-3: Mulher).
Não saio de casa, não me levam na igreja, nem para passear, passo o dia nesta garagem. Tem dia que eu quero até morrer. Não aguento mais ficar presa igual bicho (...) nem sei porque eles deixaram você entrar aqui, ninguém nunca entra, eu nunca converso com ninguém. (E-7: Mulher).
Antes minha vida era melhor, eu me virava sozinho e ai o povo aqui não mandava em mim. Eles me respeitavam, me obedeciam. Agora eu vivo largado pelo quarto, nem conversar eu posso. (E-8: Homem).
[...] é tão triste querer fazer uma coisa e não poder [...] e é mais triste ainda ouvir o que os outros falam quando eu peço alguma coisa. (E-11: Mulher).
Nem ao médico me leva. Sou uma prisioneira: vivo dentro desta casa. A única coisa que ainda tenho direito é assistir televisão. (E-13: Mulher).
Quanto à violência psicológica os idosos relatam que sofrem rejeição, depreciação, desrespeito, conforme falas a seguir:
Tem momentos que eles (filhos) dizem coisas que é pior que uma agressão, sabia? Palavras que ofendem. A gente fica magoada. Não deixar de não se ofender. (E-3: Mulher).
As palavras que ela (filha) fala dói mais que pancada. É pior! Quando bate, passa. Já a palavra, ofende. Fica o tempo todo na cabeça da gente. (E-9: Mulher).
Um dia meu neto me chamou de desgraça. Isso porque eu pedi para ele desligar o computador porque eu queria assistir o jornal. (E-12: Homem).
[...] Agora o que eu recebo é xingamento, é mandar eu calar a boca, é dizer que eu só presto pra dar trabalho, é pirraçar para me dar até uma água [...] eu não faço isso porque quero, se eu não tivesse nessa cama, eu mesmo ia fazer minhas coisas. (E-13: Mulher).
A exploração financeira foi referida pelos idosos do estudo, que expuseram o receio de sofrerem esse tipo de violência através da apropriação indevida de seus bens.
Tenho medo de piorar, pois já sou maltratado, e ele reclama, vive gritando comigo. Outro dia ele queria vender minha casa. (E-3: Mulher).
Tenho medo de piorar e ele me colocar num asilo para poder ficar com minha casa. (E-10: Mulher).
Do jeito que as coisas estão, tenho medo de meus netos me colocarem na rua para ficar com minha casa. (E-12: Homem).
Nunca pensei que iria trabalhar a vida inteira para criar meus filhos, para quando ficar velho, eles tomarem meu dinheiro e ainda me xingarem (…). (E-15: Homem).
Os limites do resultado deste estudo referem-se ao desenho da pesquisa cujo material empírico e a história oral dos idosos colaboradores quanto ao tema violência intrafamiliar vivenciada por idosos com comprometimento da capacidade funcional que pode ser passível de viés do sujeito.
Os resultados contribuem para que os enfermeiros reflitam sobre sua prática assistencial aos idosos com comprometimento da capacidade funcional em domicílio, na perspectiva da prevenção da violência intrafamiliar apontando os tipos de violência vivenciada pelos idosos que precisam ser superadas.
A história oral dos idosos entrevistados aponta que os mesmos se dão conta de que a dependência ao outro o expõe a situações de violência, expressas aqui pela negligência, violência psicológica e exploração financeira, sobretudo, por meio da apropriação indevida de bens. Tais expressões da violência praticada contra o idoso também foram reveladas em estudo desenvolvido com base nas produções científicas publicadas em 2001 a 2008, a qual apontou ainda o abuso físico e sexual.(6)
A violência por negligência é apontada em estudo como a forma mais comum de violência intrafamiliar praticada contra os idosos. Tal estudo revelou que, dos 424 documentos analisados quanto aos casos de violências, cerca de 40% referia-se a negligência.(7)
Estudo exploratório realizado entre os anos de 2002 a 2005 analisou a presença, frequência e tipos de maus-tratos sofridos por idosos, através de denúncias telefônicas e observou que quando se fala em negligência, o número de denúncias é pouco expressivo, representando apenas 13% do total de denúncias no ano de 2002. Destes, a grande maioria se referia a negligência sofrida dentro de instituições voltadas para o cuidado a pessoa idosa.(8)
Tais estudos evidenciam que a violência contra o idoso não é praticada apenas pelos membros da família, mas, também, por funcionários dos serviços de saúde, inclusive pelos próprios profissionais da saúde. Vale salientar a importância do olhar atento por parte destes profissionais, no sentido de identificar negligências para com os idosos, principalmente àquelas que se dão no espaço do doméstico, tido como de proteção, mas que vêm se desvelando cenário de maus tratos familiares.
Outra expressão de violência doméstica contra a pessoa idosa, apontada neste estudo, diz respeito à violência psicológica. Pesquisa realizada com idosos residentes nas áreas de abrangência de Saúde da Família no Rio de Janeiro, Brasil, revelou que, entre os idosos pesquisados, 43% relataram pelo menos um episódio de violência psicológica no último ano.(5) Outra pesquisa realizada em Fortaleza, Ceará, Brasil, que teve como lócus o acervo de um serviço de denúncia de violência contra idoso revelou percentual de 35,2% de queixas relacionadas à violência psicológica.(9)
No que tange a exploração financeira, nossos achados expressam que os idosos têm receio de sofrerem esse tipo de violência através da apropriação indevida de seus bens, principalmente a casa. Para expressar esta forma de violência, um estudo qualitativo realizado com 13 idosos revelou vivência de violência financeira por idosos. Um deles referiu que os familiares pouco o procuravam e, quando o faziam, estavam interessados em sua aposentadoria.(10)
Nessas situações, além da violência financeira, deve-se pensar na questão psicológica, já que o idoso, algumas vezes, abate-se com a impotência da situação, criando uma avalanche de perdas: financeiras, psíquicas e até físicas, algumas vezes irreversíveis.(11)
Nesse contexto salienta-se que, as queixas de abuso financeiro estão relacionadas à prática de outras formas de violência, como psicológica e física, podendo causar lesões e até levar a morte.(10) Corroborando, estudo realizado em Camaragibe, Pernambuco, Brasil, verificou que, em uma amostra de 315 idosos, 66 referiram sofrer de maus-tratos. O tipo de violência mais comum foi à psicológica (62,1%), seguida da física (31,8%).
Os idosos são vulneráveis à violência física e verbal não somente na família, mas, também em instituições, bem como a maus tratos, ao abandono, à discriminação e ao isolamento. Sofrem pela pouca divulgação de seus direitos na constituição e também pela ausência de serviços públicos especializados e específicos para idosos, com prioridade nos atendimentos.(12)
De acordo com o Estatuto do Idoso, o envelhecimento é um direito pessoal e sua proteção um direito social, cabendo ao Estado garantir a proteção à vida e à saúde do idoso, sendo dever do mesmo e da sociedade zelar pela dignidade da pessoa idosa, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano, aterrorizante, violento, vexatório ou constrangedor. Caberá punição, na forma da lei, ao que cometer negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, por ação ou omissão ao idoso.(13)
Assim sendo, os maus-tratos contra o idoso representam uma grave violação de seus direitos enquanto cidadãos, demonstrando assim, o retrocesso da evolução social quanto às afirmações dos direitos humanos. No tocante a violência intrafamiliar, esta é a que mais contraria os princípios desses direitos que resguardam e protegem a pessoa idosa, no entanto, ainda é praticada por vários motivos, dentre os quais se destacam: 1. Ausência efetiva pelos órgãos competentes de colocar na prática o que está descrito no Estatuto e outras leis de proteção ao idoso; 2. Medo da pessoa idosa de revelar os abusos que sofre.
Estudo revela que, entre outros sentimentos que podem ser expressos pelos idosos, se apresentam o temor da retaliação ou represália, especialmente no âmbito familiar; a culpa de gerar um conflito; a vergonha da situação; e o medo de ser internado em um asilo. A vivência com os agressores pode não só afetar a saúde do idoso, como constituir um dos grandes empecilhos para que a vítima denuncie.(14)
Ainda em seu Artigo 4° o Estatuto refere que “Nenhum idoso será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos”. O mesmo artigo determina que é dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso.(13) Nesta perspectiva, além de denunciar a violência evidente, precisamos denunciar os indícios de violência. A sociedade não deve esperar a confirmação de maus tratos para denunciar, já que esta se revela enquanto estratégia de ajuda ao idoso para uma vida livre de violência.
A este respeito, a responsabilização dos profissionais de saúde para com o bem estar dos idosos está regulamentada no Estatuto do Idoso em seu artigo 19, que refere sobre a obrigatoriedade de comunicação dos casos suspeitos ou confirmados de maus tratos em idosos à autoridade policial, ao Ministério Público ou ao Conselho do Idoso. Sobre as penalidades, o artigo 57 esclarece que o profissional da área de saúde pode ser multado por não denunciar a situação de violência identificada, sendo a multa calculada pelo juiz, devendo ser considerado o dano sofrido pelo idoso e, em caso de reincidência, o valor deverá ser dobrado.(13)
Deve haver participação ativa dos profissionais de saúde no cuidado a vítima de violência, de forma articulada e interdisciplinar com outros setores sociais, a fim de proteger a pessoa idosa e punir os responsáveis. Aos serviços de saúde compete contribuir na vigilância e criação de condições para que esse tipo de crime não aconteça, levando a reversão dos elevados níveis de mortalidade provenientes desse agravo e das suas consequências: medo, alienação, estresse pós-traumático ou mesmo a depressão.(14)
No processo de trabalho, os enfermeiros estão expostos cotidianamente aos diferentes tipos de violência. Diante desse fato, torna-se necessário um processo de sensibilização constante, através da educação continuada ou permanente e que se caracterize por oferecer espaço para o diálogo, que possibilite uma necessária reflexão pessoal e profissional, uma vez que uma não pode prescindir da outra. Entende-se que no processo de sensibilização, além da informação científica especializada, é fundamental que se inclua espaços de reflexão sobre as dificuldades que vão além da práxis específica de cada área de atuação, pois o trabalho com violência exige o pensar para além das fronteiras disciplinares, de modo que se possam gerar melhores estratégias de escuta e de intervenção.(15)
O comprometimento da capacidade funcional e a dependência são considerados fatores de vulnerabilidade para a vivência da violência intrafamiliar e, como limite, observa-se a dificuldade de obter o relato oral do idoso que sofreu violência intrafamiliar e comprometê-lo em um projeto assistencial e preventivo.