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Extensa linfadenite cervical mimetizando adenite bacteriana como primeira manifestação da doença de Kawasaki

Extensa linfadenite cervical mimetizando adenite bacteriana como primeira manifestação da doença de Kawasaki

Autores:

Felipe de Souza Rossi,
Marco Felipe Castro da Silva,
Kátia Tomie Kozu,
Luís Fernando Aranha Camargo,
Flávia Feijó Panico Rossi,
Clovis Artur Silva,
Lúcia Maria de Arruda Campos

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.13 no.3 São Paulo jul./set. 2015 Epub 30-Jun-2015

http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RC2987

INTRODUÇÃO

A doença de Kawasaki (DK) é uma vasculite grave multissistêmica dos vasos médios e pequenos. Essa doença aguda febril pode ter diversas manifestações inflamatórias, como adenite cervical.(1) É importante mencionar que adenite cervical unilateral >1,5cm é frequentemente menos observada em pacientes com DK e geralmente apresenta-se em associação com outros sintomas no início da doença.(2)

O achado de febre e linfadenite com sinais de inflamação intensa no local e formação de flegmão é raramente descrito como sinal inicial da manifestação da DK,(3)e foi previamente diagnosticado incorretamente como adenite bacteriana (AB).(4)

Relatamos caso de garoto de 7 anos de idade que apresentou linfadenite cervical com celulite adjacente e flegmão mimetizando AB como primeira apresentação da DK.

RELATO DE CASO

Paciente caucasiano, anteriormente saudável, 7 anos de idade, foi admitido em nosso serviço com febre (39 a 40°C), linfadenite cervical com celulite adjacente (Figura 1) e cefaleia grave. Decidiu-se prescrever cefadroxila devido ao diagnóstico de AB. No dia seguinte, o paciente foi internado no Hospital Israelita Albert Einstein para administração de antibióticos intravenosos (oxacilina e ceftriaxona), devido à febre persistente, com piora da dor nas áreas subjacentes e inflamação. Os exames laboratoriais mostraram hemoglobina (Hb) 10,2g/dL, contagem de leucócitos (CL) 11.640/mm3 (77% de neutrófilos, 12% de linfócitos, 9% de monócitos, 1% de eosinófilos e 1% de basófilos), plaquetas 301.000/mm3, proteína C-reativa (PCR) 217,4mg/dL (normal 0-0,3mg/dL), aspartato aminotransferase 28U/L (normal 15-40U/L), alanina aminotransferase 20U/L (normal 10-35U/L), amilase 58U/L (norma l0-110U/L) e antiestreptolisina O 143IU/mL (normal 0-200IU/mL). Os testes serológicos foram negativos para citomegalovírus, toxoplasmose, mononucleose e bartonelose. A tomografia computadorizada (TC) da coluna cervical relevou linfonodos cervicais direitos aumentados e em maior número, medindo até 2,1cm, sem sinais de liquefação, além de densificação e engrossamento dos tecidos moles regionais na face e pescoço, altamente sugestiva de celulite extensiva e flegmão. Não foram observadas coleções cervicais. No quarto dia, o paciente apresentou lábios ressecados e descamados (Figura 2). A administração de oxacilina foi substituída por clindamicina, já que o paciente permanecia febril com sinais inflamatórios persistentes. No nono dia, o paciente apresentava congestão ocular bilateral não exsudativa (Figura 3). O exame oftalmológico revelou uveíte bilateral anterior. O exame ecocardiográfico estava normal. Após 10 dias de doença febril, notou-se exantema maculopapular discreto no tronco, mãos e pés do paciente, portanto preenchendo os critérios para DK.(1,5)A imunoglobulina intravenosa (2mg/kg) foi administrada com melhora das manifestações inflamatórias. Após 2 dias, o paciente recebeu alta hospitalar com prescrição de cefuroxima e aspirina por via oral (3,7mg/kg/dia), juntamente de corticoides e colírio midriático. No 14º dia, o paciente apresentava descamação lamelar dos dedos, que durou 10 dias (Figura 4). Novos exames laboratoriais revelaram: Hb 11,5g/dL, CL 5,400celulás/mm3 (51% neutrófilos, 34% leucócitos, 11 monócitos, 3% eosinófilos e 1 basófilos), plaquetas 280.000/mm3 e PCR 1,7mg/dL. O ecocardiograma permaneceu normal entre 10 e 45 dias de acompanhamento após a resolução dos sintomas.

Figura 1 Linfadenite cervical com celulite adjacente inicialmente observada no paciente com doença de Kawasaki 

Figura 2 Lábios ressecados e descamados 

Figura 3 Congestão ocular bilateral não exsudativa 

Figura 4 Descamação lamelar dos dedos das mãos 

DISCUSSÃO

De nosso conhecimento, apenas um caso de adenite cervical com formação de flegmão como primeira manifestação de DK foi descrito.(3) Portanto, relatou-se aqui o segundo caso na literatura médica.

A DK tem prevalência um pouco maior em garotos do que em garotas (razão masculino/feminino de 1,5-1,8:1); além disso, a maioria dos pacientes acometidos tem idade entre 6 meses e 5 anos.(1) Cerca de 15% dos pacientes tem mais do que 5 anos,(6) assim como o paciente deste relato. A DK incompleta tem sido mais frequentemente relatada em pacientes com mais de 5 anos ou menores que 1 ano. Uma demora subsequente para iniciar o tratamento adequado nesses casos aumenta o risco de envolvimento coronário, já que sua eficácia é alta quando utilizada no 10 primeiros dias da doença.(7) Em relação à etnia, apesar de a DK ser muito mais frequente em descentes asiáticos, sugerindo a existência de predisposição genética, ela é encontrada em todo o mundo em pequena, porém crescente, incidência.(7)

O diagnóstico da DK é realizado baseado nas características clínicas e não em achados clínicos e laboratoriais patognomônicos.(1) A linfadenopatia cervical é considerado um critério menos comum em pacientes com DK, sendo descrito em cerca de 50% dos casos, enquanto outros sinais, como congestão ocular bilateral não exsudativa, anormalidades na mucosa orofaríngea,rash polimorfo e alterações nas extremidades ocorrem em aproximadamente 90% dos casos de DK clássica.(4)

Além disso, a adenite cervical é normalmente observada juntamente de outros sintomas das fases agudas. Em revisão recente da literatura, a adenite cervical isolada e a febre foram relatadas em 57 pacientes como o primeiro achado de DK.(4) Com exceção do ressecamento labial não específico e transiente, nosso paciente persistiu com febre até o nono dia da doença com adenite febril e o único envolvimento foi de DK. Além disso, a presença de celulite adjacente à região cervical reitera a importância de desconsiderar a possibilidade de causas infeciosas, como afecções bacterianas ou virais – toxoplasmoses e doença de arranhadura de gato. A presença de flegmão é bem rara em DK e foi encontrada somente em um paciente entre os casos descritos por Kanegaye et al.(3)

Um ponto interessante foi a presença de cefaleia grave relatada por nosso paciente, apesar de a cefaleia se trata de um achado incomum durante os episódios febris em crianças, especialmente com altas temperaturas. Nesse relato, esse sintoma pode ser devido à meningite asséptica, o que é visto em aproximadamente um terço dos pacientes com DK. Em crianças, geralmente, a cefaleia se manifesta como irritabilidade.(8)

Uma questão que pode ser levantada é se a linfadenite observada na apresentação deste caso foi, na verdade, uma ação de AB como desencadeadora da DK. Estudos descrevem que até 33% dos pacientes com DK têm pelo menos uma infecção concorrente no início da doença, que pode ser considerada a desencadeadora da doença.(7,9) As similaridades na apresentação clínica e bioquímica de ambos, DK e doenças mediadas pela toxinastaphylococcus e streptococcal, sugerem possibilidade de envolvimento bacteriano na etiologia da doença em indivíduos geneticamente suscetíveis.(9)

Estudos radiográficos podem ser de grande importância para diferenciar DKversus AB. Um estudo anterior conduziu tomografia computadorizada cervical em 11 de 57 pacientes com DK e linfadenopatia como primeira apresentação versus 39 de 78 pacientes com AB. Nódulos sólidos foram encontrados em 91% do grupo principal, enquanto esse achado foi mostrado em apenas 28% do segundo grupo (p=0,003).(3) Em contrapartida, quando os autores pesquisaram a existência de flegmão, este estava presente em 14 dos indivíduos com AB, porém em apenas um paciente com DK.(3) De modo similar, neste caso, a mesma característica rara foi confirmada na tomografia computadorizada cervical conduzida.

É importante ressaltar que a presença de adenite cervical sem formação de abcesso e sem resposta a terapia com antibióticos de amplo espectro alerta a necessidade de diagnóstico diferencial. No paciente descrito, o diagnóstico de DK foi confirmado devido ao preenchimento dos critérios do quadro de DK. Na verdade, a maioria dos casos de DK relatados anteriormente, que apresentou linfadenite como sua manifestação inicial, recebeu agentes antibacterianos como tratamento de primeira linha, porém revelando resposta inadequada.(3,4) Em nosso caso, a celulite foi completamente resolvida logo após a infusão de imunoglobulina intravenosa, que é considerado o tratamento recomendado para DK primária.(10,11)

CONCLUSÃO

A doença de Kawasaki deve ser considerada diagnóstico diferencial para linfadenite cervical febril em crianças que não respondem ao tratamento empírico com antibióticos, mesmo se apresentarem celulite adjacente e flegmão.

REFERÊNCIAS

Kawasaki T, Kosaki F, Okawa S, Shigematsu I, Yanagawa H. A new infantile acute febrile mucocutaneous lymph node syndrome (MLNS) prevailing in Japan. Pediatrics. 1974;54(3):271-6.
Falcini F, Capannini S, Rigante D. Kawasaki syndrome: an intriguing disease with numerous unsolved dilemmas. Pediatr Rheumatol Online J. 2011;9:17.
Kanegaye JT, van Cott E, Tremoulet AH, Salgado A, Shimizu C, Kruk P, et al. Lymph-node-first presentation of Kawasaki disease compared with bacterial cervical adenitis and typical Kawasaki disease. J Pediatr. 2013;162(6):1259-63.
Kao HT, Huang YC, Lin TY. Kawasaki disease presenting as cervical lymphadenitis or deep neck infection. Otolaryngol Head Neck Surg. 2001; 124(4):468-70.
Ozen S, Ruperto N, Dillon MJ, Bagga A, Barron K, Davin JC, et al. EULAR/PReS endorsed consensus criteria for the classification of childhood vasculitides. Ann Rheum Dis. 2006;65(7):936-41.
Burns JC, Kushner HI, Bastian JF, Shike H, Shimizu C, Matsubara T, et al. Kawasaki disease: A brief history. Pediatrics. 2000;106(2):E27. Review.
Jamieson N, Singh-Grewal D. Kawasaki Disease: A Clinician’s Update. Int J Pediatr. 2013;2013:645391. Review.
Dengler LD, Capparelli EV, Bastian JF, Bradley DJ, Glode MP, Santa S, et al. Cerebrospinal fluid profile in patients with acute Kawasaki disease. Pediatr Infect Dis J. 1998;17(6):478-81.
Benseler SM, McCrindle BW, Silverman ED, Tyrrell PN, Wong J, Yeung RS. Infections and Kawasaki disease: implications for coronary artery outcome. Pediatrics. 2005;116(6):e760-6.
Tse SM, Silverman ED, McCrindle BW, Yeung RS. Early treatment with intravenous immunoglobulin in patients with Kawasaki disease. J Pediatr. 2002;140(4):450-5.
Sánchez-Manubens J, Bou R, Anton J. Diagnosis and classification of Kawasaki disease. J Autoimmun. 2014;48-49:113-7. Review.