versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.31 no.4 Rio de Janeiro jul./ago. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20180027
A taxa de sobrevida de pacientes com câncer melhorou substancialmente nas últimas décadas com o surgimento de novos quimioterápicos e avanço da radioterapia. No entanto, os pacientes oncológicos estão mais suscetíveis aos efeitos cardiotóxicos desenvolvidos durante o tratamento, o que pode aumentar a morbimortalidade desta população.1 Diante deste novo cenário, foi criada a cardio-oncologia, uma nova área de especialização baseada em uma abordagem integrativa multidisciplinar. A cardio-oncologia busca melhorar a qualidade do cuidado cardiológico oferecido aos pacientes com câncer e estudar as diferentes dimensões da cardiotoxicidade.
Dentre os sintomas cardiovasculares, a fadiga é uma manifestação clínica comum e muito prevalente no paciente com câncer, e a sua caracterização e seus mecanismos ainda desafiam os profissionais de saúde. A fadiga associada ao câncer é uma experiência subjetiva caracterizada pelo cansaço que não alivia com o sono ou repouso e é considerada um preditor de diminuição da satisfação pessoal e qualidade de vida.2 O sintoma fadiga varia em duração e intensidade, reduz em diferentes graus a habilidade do paciente em desenvolver atividades diárias e diminui a capacidade funcional de pacientes com câncer.3 A fadiga pode afetar 80-99% dos pacientes com câncer tratados com quimioterapia e/ou radioterapia4 e persistir por meses a anos. Cella et al.5 relataram que um terço dos pacientes curados de câncer apresentaram fadiga por 5 anos após o final da quimioterapia.
A natureza multifatorial da fadiga relacionada ao câncer é um ponto crucial a ser considerado pelos profissionais que lidam com o paciente oncológico. As principais causas da fadiga estão associadas aos efeitos do câncer e do seu tratamento sobre o sistema nervoso central. Outras causas incluem depressão e ansiedade, anemia, alterações endócrinas (como hipotireoidismo e diabetes), ativação do sistema imune, mediadores inflamatórios, estresse emocional, distúrbios eletrolíticos, miopatias, fibrose pulmonar e insuficiência cardíaca (IC).6
A IC é uma síndrome complexa e multissistêmica encontrada em pacientes idosos que apresentam a tríade clínica fadiga, dispneia e edema. Os mecanismos associados à fadiga na IC são desencadeados pela inadequada perfusão sanguínea que afeta os músculos respiratórios e periféricos levando à diminuição da capacidade oxidativa.7,8 A fadiga afeta 50-96% dos pacientes com IC e está associada a uma redução na qualidade de vida, restrição de atividade física e piora no prognóstico.8
O tratamento bem-sucedido da IC depende de uma avaliação abrangente dos sintomas e do conhecimento das abordagens disponíveis para aliviar não somente os aspectos físicos mas também os emocionais e espirituais do sofrimento do paciente. A estratégia do “cuidado centrado na pessoa”, incluindo a parceria entre os profissionais de saúde e os pacientes com IC, propicia uma diminuição no tempo de internação hospitalar.9 As prescrições são específicas àqueles pacientes com IC que cursam com dispneia ao final da vida, com objetivo de alívio do sintoma, além do suporte integral da equipe especializada em cuidados paliativos.10,11
Os profissionais de saúde ligados à oncologia e doenças cardiovasculares deparam-se na prática clínica com pacientes, em particular idosos, que apresentam ambas as condições. Portanto, torna-se fundamental a identificação e a avaliação da fadiga pelos profissionais de saúde com a utilização de instrumentos validados cientificamente, além de uma avaliação clínica e exames complementares na realização de um adequado plano terapêutico.
O objetivo desta revisão é discutir os novos aspectos da fadiga presentes no paciente oncológico e enfatizar a importância da detecção precoce da IC e da monitorização da função cardíaca para o manejo mais adequado de pacientes submetidos a quimioterapia e radioterapia.
Não há um consenso em relação ao conceito de fadiga. Descrever fadiga é uma tarefa difícil diante da vasta sinonímia associada ao termo. Os profissionais de saúde atribuem termos diversos à fadiga, como astenia, letargia, exaustão, sensação de fraqueza, cansaço extremo e falta de motivação. Já os pacientes com câncer se referem à fadiga empregando diferentes termos, como fraqueza, exaustão, cansaço, esgotamento, lentidão ou peso.11
A literatura científica, por sua vez, define a fadiga como “uma sensação subjetiva de cansaço físico ou exaustão desproporcional ao nível de atividade”. Ainda, “a fadiga pode se manifestar como dificuldade ou incapacidade de iniciar uma atividade (percepção de fraqueza generalizada); redução da capacidade em manter uma atividade (cansaço fácil); e dificuldade de concentração, problemas de memória e estabilidade emocional (fadiga mental)”.12
Já a fadiga muscular é conceituada por diversos autores como “a incapacidade de manter um nível de potência ou de força durante repetidas contrações musculares”,13 “diminuição da força na contração máxima sustentada”14 e “diminuição da disponibilidade de substratos energéticos para o músculo esquelético durante o exercício”.15
A fadiga se origina no córtex cerebral e pode se estender até as pontes cruzadas dos músculos, induzida pela redução no número de unidades motoras funcionais envolvidas na atividade ou na frequência de disparo. Os mecanismos responsáveis pela fadiga podem ser centrais ou periféricos e são investigados através de sensações cinestésicas (esforço e força) e por eletromiografia.15
Os sinais eletromiográficos permitem identificar a manifestação da fadiga de um determinado músculo através de uma redução na amplitude do impulso elétrico registrado, indicativo da perda de recrutamento ou ativação sinérgica de múltiplos músculos. Outro método de estudo da fisiologia da fadiga é a adição de uma força por estimulação elétrica supramáxima durante uma contração voluntária máxima, que se traduz em um comprometimento da ativação muscular (nível proximal à junção neuromuscular).16
O mecanismo central da fadiga decorre de alterações no input neural que chega aos músculos, ou seja, o recrutamento de unidades motoras permanece abaixo do ideal para gerar uma força muscular adequada durante o exercício.16
A fadiga periférica se origina de alterações na homeostase do próprio músculo esquelético e de um decréscimo da força contrátil. Durante o exercício, um dos mecanismos indutores de fadiga muscular que influencia a produção de força é o da depleção de substratos energéticos necessários para síntese de ATP e variação da concentração intracelular de Ca++, H+, lactato, fosfato e ADP. A falha do músculo em manter a homeostase (em função, por exemplo, da variação nos níveis de Ca++ e H+) compromete a produção de força a nível da ponte cruzada e acarreta o desenvolvimento da fadiga. O outro mecanismo que contribui para a fadiga muscular é a produção de radicais livres. Evidências atuais sugerem que os radicais livres podem lesionar as proteínas contráteis miosina e troponina e diminuir o número de pontes cruzadas, comprometendo a força muscular. A elevada produção de radicais livres pode também comprometer o funcionamento da bomba de sódio/potássio no músculo esquelético e causar fadiga muscular.17
A contração muscular esquelética é um processo complexo que envolve um certo número de proteínas celulares e o sistema de produção de energia, com interação das proteínas contráteis actina e miosina na presença de ATP e Ca++ intracelulares. O processo de contração muscular inicia com a chegada de um impulso nervoso na junção neuromuscular. O potencial de ação oriundo do motoneurônio causa liberação de acetilcolina na fenda sináptica, que por sua vez leva à despolarização da célula muscular. Ao atingir o retículo sarcoplasmático, o potencial de ação promove liberação de Ca++, que se liga à troponina e causa uma mudança na posição da tropomiosina. Os sítios ativos existentes na actina são então expostos, permitindo a ligação de uma ponte cruzada de miosina “energizada” na molécula de actina. Quando a atividade neural cessa ao nível da junção neuromuscular, o Ca++ é removido do sarcoplasma e bombeado ativamente para o retículo sarcoplasmático pela bomba de Ca++, quebrando o ciclo de contração muscular. O termo “acoplamento excitação-contração” é definido como a sequência de eventos nos quais o impulso nervoso atinge a membrana muscular e causa encurtamento do músculo via atividade de ponte cruzada.18
A fadiga clínica é encontrada frequentemente nas doenças crônicas como a IC e o câncer. Diversas adaptações metabólicas, neurológicas e miofibrilares estão envolvidas nessas condições e implicadas no aparecimento da fadiga.19 Ewans & Lambert4 apontaram que a caquexia e o descondicionamento estão provavelmente implicados na persistência da fadiga ao término do tratamento e após a resolução da doença.
A fadiga e a dispneia são sintomas cardinais da IC. A fadiga é desencadeada por uma inadequada perfusão sanguínea que afeta os músculos respiratórios e periféricos e acarreta diminuição da capacidade oxidativa. Já a sensação de dispneia é causada pela demanda excessiva de ventilação ou por distúrbio ventilatório oriundo de sistemas sensoriais envolvidos com a respiração. O sintoma fadiga pode ser causado pela caquexia cardíaca e má-nutrição que acompanham o estágio metabólico severo da doença.8 Os pacientes com IC avançada podem desenvolver sarcopenia associada ao envelhecimento e à inatividade física, acarretando piora da fadiga. O sintoma fadiga ligado à IC está relacionado também à anemia, apneia do sono, distúrbio eletrolítico, uso de betabloqueadores e diuréticos, além de depressão.20
A intolerância ao exercício, presente na IC, pode estar envolvida com limitação central (resposta cronotrópica e fração de ejeção reduzidas) ou periférica (disfunção endotelial com menor liberação de óxido nítrico, aumento da resistência periférica total e menor resposta vasodilatadora). Já a fraqueza da musculatura ventilatória, encontrada na IC, é também uma limitação que pode refletir um maior aumento no trabalho do diafragma, desencadeando uma sensação de dispneia.21
Outra adaptação encontrada na IC que pode contribuir para agravar a fadiga é a diminuição da função contrátil. A miopatia na IC reflete claramente a redução da fosforilação oxidativa com o aumento das fibras tipo IIb e diminuição das fibras tipo I, consideradas determinantes na redução da capacidade funcional. O uso de medicamentos empregados na IC, tais como a losartana e o enalapril, melhoram a tolerância ao exercício com a normalização da composição das fibras musculares (ou seja, redução das fibras glicolíticas [tipo IIb] e aumento das fibras aeróbicas [tipo I]), além de melhorar o gasto energético máximo (VO2).22 Resultados semelhantes foram obtidos com treinamento físico em pacientes com IC, o que resultou na melhora da endurance, atividade física e fosforilação oxidativa da musculatura esquelética.23
A eventual fraqueza muscular dos pacientes com IC pode ser atribuída a alterações na função e quantidade de proteínas dos miofilamentos e não apenas à atrofia muscular. Essas alterações são provavelmente secundárias e aparentes em relação ao descondicionamento e/ou desuso provenientes da doença e permitem a definição do fenótipo muscular dos pacientes com IC.24,25
Há várias escalas validadas para mensuração dos sintomas na assistência a pacientes com IC, o que permite um cuidado diferenciado a cada paciente a partir dos escores apresentados. Para melhor compreensão dos sintomas, são utilizadas escalas numéricas com intuito de avaliar aspectos físicos, emocionais e cognitivos do paciente em relação aos aspectos observados por outros profissionais, tais como o Sistema de Avaliação de Sintomas de Edmonton (ESAS). As informações coletadas pelo ESAS auxiliam na mensuração de sintomas da IC não tradicionalmente avaliados.26
O ESAS é um instrumento simples e fácil de ser aplicado, podendo ser preenchido pelo próprio paciente (autoavaliação) ou por familiar ou profissional. Esta escala é composta por 10 sintomas comuns encontrados em pacientes com câncer recebendo cuidados paliativos, incluindo falta de apetite, fadiga, náusea, depressão, sonolência, ansiedade, dor, dispneia, mal-estar e outros sintomas. A escala possui uma graduação que varia de 0 a 10, onde 0 representa a ausência do sintoma pesquisado e 10 a presença do sintoma pesquisado em sua mais forte intensidade.26
Um estudo prospectivo conduzido no Canadá avaliou a aplicabilidade de diferentes questionários de cuidados paliativos em pacientes com IC. O estudo correlacionou a classe funcional do New York Heart Association (NYHA) e o Kansas City Cardiomyopathy Questionnaire (KCCQ) com as escalas de cuidados paliativos ESAS e Escala de Desempenho Paliativo (PPS). O estudo encontrou uma correlação positiva entre a PPS e o ESAS com a NYHA (R2 = 0,57, p = 0,001); entretanto, o questionário KCCQ apresentou uma correlação negativa com o ESAS (R2 = -0,72, p = 0,001). Em função da dificuldade da identificação de pacientes com IC elegíveis para cuidados paliativos, estas ferramentas podem ser úteis na prática clínica.27
O sintoma fadiga está diretamente ligado ao próprio câncer e aos efeitos colaterais do seu tratamento, dentre eles, a toxicidade à quimioterapia. Os pacientes com câncer que apresentam fadiga severa durante o tratamento permanecem com fadiga após o término da terapia ou da resolução da doença. A cronicidade da fadiga está implicada em possíveis adaptações metabólicas e fisiológicas, tais como o descondicionamento e a caquexia. O aumento da atividade física é uma estratégia adotada para diminuir a perda de musculatura esquelética durante a quimioterapia.28
A caquexia no câncer é caracterizada por uma perda contínua de massa muscular esquelética, podendo causar fraqueza generalizada e fadiga. Roberts et al.29 investigaram a fraqueza muscular do diafragma decorrente da caquexia ligada ao câncer em modelos animais e observaram que a fraqueza muscular era atribuída à atrofia muscular e à disfunção contrátil muscular.
Lee et al.30 avaliaram a diferença do desempenho físico entre mulheres e homens portadores ou não de linfoma, com aplicação do teste da caminhada de 6 minutos (TC6M) e do Inventário Breve de Fadiga. Os resultados obtidos mostraram um escore maior de fadiga nos pacientes com piora da capacidade física funcional.
A natureza multifatorial da fadiga ligada ao câncer dificulta a identificação dos mecanismos subjacentes envolvidos nesta doença. Bower et al.31 confirmaram a relação entre o aumento de citocinas inflamatórias com o agravamento da fadiga em pacientes com câncer de mama e próstata durante o tratamento. Dower et al.32 demonstraram que mulheres com câncer de mama e fadigadas apresentavam níveis reduzidos de cortisol pela manhã, sugerindo possíveis alterações no eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal. Fink et al.33 constataram que níveis baixos de hemoglobina, depressão e limitação física podem ser considerados fatores predisponentes de fadiga.
O diagnóstico da fadiga relacionada ao câncer é realizado com exclusão de causas reversíveis que podem ser tratadas e investigadas. Dentre as causas reversíveis citadas estão o tipo de fadiga, hipotireoidismo, anemia, distúrbio de sono, dor, estresse emocional, climatério, distúrbios eletrolíticos, efeitos adversos de medicamentos, disfunção cardíaca, renal e hepática, miopatias e fibrose pulmonar.34 O diagnóstico da fadiga pode ser complementado com informações da história clínica, exames físico e laboratoriais do paciente e aplicação de instrumentos para avaliação de fadiga por uma equipe multidisciplinar.
O Common Terminology Criteria for Adverse Events (CTCAE, versão 4.0) do National Cancer Institute dos Estados Unidos estabelece uma graduação da fadiga oncológica que é bastante utilizada pelos oncologistas brasileiros (figura 1).35
Dimeo et al.36 concluíram que os exercícios são os únicos fatores com fortes evidências no controle da fadiga durante e após o tratamento de tumores de mama, próstata e diversos outros tumores sólidos. Schwartz et al.37 apontaram a eficácia de exercícios terapêuticos na melhora da fadiga e da qualidade de vida dos pacientes, com diminuição dos efeitos adversos das terapias contra o câncer. Um treinamento aeróbico realizado durante 4 meses por mulheres com hipertensão, doença cardiovascular e câncer de mama em tratamento resultou na redução da pressão sistólica e diastólica e da frequência cardíaca de repouso. Já uma revisão sistemática envolvendo 4.826 participantes com câncer mostrou uma melhora na qualidade de vida e na capacidade funcional durante e após um programa de treinamento com exercícios (tabelas 1 e 2).38
Tabela 1 Efeitos dos exercícios antes e após o tratamento oncológico
Antes do tratamento | Após o tratamento |
---|---|
Melhora da função cardiorrespiratória e cardiovascular | Melhora da autoestima, humor e autoimagem |
Efeitos sobre a composição corporal (preservação ou ganho de massa muscular e perda de massa gorda) | Redução da duração da hospitalização |
Melhora no fortalecimento e flexibilidade muscular | Redução do estresse, depressão e ansiedade |
Melhora do sistema imune | Redução dos efeitos adversos sérios, incluindo náuseas, fadiga e dor |
Fonte: Adaptado de Mishra SI et al, 201238
Tabela 2 Diferenças entre fadiga oncológica e fadiga ligada à IC
Fadiga oncológica | Fadiga ligada à IC |
---|---|
Fraqueza muscular generalizada | Fraqueza muscular respiratória e periférica |
Não melhora com o repouso ou sono | Melhora com período de repouso e sono |
Agrava com quimioterapia e/ou radioterapia | Piora com uso de corticoidese anti-inflamatórios |
Não tem associação direta com a dispneia | Associada a dispneia aos esforços |
Disfunção do sistema nervoso central e periférico | Disfunção sistema nervoso periférico |
Desuso das fibras musculares e alteração contrátil | Atrofia das fibras musculares Tipo I aeróbicas |
Desencadeada por baixos níveis de hemoglobina, cortisol, TSH e T4 livre | Desencadeada pelo aumento de mediadores inflamatórios |
Associada a piora do estado nutricional | Associada à caquexia cardíaca com o avanço da doença |
Fonte: Autor, 2017
Os sinais e sintomas da IC podem ser semelhantes aos observados em pacientes oncológicos. A fadiga é uma manifestação clínica comum em ambas as patologias. No câncer, pode se agravar em decorrência do tratamento oncológico, que aumenta o risco de agressão ao miocárdio, podendo então desencadear complicações cardiovasculares.39
O declínio substancial da capacidade cardiopulmonar é decorrente da imobilidade, cronicidade da fadiga, perda de massa muscular, anemia, aumento da atividade inflamatória, alterações na coagulação e eventos adversos da quimioterapia e/ou radioterapia. Todas essas alterações levam consequentemente a uma piora na qualidade de vida do paciente oncológico.39
A cardiotoxicidade induzida pela quimioterapia tem sido a grande preocupação de oncologistas e cardiologistas na busca de uma identificação precoce da disfunção cardíaca e na monitorização da função cardiovascular durante o tratamento. A toxicidade cardíaca é uma das complicações mais importantes da terapêutica oncológica e é responsável por considerável morbimortalidade.40
Diversos medicamentos oncológicos têm sido relacionados à disfunção do ventrículo esquerdo, especialmente medicamentos do grupo das antraciclinas, como a doxorrubicina. A cardiotoxicidade induzida pelas antraciclinas manifesta-se de forma aguda (< 3 meses após o tratamento) ou tardia (3 a 12 meses após o tratamento), mas pode também ocorrer após 1 ano do tratamento. De acordo com Suter & Ewer,41 os medicamentos podem ser classificados pelo dano que provocam ao miocárdio como causadores de lesão reversível (tipo 1) e lesão irreversível (tipo 2). Um dos efeitos da toxicidade cardíaca pelas antraciclinas envolve o estresse oxidativo e peroxidação lipídica nos cardiomiócitos. Swain et al.42 identificaram 149 eventos cardíacos e redução da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) em 50% de 630 pacientes oncológicos tratados com doxorrubicina.43 Uma avaliação hemodinâmica não invasiva dos pacientes com IC mostrou aumento das seguintes variáveis: débito cardíaco, volume sistólico, frequência cardíaca e pressão arterial.43
Entre os eventos lesivos dos agentes/fármacos quimioterápicos no sistema cardiovascular destacam-se a IC, hipertensão arterial, doença tromboembólica e doenças do miocárdio (Tabela 3). Os principais fatores de risco para a cardiotoxicidade com quimioterápicos são a hipertensão, idade acima de 60 anos, disfunção prévia do ventrículo esquerdo e irradiação torácica prévia. A cardiotoxicidade pode aparecer de forma aguda, subaguda e tardia, conforme a sua apresentação clínica.1
Tabela 3 "Gatilhos" fisiopatológicos da doença arterial coronariana no tratamento do cãncer
Fármaco quimioterápico | Mecanismo fisiopatológico | Potencial chance de eventos coronarianos |
---|---|---|
5-fluorouracil, capecitabina, gencitabina | Lesão endotelial e vasoespasmo | Acima de 18% de aumento no risco de isquemia miocárdica e de 10% no risco de isquemia silenciosa |
Componentes platina - cisplatina | Trombose arterial e pró-coagulante | 20 anos de risco absoluto acima de 8% após câncer testicular |
Inibidores do fator de crescimento endotelial vascular (VEGF): bevacizumabe, sorafenibe, sunitinibe | Pró-coagulante, trombose arterial Lesão endotelial |
Risco de trombose arterial: bevacizumabe 3,8%, sorafenibe 1,7% e sunitinibe 1,4% |
Radioterapia | Lesão endotelial, ruptura de plaqueta e trombose | Aumento de 2 a 7 vezes no risco relativo de infarto miocárdio10% de eventos coronarianos em sobreviventes de linfoma de Hodgkin O risco é proporcional à dose de radiação |
Fonte: Adaptado European Society of Cardiology (ESC)
O diagnóstico da cardiotoxicidade é estabelecido através de biomarcadores (entre eles o peptídeo natriurético cerebral [BNP] e as troponinas) e recursos ecocardiográficos. Cerca de um terço dos pacientes apresentam elevação nos níveis de troponinas, que são um marcador sensível e específico de lesão miocárdica com capacidade de sinalizar o desenvolvimento de disfunção ventricular em pacientes que receberam doses elevadas de quimioterápicos.44
A European Society of Cardiology propõe atualmente uma discussão sobre a relevância dos biomarcadores e das avaliações seriadas de FEVE na prática clínica e na pesquisa. O emprego concomitante de amostras de sangue na dosagem dos níveis de biomarcadores e caracterização de fatores genéticos e epigenéticos podem ser úteis na identificação de pacientes com câncer suscetíveis ou resistentes à cardiotoxicidade. Desta forma, é possível uma comparação de resultados clinicamente relevantes antes e durante o tratamento do câncer, permitindo o planejamento de estratégias baseadas em evidências pela cardio-oncologia.45
Questionários padronizados têm sido incorporados na avaliação da fadiga. Há diversos instrumentos de avaliação de fadiga, dos quais sete foram validados no Brasil para avaliação do impacto da fadiga na qualidade de vida do paciente oncológico.52
O Pictograma de Fadiga, elaborado para avaliação da intensidade e impacto da fadiga em pacientes com câncer, é um instrumento útil na prática clínica e na pesquisa (Figura 2). É descrito como sendo um método rápido, simples, válido, confiável e aplicável em pacientes com câncer e com baixa escolaridade, apesar de necessitar ajustes para aplicação em pessoas saudáveis. Este instrumento foi validado no Brasil em 2007 em 584 pacientes com diferentes tipos e estágios de câncer em tratamento ou não com radioterapia atendidos em quatro ambulatórios de oncologia do município de São Paulo.53
Figura 2 Pictograma de Fadiga (Mota, Pimenta, Fitch. 2009)53
Outra forma de avaliação é a Escala de Fadiga de Piper. Revisada e validada no Brasil em 2009, essa escala abrange todas as dimensões da fadiga e pode ser aplicada a pacientes oncológicos em todos os estágios da doença. Essa escala estabelece um ponto de corte a partir do qual o indivíduo deve ser considerado como fadigado.54 Outro questionário bastante utilizado é o Functional Assessment of Cancer Therapy-Fatigue (FACT-F), que foi validado e aplicado em um estudo desenvolvido no Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA) em 2008 e demonstrou um impacto negativo da fadiga na qualidade de vida de pacientes com câncer de mama submetidas a quimioterapia.55
Embora a fadiga seja um sintoma comum em pacientes com câncer, é pouco valorizada na clínica diária. Nas últimas décadas, a fadiga tem tido um reconhecimento cada vez maior pelo seu impacto na qualidade de vida e sobrevida do paciente. A fadiga também é um dos sintomas cardinais da IC. A cardiovigilância e a cardio-oncologia são conceitos que vêm sendo incorporados pelas equipes multidisciplinares que atuam junto ao paciente com câncer. Dessa forma, a identificação da fadiga e de seus mecanismos fisiopatológicos, a sua correta estratificação e a sua abordagem terapêutica são etapas fundamentais a serem cumpridas pelos profissionais de saúde envolvidos no cuidado do paciente com câncer.