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Famílias de mulheres presas, promoção da saúde e acesso às políticas sociais no Distrito Federal, Brasil

Famílias de mulheres presas, promoção da saúde e acesso às políticas sociais no Distrito Federal, Brasil

Autores:

Éverton Luís Pereira

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.7 Rio de Janeiro jul. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015217.16792015

Abstract

This paper assesses the options for accessing public policies available to families of women incarcerated in the female penitentiary of Brazil’s Federal District. It seeks to contribute to the construction of health promotion strategies for the female population living in the prison system. Some of the claims were revealed in the national comprehensive healthcare policy for individuals in the prison system, especially those that acknowledge the importance of intersectoral actions and relationship networks to promote health. Data are presented from research conducted at the penitentiary in 2014 that used qualitative methodology by means of participant observation and semi-structured interviews with family members of women incarcerated in the Federal District. It was detected that attention must be paid to the different types of relationship that exist between incarcerated women and their families, and especially to the allegations of exhaustion and difficulty of access to public policies. A more in-depth survey into how this population organizes itself could assist in the development of public policies to promote health and overcome social vulnerability.

Key words: Incarcerated women; Families of incarcerated women; National Policy of Comprehensive Health Care to People Deprived of Liberty in the Prison System; Health promotion

Introdução

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP)1, estabelece objetivos no que diz respeito à saúde da população prisional brasileira. São eles: promover o acesso das pessoas privadas de liberdade à Rede de Atenção à Saúde, visando ao cuidado integral; garantir a autonomia dos profissionais de saúde para a realização do cuidado integral das pessoas privadas de liberdade; qualificar e humanizar a atenção à saúde no sistema prisional por meio de ações conjuntas das áreas da saúde e da justiça; promover as relações intersetoriais com as políticas de direitos humanos, afirmativas e sociais básicas, bem como com as da Justiça Criminal; e fomentar e fortalecer a participação e o controle social.

Esses objetivos estão guiados pelos princípios do respeito e valorização dos direitos humanos, integralidade da atenção, equidade e respeito à singularidade, promoção de iniciativas que garantam os direitos dessa população, responsabilidades compartilhadas entre os entes federados e valorização do controle social na elaboração e execução das ações. Os princípios estão de acordo com os propostos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e dialogam com a importância dos direitos humanos nas condições de saúde.

O público-alvo da PNAISP é constituído por aqueles que estão em regime provisório, sentenciados ou em medida de segurança, todos tutelados pelo Estado. O artigo 8 da Política amplia a população beneficiada: “os trabalhadores em serviços penais, os familiares e as demais pessoas que se relacionam com as pessoas privadas de liberdade serão envolvidos em ações de promoção da saúde e de prevenção de agravos no âmbito da PNAISP”. Assim, não apenas as pessoas em situação de privação de liberdade que seriam assistidas, mas também uma rede ampliada que auxilia na promoção e prevenção da saúde dessa população.

A PNAISP aponta para quatro elementos importantes que já vêm sendo discutidos por autores na saúde coletiva. O primeiro é o vínculo entre a garantia da saúde e a dos direitos humanos. Os autores envolvidos nesta discussão ressaltam que respeitar os direitos humanos2 é promover a saúde e apontam estratégias bem sucedida, como no caso da prevenção do HIV3.

O segundo é a importância de pensar o processo saúde-doença-atenção para além do indivíduo, envolvendo assim uma rede ampliada, como é o caso da família e das redes de sociabilidade. Temos aqui várias discussões importantes, especialmente aquelas que falam sobre os determinantes sociais da saúde4-7. Nestas referências, as redes sociais e comunitárias são imprescindíveis para se pensar as condições de saúde da população. O debate sobre este tema é emergente no Brasil, tendo sido reconhecido inclusive por revistas científicas especializadas8.

O terceiro, aponta para a necessidade de atentar para a promoção da saúde como elemento importante nas ações. E o quarto traz o caráter estratégico das ações intersetoriais para a promoção da saúde e a garantia dos direitos humanos. Esses dois elementos dialogam com as estratégias da Política Nacional de Promoção da Saúde9 e com as considerações apontadas por relatórios internacionais sobre o tema. Para os autores10, a prática da promoção da saúde precisa ser levada em consideração e as ações intersetoriais, que transcendam o setor saúde, são indispensáveis para a garantia da qualidade de vida das populações.

Todos os elementos apontados acima e trazidos pela PNAISP ampliam o olhar da saúde. Ressaltam a necessidade de observar questões supraindividuais para a garantia da saúde dos sujeitos. E nesse sentido, os direitos humanos assumem importância fundamental. Outro fator de destaque é o reconhecimento das relações sociais e comunitárias como fatores relevantes na garantia da qualidade de vida de uma população: no caso das pessoas em situação de prisão, os familiares e os amigos têm papel preponderante na garantia do direito à saúde.

Este artigo tem o objetivo de discutir as estratégias e os caminhos adotados por familiares de mulheres presas na Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF) para a obtenção de direitos e o acesso às políticas públicas. Apresenta as dificuldades encontradas por essas famílias quando da busca por ações do Estado e a sua importância na produção e reprodução da rede de cuidados entre as famílias e as mulheres presas na PFDF. As “narrativas do cansaço” trazidas por esta população nos aponta para a necessidade de pensar práticas intersetoriais de garantia de acesso à serviços. Ao garantir direitos para as famílias, as políticas públicas também promoverão a saúde das mulheres presas no Distrito Federal.

Os referenciais teóricos apresentados acima, que dialogam com a PNAISP, são os caminhos pelos quais argumentamos em função da necessidade de se pensar as famílias das presas como uma das estratégias de promoção da saúde. A Lei de Execuções Penais (LEP)11 também indica que serviços públicos sejam garantidos para os familiares de pessoas em situação de prisão, especialmente para garantir a sustentabilidade da base social para uma possível reinserção após a concessão da liberdade.

Segundo dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (INFOPEN)12, existem 11.399 pessoas vivendo nas instituições prisionais no DF. Destas, 10.758 estão no Complexo Penitenciário da Papuda (masculino) e 641 na PFDF.

Diniz e Paiva13 detalham esses dados a partir de uma pesquisa realizada na PFDF em 2012. As autoras apresentam um perfil das 277 mulheres sentenciadas em regime fechado. Cabe destacar que a Penitenciária abriga também mulheres sentenciadas em regime semiaberto e em condição provisória.

De acordo com as autoras13, o perfil das mulheres entrevistadas é o seguinte: 51% são menores de 30 anos; 67% são pretas ou pardas; 71% tem o ensino fundamental incompleto ou grau menor que o fundamental; 70% são trabalhadoras domésticas ou informais; 80% com pelo menos um filho; 52% com companheiros presos e 69% foram presas por questão relacionadas ao tráfico de entorpecentes. É um perfil que aponta para alguns determinantes importantes no processo de exclusão social e de acesso a bens e recursos, entre eles serviços de saúde.

Um dado particularmente relevante para este artigo é o de que entre as mulheres com pelo menos um filho, 15% têm o companheiro/a preso/a e 45% outros familiares. Também, uma em cada quatro das mulheres sentenciadas em regime fechado na PFDF já passou por medidas socioeducativas de internação. Temos um retrato que nos conta que grande parte dessas mulheres estão emaranhadas em um ciclo de privações de liberdade, não apenas elas próprias, mas também suas famílias. Não raras vezes, como nos apontam as autoras13, os familiares também estão ou estiveram presos.

Porém, pouco sabemos sobre as redes de parentesco e afetividade das mulheres presas. Um dos poucos estudos nesse sentido fala da consequência da prisão para os filhos das mulheres, como a ideia de que a prisão da mulher é também uma punição para seus filhos14. Mas não sabemos como as famílias se organizam e nem os papéis e as influencias das mulheres presas na economia doméstica (financeira e afetiva), para além do futuro dos filhos.

Não temos dados oficiais sobre familiares das presas. Algumas iniciativas vêm sendo tomadas, como a inserção da informação sobre “famílias de presos do sistema carcerário” no Cadastro Único para as Políticas Sociais do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Mesmo assim, os dados coletados ainda não são significativos da realidade que se pretende abordar.

E sabemos muito menos sobre quem são essas pessoas em termos socioantropológicos. Não conhecemos quais são as formas de relação desses sujeitos com o mundo e suas possíveis particularidades. O desvendamento das formas como as famílias de mulheres presas no DF se movem nas malhas estatais nos permitirá dar a visibilidade necessária para a elaboração de políticas de promoção da saúde, pautado nos direitos humanos e na intersetorialidade.

Metodologia

Esta pesquisa fez uso da metodologia qualitativa de coleta de dados. Trabalhar com famílias de mulheres presas se apresentou como um desafio desde o início da investigação. A construção das técnicas de coleta de dados foi se dando no decorrer do contato com as famílias das presas na PFDF e de acordo com as preocupações cotidianas. Mais do que uma estratégia previamente delimitada, a coleta dos dados se deu a partir do reconhecimento daqueles sujeitos enquanto produtores de conhecimento15 e o respeito por seus anseios e suas preocupações.

Cabe salientar que a população com a qual trabalhamos sempre foi interpelada por procedimentos repressivos e punitivos, seja pelo próprio mecanismo estatal, por meio das abordagens policiais, prisões, averiguações, processos, seja por outros atores igualmente violentos, como conflitos pessoais e sociais. Dessa forma, os contatos não poderia se dar de forma a não contemplar suas especificidades. Justamente pela exclusão e violência históricas que os familiares das mulheres presas vivenciaram, os pesquisadores tiveram algumas dificuldades na aproximação e na conquista da confiança.

Como descrito pela literatura, a obtenção de dados em uma pesquisa qualitativa requer um mútuo reconhecimento: o pesquisador precisa visualizar as redes que formam os metadiscursos dos sujeitos com os quais estará trabalhando15; e os sujeitos de pesquisa precisam perceber no pesquisador um bom interlocutor para suas preocupações cotidianas16. Falamos de um movimento duplo de aproximação e de reconhecimento de sujeitos e de causas17. Ou seja, construir uma pesquisa qualitativa e com este público é também produzir um conhecimento que esteja a disposição da transformação, especialmente nas mudanças em políticas públicas e na produção da visibilidade das demandas desta população.

A observação participante nos dias de visita na PFDF (quintas-feiras) se mostrou uma das principais ferramentas para a coleta de dados e para a seleção de informantes para a realização de entrevistas. Os pesquisadores participaram destes dias durante sete meses com o intuito de observar e estabelecer conversas sistemáticas com as visitantes, a fim de obter informações sobre os elementos que guiam as ações e/ou reflexões daqueles que vão para a PFDF para visitar alguma das presas.

Inicialmente, a observação participante buscou reconhecer os agentes que circulam nos dias de visita. Cada dia gerou um diário de campo, no qual os pesquisadores relatavam os principais acontecimentos presenciados. A subjetividade foi um dos elementos que guiou a pesquisa, lapidado pelo olhar dado pelas teorias lidas.

As entrevistas semiestruturadas foram a segunda técnica utilizada para a construção da pesquisa. Após a seleção dos informantes na observação participante, os pesquisadores se direcionavam para as residências dos familiares para uma conversa mediada pela gravação do áudio. Foram realizadas vinte entrevistas em profundidade com familiares de presas (dezessete mães, uma filha, uma tia e um companheiro).

As residências das familiares estavam localizadas em diferentes regiões geográficas do DF. A rigor, os pesquisadores não buscaram qualquer “lugar ideal” para a realização das entrevistas: o cenário foi sempre composto pelos entrevistados. Assim, em vários momentos, as entrevistas foram realizadas com a presença de mais de um familiar, o que enriqueceu as respostas de cada uma das indagações.

Cabe salientar que a composição do cenário e a presença de diferentes agentes sociais nos momentos das entrevistas respeitou as formas de organizações locais. Da mesma forma, o tempo foi mediado pelas possibilidades dos interlocutores, visto os diferentes arranjos das famílias. Respeitando os entrevistados quanto ao ritmo, o tempo e as condições, a equipe da pesquisa conseguiu obter um conjunto significativo de dados e, mais relevante, também captar algumas nuances importantes para as garantias de acessos ou não às políticas públicas das famílias de mulheres presas no DF.

O roteiro foi dividido em três blocos que buscaram saber: (i) a trajetória/histórico da família: movimentos migratórios, organizações parentais e laços de solidariedade construídos, arranjos maritais e de constituição da família; (ii) a organização atual da família, especialmente após o episódio de prisão: cuidados com os filhos da mulher presa, gestão econômica e financeira, visita e relação com a familiar encarcerada, relações sociais com a vizinhança e outras redes; (iii) buscas e acesso às políticas públicas: políticas acessadas e/ou buscadas, avaliações sobre as dificuldades/facilidades para a garantia de direitos, elementos de dificuldade quando da necessidade de obter algum tipo de benefício e itinerário de buscas por políticas públicas. Os três blocos levaram em consideração, como momento importante para a organização da narrativa, o episódio da prisão da familiar.

As entrevistas foram gravadas e transcritas por integrantes da equipe da pesquisa. As análises se deram com base em elementos disparadores de processos sociais, com os quais fosse possível reconhecer a dimensão simbólica e sociocultural dos sujeitos da pesquisa. Cabe salientar que esta pesquisa primou pelo reconhecimento das teias sociais que produzem os sujeitos e nas formas como as famílias de mulheres presas na PFDF acessam, ou não, políticas públicas.

A pesquisa fez parte de um projeto intitulado “Radiografia do Crime Feminino no Distrito Federal – 10.000 Mulheres”, desenvolvido pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), em parceria com a Universidade de Brasília (UnB). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/IH-UnB). Todos os procedimentos éticos previstos pela Resolução CNS 466/2012 foram respeitados.

Resultados e Discussão

Como mencionado, os dados aqui apresentados seguiram duas estratégias diferentes: a primeira que trabalhou com a observação participante nos dias de visita; a segunda que utilizou as entrevistas semiestruturadas nas residências das participantes. Elas se mostraram complementares, visto que apresentam aspectos diferenciados do dia a dia das familiares de presas na PFDF.

Neste item, optamos por dividir a discussão de modo a apresentar, em um primeiro momento, uma contextualização dos dias de visita e a discussão da expressão “puxar cadeia”. Este aspecto está mediado pela prisão enquanto espaço físico e é elemento essencial para pensarmos possíveis ações de promoção da saúde para essa população. Em um segundo momento, apresentamos uma problematização quanto à organização da rotina e as narrativas do cansaço. Diferente das primeiras, essas histórias surgem na interação entre os pesquisadores e os familiares e apresentam elementos de outras ordens para pensarmos as buscas por ações e políticas do Estado.

Podemos dizer que o contexto dos dias de visita na PFDF pode ser pensado com base em atores importantes que estão presentes todas as quintas-feiras. O cenário onde as ações acontecem é o da prisão: são as grades, as violências e as repressões que dão o tom do que ocorre na interação entre os sujeitos que circulam por aquele espaço. É a prisão, e as suas histórias, que guia grande parte dos movimentos dos atores nesse contexto específico.

Dentre os atores presentes no cenário da prisão, destacamos cinco importantes nos dias de visita: as presas, as agentes prisionais, as visitantes (velhas e novatas), os vendedores e as religiosas. Esses sujeitos sociais, conforme nos aponta Goffman18, assumem papéis importantes e configuram a situação na organização da rotina e do cotidiano das visitas, podendo ser pensados como elos na corrente das redes de solidariedade construídas na/pela prisão.

As presas têm papel preponderante na prisão. São elas as responsáveis pela organização dos atores sociais. Mesmo do lado de dentro das grades, são ativas na gestão das rotinas nos dias de visita – e também fora daquele contexto específico da PFDF. Além disso, as presas se fazem presente nos cotidianos das famílias, visto que é necessária uma logística para “manter” aquele sujeito na prisão, que envolve dinheiro, redes de solidariedade e auxílio, cuidado com os filhos e o lar que ficou “do lado de fora”. Ou seja, existe um laço ainda latente que é reatualizado nos dias de visita e que torna-se importante para se pensar em estratégias de promoção da saúde.

As agentes prisionais representam, por um lado, o sistema repressivo. São elas que demarcam a entrada para a prisão. Elas são a incorporação do poder do Estado naquele contexto. Por outro lado, as agentes também podem ser vistas como “aliadas” das famílias e das próprias presas. Não raras vezes, elas assumem a função de mediação entre as famílias e as presas. Melhor dizendo, as agentes penitenciárias também auxiliam no contexto da prisão: organizam redes de solidariedade entre as famílias das presas, colaborando na obtenção de recursos ou alimentos para famílias que estão em necessidade e acionando outros atores (como os religiosos, de assistência social) quando as famílias assim solicitam (ou quando elas próprias avaliam ser necessário). As agentes penitenciárias cumprem uma função que não é totalmente alcançável pelo Estado. Dessa forma, elas podem ser pensadas como agentes ativas no processo de produção de solidariedade para com as presas e devem ser alvo de ações em termos de promoção da saúde, visto que isso terá impacto no cotidiano das presas.

As visitantes também são peças chave no contexto dos dias de visita. Elas organizam as rotinas das presas no contexto externo à prisão. As visitantes servem para (re)conectar a presa a outras realidades, especialmente aquelas do dia a dia vivido por sua rede de sociabilidade fora dos muros do presídio. É importante salientar que as visitantes são também movidas pelas vontades das presas: elas assumem um papel de mediação entre os mundos da prisão e fora, mas também de produção da realidade externa de acordo com as expectativas da presa. O inverso pode ser igualmente verdadeiro: as visitantes têm um papel ativo na construção da realidade dentro do presídio. Cabe destacar que elas estão em constante reconhecimento: elas ensinam, umas as outras, a arte de “puxar cadeia”.

“Puxar cadeia” é uma expressão utilizada para falar sobre o tempo que é e será vivido dentro da prisão e todas as consequências disso nas vidas dos envolvidos. Não apenas as mulheres que estão em situação de reclusão “puxam cadeia”, mas também os familiares e os amigos próximos. O trabalho na PFDF mostra que a situação de prisão transcende a mulher que está vivendo dentro da penitenciária de Brasília e engloba um conjunto complexo de sujeitos e de ações. As pessoas precisam aprender a “puxar cadeia” e, com isso, aprender diferentes estratégias de reconfiguração da vida e de vivencia com a prisão.

Os outros dois atores extremamente importante nos dias e visita são os vendedores e as religiosas. Esses dois grupos auxiliam na produção de redes de cuidado entre os diferentes personagens do dia de visita. Os vendedores conhecem todas as visitantes e, muitas vezes, suas histórias. Contam os acontecimentos de dentro e de fora do presídio e, caso necessário, acionam as famílias das presas para a resolução de algum conflito.

As religiosas assumem, da mesma forma, um papel importante nessa teia de solidariedade. Todas as quintas-feiras, elas estão no lado de fora da PFDF servindo café da manhã para as visitantes. Dizem que estão naquele lugar para “alimentar o corpo e a alma” daqueles que por ali passam. Além do café, as religiosas rezam com os demais atores dos dias de visita e são acionadas para variadas questões, sejam elas auxílios socioassistenciais (como comidas, roupas ou outros itens que estejam faltando para as famílias), ou acalentos espirituais. Como dito, elas também assumem importante função na resolução dos problemas cotidianos das famílias das mulheres presas na PFDF.

A relação produzida pelas personagens do dia de visita é mediada pela prisão. Inegavelmente, e seguindo os pressupostos metodológicos e teóricos de Goffman18, o objeto da interação naquele contexto são os problemas entre as presas, suas famílias e o Estado. As histórias que circulam nesse espaço estão sempre relacionadas a acontecimentos do sistema prisional. Não raras vezes, as visitantes já viveram situações de prisão em algum momento de sua história. Ainda, outros familiares já passaram pelo sistema prisional: filhas ou filhos, esposos, pais, mães.

Nas histórias que circulam entre os atores do dia de visita, o acesso e a busca por advogados é uma das mais importantes. Estes são classificados em dois tipos: os que são e os que não são pagos pelas familiares. Experiências com advogados pagos ou não são trocadas entre as visitantes e os demais. Os frequentadores daquele espaço detêm uma lista considerável de nomes desses profissionais e/ou instituições que prestam este tipo de serviço. As indicações são mediadas pela capacidade “resolutiva” de determinado profissional ou instituição. As instituições públicas e/ou os advogados “gratuitos” são, em geral, desvalorizadas pelos atores do dia de visita: as histórias que circulam são sobre a “falta de vontade” na resolução das questões das presas. O mesmo se fala sobre o acesso a outras políticas públicas, especialmente as de distribuição de renda.

Poderíamos dizer que os dias de visita são importantes para a produção da relação entre a presa e a realidade fora dos muros da PFDF. Eles servem como um processo contínuo de (re)atualização das diversas demandas oriundas da família que está fora e da presa que está dentro da prisão. Histórias sobre as situações de saúde dos membros é muito comum. Os dias de visita produzem as trocas necessárias para a manutenção dos laços entre os familiares separados pela situação de prisão. Assim, eles são espaços de produção de redes de cuidado indispensáveis para a promoção da saúde das mulheres presas.

Os dias de visita também criam novos laços de solidariedade. Os diferentes atores presentes na PFDF constroem elos entre si para a produção de respostas para as diferentes demandas apresentadas pela prisão. Nos dias de visita, as visitantes vão aprendendo e ensinando as melhores formas de “puxar cadeia” e produzindo estratégias para a superação das adversidades cotidianas. Os dias de visita auxiliam as familiares das mulheres presas a encontrar brechas criativas nas malhas do poder público e a produzir trânsitos nas margens do Estado19.

São as mulheres que visitam. A rede de solidariedade que estamos falando é composta basicamente por mulheres que cuidam umas das outras. São mães, companheiras, amigas (de dentro ou de fora da prisão) que trabalham todas as quintas-feiras para manter o laço social entre a presa e a realidade fora da prisão. Diniz20 faz a relação entre mulheres e cuidado, outro grande traço da construção da feminilidade e das relações de gênero. Fazendo revisão da literatura internacional, a autora20 argumenta que sócio-historicamente, as mulheres são as cuidadoras. É importante salientar que esses laços criados nos dias de visita não são apenas efêmeros: eles se mantêm em outros momentos e contextos, e servem como impulsionadores de transformações estruturais na vida dessas famílias. Muitas vezes, eles são criados no contexto da prisão: mulheres que visitam as presas e adentram para sua teia de sociabilidade.

Os atores e os movimentos dos dias de visita, assim como a rede de cuidado feminina formada no contexto da prisão, são importantes para pensarmos políticas públicas. Um dos argumentos do “cansaço” apresentado pelas familiares é de que o acesso às ações do Estado são difíceis, especialmente após a prisão. Como forma de resolução dessas dificuldades, as familiares das presas da PFDF formam redes de cuidado que auxiliam, pelo menos em partes, a manutenção do cotidiano.

Narrativas do cansaço: prisão e políticas públicas

Os atores que trabalham nas narrativas etnográficas apresentadas acima, circulavam pelo cenário da prisão. As grades da prisão, mesmo que externamente, davam o respaldo e a proteção para as famílias. As conversas e a observação participante estabelecidas nos dias de visita eram resguardadas pelo poder simbólico da PFDF. Isso possibilitava um tipo de contato sem receio: todos que estavam naquele espaço tinham o mesmo objetivo – visitar uma mulher presa – e sabiam sobre os significados e os desafios de “puxar cadeia”. No contexto do dia de visita, não existia a possibilidade (e nem a vontade) de “esconder”: todos lá estavam, de uma forma ou de outra, marcados pela prisão.

Entretanto, quando os pesquisadores se voltaram para as entrevistas, o contexto da produção dos dados foi modificado. A prisão continuava sendo um ponto de referência para as conversas. Porém, nas casas das famílias das presas na PFDF, “ser família de pessoas presas” ganhava outra conotação. Se nos dias de visita os pesquisadores conseguiram perceber o sentido do “puxar cadeia”, nas entrevistas com as famílias nas residências foi necessário compreender os “cansaços” que produzem aqueles sujeitos.

Todas as pessoas entrevistadas relataram ter acessado algum equipamento do Estado, seja ele de saúde, educação ou assistência social. Além das visitas às Unidades Básicas de Saúde (UBS) e aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os relatos giram em torno, principalmente, do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS). “Eu estou muito cansada”, dizem as entrevistadas quando provocadas para falar sobre seus cotidianos e a busca pelo Estado. Estar cansada é a forma como essas mulheres expressam suas batalhas diárias em busca de direitos, serviços e reconhecimentos sociais.

Utilizamos narrativas aqui no sentido dado ao termo por Victor Turner21. Para o autor, elas se estruturam a partir do modelo dos dramas sociais, ou seja, são produzidas a partir de um acontecimento e seguem uma lógica sequencial dividida em estágios que buscam a resolução de problemas. Para Turner21, as narrativas sempre produzem reflexões sobre o cotidiano e por este motivo são tão importantes de serem captadas pelo pesquisador. Ainda, segundo Benjamin22, as narrativas apresentam elementos pedagógicos: elas produzem certas morais sobre os processos socioculturais. Pensando com base nos autores citados, podemos argumentar que refletir sobre as narrativas contadas pelas famílias das mulheres presas é também falar sobre as formas como esses sujeitos produzem suas concepções de mundo e, consequentemente, acessam e/ou buscam políticas públicas.

Dividiremos as narrativas do cansaço em dois subgrupos: o primeiro será responsável pela discussão sobre o “cansaço”, a mulher presa e o cotidiano; o segundo trabalhará especificamente com o cansaço e o Estado.

Cansaço e a organização da rotina

A prisão de uma mulher, especialmente entre os pobres, tem consequências importantes na organização da rotina. Como argumentamos, a mulher é o centro da organização da casa e da família e ela não estando presente, a logística do lar precisa ser radicalmente modificada. O cuidado com os filhos, a gestão e a busca por recursos e as relações sociais são repensadas após o episódio de prisão.

A prisão da mulher é vista de duas formas pelas entrevistadas: por um lado, existe aquelas que consideram a prisão um ato individual e produz uma narrativa de sofrimento pessoal. Essas entrevistadas geralmente tiveram o primeiro contato com a prisão com o encarceramento da mulher atualmente presa, e não apresentam narrativas similares com relação a outros parentes ou conhecidos. Estas pessoas precisam aprender a “puxar cadeia” e produzem sentido em suas novas vidas a partir da reconstrução da história pelo questionamento dos motivos da prisão.

Por outro lado, temos aquelas entrevistadas que trabalham com a prisão como mais um evento em uma vida marcada por incertezas e dificuldades. Diferente do primeiro grupo, esse conjunto de pessoas com quem conversamos apresenta outros episódios de prisão na família ou na rede de sociabilidade próxima. Quando as narrativas sobre a mulher presa são acionadas, surgem outras histórias sobre acontecimentos dos mais variados envolvendo irmãos, companheiros, filhos ou outros conhecimentos. Essas narrativas são envoltas de uma relação truculenta com o Estado e com seu sistema repressivo. Poderíamos dizer que esse conjunto de famílias “puxa cadeia” há mais tempo e ajuda no processo pedagógico das demais que ainda não conhecem a rotina pós-prisão. Independente da relação da família com a prisão (se de longa ou próxima data), todas as entrevistadas se dizem cansadas na reestruturação da rotina. Uma das questões marcantes do cansaço é a necessidade de ir visitar a presa.

As mães relatam estar cansadas em ver a situação vivenciada pela filha na prisão e não conseguir mudar. Elas dizem que “ver a filha daquele jeito” causa muitos problemas: o retorno à rotina é sempre complicado após um dia de visita. Porém, em todos os momentos, elas ressaltam que é melhor visitar a filha do que deixá-la. Isso é um gerador de sofrimento nas famílias.

Isso é especialmente difícil quando se trata do cuidado com os filhos da mulher que está presa. Geralmente as pessoas que visitam estão responsáveis pelas crianças, sendo elas também um disparador das visitas – mesmo não indo sempre visitar a mãe. Entretanto, a logística necessária para o cuidado com as crianças é ainda mais complicada: com quem ficará as crianças? Como “dar uma boa educação” para os meninos? Como fazer com que as crianças não sofram com a ausência da mãe?

As mulheres que visitam buscam responder a essas perguntas em vários momentos. Se a rotina da casa e da gestão financeira e da família é complicada, o cuidado das crianças é relatado como ainda mais problemático. Em vários momentos as mulheres que entrevistamos tiveram que abandonar os empregos para cuidar dos filhos das presas. Não existia outra alternativa para essa questão: o cuidado das crianças era prioridade e a decisão de mudança radical da vida teve que ser tomada. As crianças, assim, passam a ser um sinal diacrítico da mudança da rotina após a prisão da mãe.

A criança que fica assume a posição de um laço que vincula aquela família à mulher que está presa, à um passado específico antes da prisão e a um futuro ainda incerto, quando a mãe/filha sair da prisão. Por este motivo, ela está em meio a um conjunto de discursos que precisam ser refeitos: o cuidado é comunitário (a mãe continua responsável na prisão) e as decisões precisam ser partilhadas. Entretanto, com a prisão da mãe e a responsabilidade direta pelo cuidado dos filhos sendo repassada, a rotina do novo lar da criança irá ser modificada.

Uma grande rede de cuidado é acionada quando necessário. Quando a atual responsável precisa se ausentar, seja para tarefas cotidianas do lar, ou seja para visitar a presa, outras mulheres auxiliam no cuidado com a criança. São chamadas diversas redes que transcendem a consanguinidade e se estendem para os laços de amizade. A mãe, mesmo presa, continua com certa gerência sobre o filho por meio da constante vigilância a partir dos dias de visita. As visitantes atualizam as presas sobre seus filhos e seguem suas orientações na gestão do cotidiano. Da mesma forma, quando algum imprevisto acontece do lado de fora e/ou de dentro da prisão, os profissionais do presídio (assistente social ou psicóloga) são acionados para auxiliar na corrente de informações. Neste último caso, eles telefonam para as famílias e comunicam a presa sobre os acontecimentos.

Cabe destacar que não é objetivo da família ter a guarda formal. A realização deste procedimento é visto como última alternativa e apenas para fins de garantia dos benefícios sociais – e quando vale a pena em termos financeiros (como o Auxílio Reclusão).

Cansaço e Estado

A rotina do cuidado com a casa, as finanças e as crianças e os adolescentes é uma das fontes do cansaço. Não conseguir ver alternativas para problemas financeiros ou organizacionais faz com que as mulheres com quem conversamos cansem. As narrativas da busca por soluções passa pelas redes de solidariedade, próximas ou distantes, e por ações do Estado.

Poderíamos dizer que a primeira tentativa dos sujeitos da pesquisa é a busca por alternativas nas redes de sociabilidade. “Eu me viro” ou “eu faço do jeito que dá” são expressões constantes entre essa população. Isso pode ser analisado do ponto de vista da exclusão histórica que os presos e todos os que “puxam cadeia” com eles sofreram em termos segregacionistas ou da ausência/insuficiência de políticas públicas. E isso aponta, como já discutido no início do capítulo e por autores4-9, para a importância das redes sociais e comunitárias para a promoção da saúde.

Mas as famílias das mulheres presas na PFDF também buscam por políticas públicas. E quando buscam, encontram uma série de dificuldades que apenas faz aumentar o “cansaço” de seu dia a dia. Como já mencionado, problemas financeiros são relatados com bastante frequência pela população deste estudo e são buscadas políticas que possam auxiliar nesse sentido.

As famílias ficam sabendo sobre as políticas sociais especialmente por meio da rede de sociabilidade na qual estão inseridas (em seus locais de moradia ou nos dias de visita). O presídio tem um importante papel na divulgação dessas informações: o “Núcleo de Saúde” no geral, e o serviço social da PFDF especificamente, é acionado em diferentes momentos para dar encaminhamentos para as famílias das mulheres presas, em especial para a busca de políticas de transferência de renda. O assistente social do presídio é lembrado como uma pessoa “que ajuda” e que faz o trabalho de referenciar as famílias para os serviços onde elas poderão resolver sua situação.

Entretanto, nem sempre as famílias conseguem dar prosseguimento aos encaminhamentos realizados na/pela PFDF. De um lado, as famílias contam que recebem as informações do profissional de serviço social do “Núcleo de Saúde” da Penitenciária, dando os elementos que deverão ser levados em consideração para a busca do benefício. De outro, elas relatam um conjunto de outras experiências, sejam elas pessoais ou de outrem, que contradizem os processos relatados pelo profissional.

Os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) são constantemente acionados pelos interlocutores como um dos locais para a busca por políticas do Estado, especialmente benefícios socioassistenciais. As narrativas sobre as buscas pelo CRAS são carregadas de “cansaço”: “eu fui lá mas não consegui, tive que voltar várias vezes, nunca dá certo”. Essa fala é representativa das frustrações que as buscas mal sucedidas geraram na família.

Foram relatados aos pesquisadores longos caminhos para a obtenção de direitos sociais, que muitas vezes impossibilitam a busca por parte das familiares das mulheres presas. A rotina de vida dessas famílias é carregada por um conjunto de obrigações e a busca pelo direito ao benefício é visto como mais um “trabalho” que precisa ser realizado. Ahlert23 se refere a questões semelhantes quando discute o Programa Fome Zero em Porto Alegre. Para a autora, o processo para o recebimento do benefício do programa também é visto como um “trabalho”. Ao invés de ser uma questão positiva, a busca pelos benefícios sociais, torna-se mais uma atividade em uma rotina bastante atarefada.

Além da busca muitas vezes dificultada pelos longos caminhos que devem ser seguidos, a negação do direito também é um dos impeditivos para uma nova tentativa. Muitas das famílias relatam terem realizado todos os procedimentos indicados pelo CRAS e pelo Serviço Social da PFDF, entretanto, não conseguem obter o Bolsa Família. Esta negação vivida, em vários casos mais de uma vez, não é compreendida pelas famílias entrevistadas. As explicações para a negação não fazem sentido dentro da lógica que organiza essas pessoas e isso provoca um certo imobilismo para novas tentativas. As negações nos acessos indicados pelos serviços da assistência social são, de certa forma, generalizadas para todas as políticas públicas e colocam em jogo as demais tentativas possíveis.

A frustração e a dificuldade com a obtenção de direitos é uma constante no cotidiano das famílias. Além dos relatos de negação nas políticas de transferência de renda, as mulheres falam sobre dificuldades com o sistema jurídico. As listas com advogados e defensores públicos acionados é sempre muito grande e a resolução quase nunca chega. Com muita frequência, algumas famílias decidem pagar um advogado particular e, para isso, vendem bens e/ou buscam dinheiro emprestado em alguma frente. Mesmo nessas famílias, as reclamações são constantes: “eu paguei para o advogado e ele não fez nada”. Mais um relato das famílias que produz vulnerabilidade social e gera constrangimentos quando da busca e acesso às políticas públicas.

O preconceito também gera “cansaço”. Foi relatado aos pesquisadores que as famílias não se identificam como famílias de presos, ao contrário, quando possível, a prisão da membro da família é escondido, inclusive de outros familiares. Escutamos relatos oriundos de diferentes frentes como, por exemplo, mulheres que não retornaram para seus estados de origem para visitar os pais para “não ter que contar” o que aconteceu com a filha.

Este também não é um assunto trazido quando do acesso à políticas sociais. Nenhuma das pessoas entrevistadas relatou ter dito aos profissionais dos serviços buscados (UBS e CRAS) que eram familiares de presas. Uma das entrevistadas deixa isso bem evidente: “eu não digo nada não, pra que? Tem preconceito, as pessoas já olham para gente de um jeito, se eu disser vai ser pior”. Além dos itinerários nem sempre bem sucedidos nas buscas por políticas, as famílias ainda precisam se deparar com preconceitos vindos dos serviços do Estado.

Da mesma forma que as famílias aprendem a “puxar cadeia” quando da prisão de um de seus membros, elas agenciam os discursos sobre o presídio em diferentes contextos. Como relatamos, durante os dias de visita, a PFDF possibilita o falar sobre a prisão. Entretanto, outros contextos não permitem esse tipo de discurso, especialmente pelo preconceito gerado quando essa informações é proferida.

Todos os eventos apresentados alimentam as “narrativas do cansaço” das famílias das mulheres presas na PFDF. “Estar cansada” é uma das formas dos sujeitos da pesquisa falarem sobre suas rotinas, suas tentativas e seus insucessos. É uma expressão que fala sobre os caminhos que foram percorridos em busca de políticas públicas e de ações do Estado, mas que não tiveram êxitos obtidos.

O cansaço das famílias das presas no DF nos revela as formas de organização dessa população. Poderíamos dizer que as histórias contadas sobre o cansaço tornam as famílias ainda mais vulneráveis. O cansaço nos fala sobre as dificuldades encontradas pelas mulheres que cuidam de suas familiares presas. É importante salientar que essas mulheres estão marcadas por outros processos sociais igualmente excludentes: são mulheres, em geral negras e pobres e, além do mais, “puxam cadeia” com suas familiares. O cansaço vulnerabiliza essas famílias e precisa ser levado em consideração na elaboração de políticas públicas.

Considerações Finais

A pesquisa demonstrou que existe uma intensa relação entre as presas na PFDF e as visitantes. As famílias são mobilizadas no intuito de visitar a familiar que está presa. O ato de visitar significa também uma renovação constante dos laços de sociabilidade que unem esses sujeitos sociais e serve como uma retroalimentação quanto às notícias de fora e de dentro da prisão. No intuito de cuidar de suas familiares presas, as mulheres que visitam também reconfiguram suas rotinas fora da prisão e constroem uma nova vida na qual o episódio da prisão (e a familiar presa) aparece com destaque nas tomadas de decisão.

A PNAISP amplia o olhar sobre a saúde da população carcerária brasileira para além dos muros da prisão. Para a Política, é preciso o respeito pelos direitos humanos e a articulação de diferentes ações, inclusive com as redes de sociabilidade das pessoas que vivem em situação de prisão. As famílias, neste sentido, podem ser vistas como um espaço propício para a realização de ações para garantir a qualidade de vida daqueles que estão fora da PFDF e, consequentemente, das que encontram-se em regime de prisão.

As narrativas de cansaço que foram apresentadas pelas famílias das mulheres presas na PFDF apontam para, pelo menos, duas questões importantes para pensarmos em termos de promoção da saúde da população penitenciária feminina. A primeira é que existe um vínculo importante entre os dois mundos cortados pelas grades da prisão, traduzido pela expressão “puxar cadeia”. Tanto as presas, quanto sua rede de relações “puxam cadeia”. Este vínculo, especialmente com as visitantes, produz a manutenção das relações sociais das presas e, neste sentido, possibilita uma possível reinserção na família de origem. O que as narrativas trabalhadas nos dizem é que, de alguma forma, os dias de visita podem ser elementos essenciais para a qualidade de vida, tanto da presa, quanto de seus familiares. Como nos aponta a literatura4-10, a manutenção dos laços sociais pode ser pensada em termos de determinantes sociais da saúde.

Histórias sobre seus “cansaços” com relação ao dia a dia e ao acesso a direitos sociais são outras questões importantes. Quando as famílias contam sobre o cansaço, elas estão falando sobre as dificuldades vivenciadas no cotidiano com repercussões nas suas vidas e, consequentemente, de suas familiares presas. Com essas narrativas, elas estão falando sobre processos de vulnerabilidade social que as colocam em situação ainda mais complicadas e que vão impactar em sua saúde.

O dia a dia das famílias é repleto de incertezas. A prisão da familiar provoca mudanças significativas: o cuidado com a casa e com as crianças, a obtenção de recursos, as idas constantes ao presídio. O desafio posto após a prisão da familiar é significativo e gera modificações importantes na vida dos envolvidos. Para garantir o dia a dia, as famílias recorrem, muitas vezes, a redes de solidariedade. Esta busca por outros auxilia na resolução de alguns dos problemas impostos na nova rotina.

A busca por políticas públicas é outro fator preponderante quando as famílias relatam o cansaço. O Estado aparece nas narrativas desses sujeitos como um dos caminhos possíveis para a resolução dos problemas do cotidiano, seja com relação à prisão da família (os advogados e o sistema jurídico), seja com relação à gestão da rotina (especialmente questões financeiras e de cuidado dos filhos e da casa). As políticas públicas, de assistência social e saúde, adentram para a esfera do cuidado da família como um fator de dificuldade, gerando o inverso do que seria recomendado: ao invés de acessos, sentimentos de cansaço. Este aparece como uma linguagem para se falar das dificuldades em obter ações e serviços para fora da rede de relações, especialmente aquelas ofertadas pelo Estado.

O vínculo dificultado com o Estado e suas ações inviabiliza uma série de buscas por parte destas famílias. As histórias de tentativas não resolvidas e alguns preconceitos vividos praticamente impõem a invisibilidade: o constante de negações recebidas pelas famílias faz com que as buscas se diminuam ao longo do tempo. Ao mesmo tempo, alimenta um jogo de negação da condição de prisão perante as políticas públicas, que dificulta o acesso do Estado à essa população. Por este motivo que as famílias de pessoas presas, especialmente mulheres, não são conhecidas pelas ações do poder público.

“Estar cansada” pode ser um fator desafiador para a promoção da saúde das famílias e das mulheres presas na PFDF. Primeiro, por serem carregadas de sofrimento e de acessos negados, gerando instabilidade quanto à confiança nas ações do Estado. Segundo, por gerarem um conjunto de conflitos intrafamiliares e poder provocarem rompimentos com a mulher presa, especialmente se não for mais possível garantir as visitas nos dias indicados. Compreender as narrativas do cansaço poderá auxiliar na promoção da saúde das mulheres presas na PFDF e suas famílias.

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