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Fatores associados a amputações por pé diabético

Fatores associados a amputações por pé diabético

Autores:

Isabel Cristina Ramos Vieira Santos,
Eduardo Freese de Carvalho,
Wayner Vieira de Souza,
Emídio Cavalcanti de Albuquerque

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Vascular Brasileiro

versão impressa ISSN 1677-5449

J. vasc. bras. vol.14 no.1 Porto Alegre jan./mar. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.20140049

INTRODUÇÃO

As ulceras do pé diabético e as resultantes amputações de membros inferiores constituem complicações complexas, comuns, dispendiosas e incapacitantes do diabetes. Sua prevalência vem aumentando em todo o mundo e a incidência de úlceras do pé diabético está aumentando com uma taxa mais elevada do que a das outras complicações do diabetes 1 , 2.

Nos Estados Unidos, os pacientes diabéticos correspondem a cerca de 3% da população total e mais de 50% deles são submetidos à amputação de membros inferiores. Cerca de 1 a 4% de pacientes diabéticos desenvolvem úlceras nos pés por ano e, em 15%, pelo menos uma vez na vida 2 , 3.

Além disso, estima-se que 30 a 50% dos que realizaram uma amputação irão requerer amputações adicionais dentro de 1 a 3 anos e 50% morrerão dentro de 5 anos após a primeira amputação de nível maior1.

O diabetes e especificamente o problema do pé diabético representam grave adversidade ao sistema de saúde pública. Vários países da Europa, além de organizações como a Organização Mundial de Saúde e a Federação Internacional de Diabetes, têm estabelecido metas para reduzir as taxas de amputações em até 50%4.

Esta meta pode ser alcançada através da implementação de medidas simples de assistência preventiva, de diagnóstico precoce e de tratamento mais resolutivo nos estágios iniciais da doença 4 - 7.

Embora polêmica, a taxa de amputações de membros inferiores tem sido considerada um indicador da qualidade dos cuidados do pé diabético. Dessa forma, o entendimento dos fatores associados à utilização de serviços hospitalares é fundamental para o acompanhamento da assistência preventiva, sobretudo no que diz respeito a agravos potencialmente evitáveis nesse nível de atenção8.

Este estudo objetivou identificar a existência de associação entre amputações e fatores relacionados às pessoas, à morbidade e à atenção básica.

MÉTODOS

Estudo epidemiológico de corte transversal, em que, a partir do desfecho, ou seja, da ocorrência de amputações devido a pé diabético, busca-se identificar associações com fatores relacionados às pessoas, à morbidade e à Atenção Básica (preventiva) recebida, tendo em vista que este agravo pode ser evitado, de acordo com as ações preventivas realizadas.

Como local para o estudo, foi escolhido um dos maiores hospitais da rede de saúde pública de Pernambuco e, por constituir um dos três hospitais do Estado com especialidade em clínica vascular que recebe os pacientes com pé diabético.

A população do estudo correspondeu a todos os portadores de pé diabético internados para tratamento, totalizando 151 pacientes, dos quais, mediante aplicação dos critérios de inclusão - pacientes com diagnóstico de pé diabético isquêmico, neuropático ou infeccioso, atestado no prontuário, com lesões de grau 2 a 5, segundo sistema de classificação de Wagner - e de exclusão - não ter sido atendido previamente pela atenção básica e falta de condições físicas e/ou mentais para responder aos questionamentos, foram considerados válidos, para o estudo, 137 pacientes, ou seja, 90,7% da população internada com o agravo de interesse.

Foi utilizado um questionário construído a partir do Consenso Internacional sobre Pé Diabético9 e do Manual de Hipertensão Arterial e Diabetes Mellitus10, instrumento normativo do Ministério da Saúde para reorganização da atenção básica a essas duas doenças.

O procedimento inicial consistiu na busca diária de internamentos de portadores de pé diabético na clínica vascular, utilizando-se, para tanto, o censo da referida clínica e os respectivos prontuários para seleção dos pacientes de interesse ao estudo; em seguida, realizou-se a aplicação do questionário, em entrevista com o paciente, após consentimento declarado pelo mesmo.

Foram consideradas, neste estudo, como amputações, tanto as de nível maior, ou seja, acima do nível do médio tarso, como as de nível menor (desarticulação do médio tarso ou abaixo dele)9.

Além da variável dependente 'ocorrência de amputação', as variáveis independentes estudadas relacionaram-se às pessoas (idade, sexo, procedência, escolaridade e renda), à morbidade (tempo de diagnóstico de DM-TDM, momento do conhecimento do diagnóstico de DM, situação do diagnóstico de DM, tempo de ocorrência do problema atual, tempo de atendimento, presença de gangrena à admissão, glicemia à admissão, tabagismo e amputação anterior) e à Atenção Básica (preventiva) recebida (número de consultas, realização de exame de glicemia, informação a respeito dos resultados da glicemia, exame dos pés, orientação sobre cuidados com os pés, orientação nutricional e sobre atividade física, uso de medicamento para controle do DM e disponibilidade de medicamento, sendo todos os dados referentes ao último ano).

A análise estatística envolveu a construção de distribuições de frequências e, para avaliar a independência entre variáveis explanatórias e a variável 'amputação', foi utilizado o teste Qui-quadrado com correção de Yates.

Tanto na análise bivariada como na multivariada utilizou-se o odds ratio (OR) como estimador do risco relativo, com intervalo de 95% de confiança (IC 95%). Para o processo de modelagem, adotou-se a regressão logística com o objetivo de predizer a probabilidade da variável resposta (amputação), em função das variáveis explanatórias, segundo o modelo.

Todas as variáveis associadas a amputações (p≤0,20) na análise bivariada foram incluídas no modelo logístico inicial, exceto aquelas com frequência muito baixa e com odds elevado, sugerindo fator de confusão. A partir de então, as variáveis foram excluídas, uma a uma, pelo método de Backward Stepwise (Likelihood Ratio). Todas as análises foram realizadas com uma significância de 5%.

O software SPSS na versão 13.0 foi utilizado para digitação dos dados, com dupla entrada, e para as análises.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa segundo número de registro CAAE: 1025.0.000.095-06.

RESULTADOS

Dos 137 pacientes estudados, 85 haviam sido submetidos a alguma amputação, enquanto 52 se encontravam em curso de procedimentos conservadores (revascularizações ou procedimentos clínicos).

Amputações e fatores relacionados às pessoas

Dos pacientes que realizaram amputações (n=85), observa-se que a faixa etária de 60 ou mais anos foi a mais frequente (61,2%), conforme se apresenta na Tabela 1.

Tabela 1.   Amputaçõese variáveis relacionadas às pessoas. 

Variáveis Amputações OR IC (95%) p-valor*
Sim % Não %
Idade
60 ou + 52 61,2 41 78,8 0,42 0,18-1,00 0,049
Até 60 anos 33 38,8 11 21,2 1
Sexo
Masculino 47 55,3 31 59,6 0,84 0,39-1,79 0,751
Feminino 38 44,7 21 40,4 1
Procedência
RMR 50 58,8 40 76,9 0,43 0,18-0,99 0,048
Interior 35 41,2 12 23,1 1
Escolaridade
0-4 anos 45 52,9 37 71,2 0,46 0,20-1,01 0,054
4 anos ou + 40 47,1 15 28,8 1
Renda**
Até 3 SM 71 83,5 50 96,2 0,20 0,03-1,00 0,050
3 SM ou + 14 16,5 2 3,8 1

* Teste Qui Quadrado com correção de Yates. ** SM = salário mínimo.

Ao se testar a associação entre amputação e a variável 'sexo', se verificou que os pacientes de sexo masculino realizaram mais amputações quando comparados aos de sexo feminino; porém, não foi encontrada diferença significativa (p=0,751). Também se verifica maior ocorrência de amputações dentre os residentes na região metropolitana (58,8%).

A escolaridade e a renda apresentaram maior frequência para as classes de 0-4 anos de estudo (52,9%) e de até três salários mínimos (83,5%), respectivamente. Foram encontradas diferenças estatisticamente significativas para idade, procedência e renda, no nível de 5%.

Amputações e fatores relacionados à morbidade

O tempo decorrido do diagnóstico de diabetes mellitus (TDM) referido pelos pacientes submetidos à amputação foi superior a cinco anos, sendo que a maior parte deles (71,4%) referiu ter conhecimento do diagnóstico apenas após alguma internação e 54,1% deles só souberam ser diabético após desenvolver úlcera nos pés (Tabela 2).

Tabela 2.   Amputações e variáveis relacionadas à morbidade. 

Variáveis Amputações OR IC (95%) p-valor*
Sim % Não %
TDM
+ de 5 anos 42 50,6 29 55,8 0,81 0,38-1,73 0,683
Até 5 anos 41 49,4 23 44,2 1
Momento do conhecimento
Depois do internamento 60 71,4 22 44,0 3,18 1,53-6,61 0,003
Antes do internamento 24 28,6 28 56,0 1
Diagnóstico DM
Após problemado pé 46 54,1 41 78,8 0,32 0,13-0,74 0,006
Antes do problema do pé 39 45,9 11 21,2 1
Tempo de ocorrência do problema atual
+ de 1 mês 71 83,5 32 61,5 3,17 1,33-7,64 0,007
Até 1 mês 14 16,5 20 38,5 1
Tempo de atendimento
+ de 1 mês 69 81,2 32 61,5 2,70 1,15-6,33 0,019
Até 1 mês 16 18,8 20 38,5 1
Gangrena à admissão
Sim 73 85,9 34 65,4 3,22 1,39-7,43 0,009
Não 12 14,1 18 34,6 1
Glicemia à admissão
126 mg/dL ou + 56 65,9 47 45,6 0,21 0,06-0,62 0,003
Até 126 mg/dL 29 34,1 5 9,6 1
Tabagismo
Sim 70 82,4 22 42,3 6,36 2,90-13,93 0,000
Não 15 17,6 30 57,7 1
Amputação anterior
Sim 78 91,8 38 73,1 4,11 1,53-11,01 0,007
Não 7 8,2 14 26,9 1

* Teste Qui Quadrado com correção de Yates.

Os pacientes estudados referiram apresentar o problema atual com os pés havia mais de um mês (83,5%) e um tempo superior a um mês para receber atendimento (81,2%). Pela análise bivariada, esses pacientes apresentaram uma probabilidade de três vezes (IC 95%: 1,33-7,64) e 2,7 vezes (IC 95%: 1,15-6,33), respectivamente, de sofrerem uma amputação.

A presença de gangrena à admissão esteve presente em 85,9% dos pacientes submetidos à amputação e mostrou uma chance três vezes maior para aqueles que apresentavam esta complicação à admissão hospitalar de serem submetidos a uma amputação.

O estado glicêmico à admissão demonstra que 65,9% dos pacientes submetidos à amputação chegam ao hospital com valores superiores ao ponto de corte. A média encontrada foi 212 mg/dL, mediana de 183 mg/dL ± 86,7. Observou-se diferença estatisticamente significativa para esta variável e a ocorrência de amputação (p = 0,003).

Dentre os pacientes submetidos à amputação, 82,4% referiram ser tabagistas e a diferença encontrada entre os que fumam e os que não fumam em relação à ocorrência de amputação foi significante no nível de 1%, com uma probabilidade maior, de 6,4 vezes (IC 95%: 2,90-13,93), para ocorrência de amputação entre os que fumam.

A realização de amputação anterior mostrou uma alta prevalência dentre os submetidos à amputação no último internamento (92%). A análise desta variável mostrou diferença estatística significativa no nível de 5%, confirmando associação entre esta e a ocorrência de amputação atual. Aqueles que a haviam realizado apresentaram, segundo análise, uma chance maior, de 4 vezes (IC 95%: 1,53-11,01), para uma amputação no último internamento.

Amputações e fatores relacionados à Atenção Básica (preventiva) recebida

Pouco mais da metade dos pacientes submetidos à amputação (52,9%) afirmou ter realizado até três consultas no ano anterior e a diferença entre estes e os que realizaram mais consultas mostrou diferença estatística no nível de 5%, mostrando-se associada à ocorrência de amputação, segundo resultados da Tabela 3.

Tabela 3  Amputações e variáveis relacionadas à atenção básica (preventiva) recebida. 

Variáveis Amputações OR IC (95%) p-valor*
Sim % Não %
N.º consultas
Até 3 45 52,9 41 78,8 0,30 0,13-0,71 0,004
+ de 3 40 47,1 11 21,2 1
Exame de glicemia
Não 59 72,8 24 49,0 2,79 1,33-5,87 0,011
Sim 22 27,2 25 51,0 1
Informação dos resultados
Não 59 71,1 22 45,8 2,91 1,38-6,09 0,007
Sim 24 28,9 26 54,2 1
Exame dos pés
Não 69 81,2 28 56,0 3,39 1,45-7,97 0,003
Sim 16 18,8 22 44,0 1
Orientação sobre cuidados com os pés
Não 63 74,1 20 39,2 4,44 1,98-10,02 0,000
Sim 22 25,9 31 60,8 1
Orientação nutricional
Não 19 23,8 12 25,0 0,93 0,38-2,33 0,958
Sim 61 76,3 36 75,0 1
Orientação sobre atividade física
Não 39 48,8 20 41,7 1,33 0,61-2,92 0,552
Sim 41 51,3 28 58,3 1
Uso medicamento DM
Não 50 58,8 15 28,8 3,52 1,68-7,38 0,001
Sim 35 41,2 37 71,2 1
Disponibilidade de medicamento
Não 18 21,2 14 28,0 0,69 0,29-1,67 0,490
Sim 67 78,8 36 72,0

* Teste Qui Quadrado com correção de Yates.

Analisando-se a realização de exame de glicemia plasmática no último ano, observa-se que 72,8% dos pacientes que realizaram amputação informaram não tê-lo feito, assim como 71,1% deles relataram não ter recebido informação sobre os resultados do referido exame. Estas duas variáveis apresentaram diferenças estatísticas significativas com uma chance maior da ocorrência de amputação de quase 3 vezes (IC 95%: 1,33-5,87 e 1,38-6,09), respectivamente, para que os pacientes que não realizaram exame de glicemia e que não receberam informação sobre seu resultado estejam expostos à ocorrência de uma amputação.

Sobre exame e orientações relativas ao cuidado com os pés, ambas as variáveis mostraram diferenças significantes. Dos pacientes submetidos à amputação, 81,2% negaram ter os pés examinados nas consultas realizadas (OR: 3,39; IC 95%: 1,45-7,97) e 74,1% deles referiram não ter recebido orientações sobre o cuidado com os pés (OR: 4,44; IC 95%: 1,98-10,02).

Quando analisado o desfecho de amputação em relação às orientações nutricional e sobre atividade física, verifica-se que não houve diferenças significativas.

Quanto às variáveis referentes à utilização de medicamentos para o controle da doença, 58,8% dos pacientes relataram não fazer uso de medicamentos (p=0,001), embora 78,8% deles tenham referido haver disponibilidade do medicamento na unidade de saúde. A diferença encontrada para esta última variável em relação às amputações não foi estatisticamente significativa. O não uso de medicamento para DM mostrou-se associado à ocorrência de amputação, com uma chance maior, de 3,5 vezes (IC 95%: 1,68-7,38).

O resultado da análise por regressão logística das variáveis relacionadas às pessoas, à morbidade e à atenção básica (preventiva) recebida é apresentado na Tabela 4.

Tabela 4.   Análise multivariada de variáveis associadas à ocorrência de amputações. 

Variáveis OR IC [95%] p-valor
Procedência
Interior 1,000 - 0,072
RMR 0,357 0,116-1,098
Gangrena à admissão
Não 1,000 - 0,068
Sim 3,086 0,920-10,352
Tempo de ocorrência do problema atual
Até 1 mês 1,000 - 0,007
+ de 1 mês 4,419 1,502-13,007
Glicemia à admissão
Até 126 mg/dL 1,000 - 0,113
> 126 mg/dL 0,297 0,066-1,332
Diagnóstico DM
Antes do problema do pé 1,000 - 0,043
Após problema do pé 0,298 0,092-0,962
N.º consultas
+ de 3 1,000 - 0,045
Até 3 0,299 0,092-0,974
Informação dos resultados
Sim 1,000 - 0,016
Não 3,341 1,254-8,899
Orientação sobre cuidadoscom os pés
Sim 1,000 - 0,018
Não 3,583 1,243-10,328

RMR: região metropolitana de Recife.

Conforme se verifica, o tempo de ocorrência do problema atual superior a um mês (OR= 4,419; IC95%: 1,502-13,007) e a falta de orientação sobre cuidados com os pés (OR=3,583; IC95%:1,243-10,328) estão fortemente associados à ocorrência de amputações. Também estão associados ao desfecho a não informação sobre os resultados dos exames de glicemia feitos (OR=3,341; IC95%: 1,254-8,899) e a presença de gangrena à admissão (OR=3,086; IC95%: 0,920-10,352).

DISCUSSÃO

Em vários estudos, a idade aparece como fator de risco para amputações por pé diabético 3 , 8 , 11 , 12. Especificamente, neste estudo, apesar de mostrar diferença estatística significativa pela análise bivariada, a mesma não permaneceu no modelo final de regressão.

Por outro lado, a procedência mostrou-se associada à ocorrência de amputações nas duas análises, observando-se maior frequência de residentes da Região Metropolitana dentre os pacientes submetidos à amputação. O conhecimento sobre a procedência dos pacientes em relação ao agravo pé diabético e à amputação propicia uma maior reflexão sobre as condições sociais da população em risco, ao mesmo tempo em que permite interrogar sobre a situação do referido agravo no interior do Estado, que necessita de maiores investigações.

O conhecimento da doença (DM) somente após o desenvolvimento de problemas nos pés atesta para existência, ainda, de dificuldades quanto ao diagnóstico e ao acompanhamento do diabetes mellitus. Sabendo-se que a ocorrência do pé diabético está associada à longa duração da doença e ao mau controle metabólico 4 , 12 , 13, essas ações prestadas pela Atenção Básica têm relação direta com a prevalência de amputações por pé diabético.

Corroborando com isso, o tempo de ocorrência do problema atual é indicativo da ocorrência mais recente, seja a primeira ou a continuação de um processo de muitos anos, e pode expressar tanto a necessidade de assistência como as dificuldades de acesso e utilização do serviço de saúde.

Os resultados encontrados mostraram diferenças significativas para aqueles que apresentaram o problema com o pé havia mais de um mês. A análise multivariada mostrou que o grupo que apresentou úlcera no pé em período superior a um mês tem uma probabilidade três vezes maior de chegar a uma amputação do que aqueles que detectaram seu problema em menos tempo, constituindo-se, dessa forma, fator de risco para amputação; note-se que, quanto a isto, não se verificam na literatura parâmetros para comparação.

A variável 'gangrena à admissão' indica a gravidade do caso ao ser atendido por unidade de atenção à saúde de maior nível de complexidade, de modo que aqueles que apresentam gangrena à admissão hospitalar têm uma chance três vezes maior de serem submetidos a uma amputação quando comparados àqueles sem esta condição.

Este achado evidencia, a princípio, a falta de acesso ou adesão por parte destes pacientes à atenção básica e soma-se a outros fatores de risco para amputação, como tempo de conhecimento da doença e tempo de ocorrência do problema atual. Tendo em vista que o agravo do pé diabético é evitável através do diagnóstico precoce e de medidas preventivas, as altas frequências aqui encontradas para gangrena ao ser admitido no hospital, o conhecimento do DM somente após a ocorrência de um problema no pé e a evolução da úlcera do pé em tempo superior a um mês denunciam problemas na efetividade dessas ações.

As altas taxas de hiperglicemia à admissão encontradas neste estudo são concordantes com outras pesquisas 3 , 14. Embora se tenha verificado associação entre o grupo com valores de glicemia superior a 126 mg/dL e a ocorrência de amputações, tanto a análise através do Odds ratio como por regressão logística mostraram uma fraca associação entre esta variável e a ocorrência de amputações, provavelmente por influência do pequeno quantitativo de pacientes analisados.

Segundo vários estudos, o mau controle glicêmico favorece a instalação e o desenvolvimento das complicações crônicas, e aumenta o risco de neuropatia, um dos fatores preponderantes para o desencadeamento de lesão/ulceração nos pés; no entanto, não existem estudos que demonstrem relação direta entre hiperglicemia e a ocorrência de amputações 11 , 13 - 15.

Existe evidência consistente de que qualquer melhora no controle da glicemia diminui o risco e a progressão das complicações microvasculares e neuropáticas 6 , 9.

No que se refere à informação sobre os resultados desse exame, o não conhecimento sobre o valor normal da glicemia apresentou-se associado à perda do membro na última internação com uma chance maior de ocorrência de três vezes.

O precário controle metabólico, assim como a não informação do resultado, são fatores que comprometem o manejo adequado do pé diabético, expondo o paciente a um desfecho desagradável.

O reconhecimento da corresponsabilização, assim como da necessidade de desenvolvimento de autonomia e protagonismo do indivíduo com Diabetes, a partir do estabelecimento de vínculos solidários entre profissionais da Atenção Básica e usuários, tem o potencial para melhorar o autocuidado, por causa do provável efeito positivo de satisfação do mesmo na adesão ao tratamento. Por outro lado, o paciente que não adere ao tratamento tem probabilidade 50 vezes maior de ulcerar o pé e 20 vezes maior de ser amputado do que aqueles que seguem corretamente as orientações 6 , 16 , 17.

O número de consultas realizadas no último ano, de até três, quando comparado ao tempo de ocorrência do problema atual, aos altos valores de glicemia e à presença de gangrena à admissão, revela dificuldades no acompanhamento pela atenção básica e depõem para a carência de cobertura e rastreamento dessa complicação.

O instrumento de capacitação dos profissionais da atenção básica recomenda que, em face de complicações crônicas, em pacientes instáveis e com controle inadequado, as consultas devem ser feitas a cada dois ou três meses, equivalendo, portanto, a quatro ou seis vezes ao ano10. O Consenso Internacional sobre Pé Diabético orienta que pacientes com história de amputação prévia devem realizar uma consulta entre um e três meses9.

A não realização do exame dos pés no último ano com vistas à prevenção ou ao controle do pé diabético mostrou uma probabilidade de 3,39 vezes de estes pacientes serem submetidos a uma amputação, segundo análise bivariada; observe-se, ainda, que, acompanhando estes resultados, a falta de orientação quanto aos cuidados com os pés apresentou uma chance maior, de aproximadamente 3,6 vezes, dos pacientes que não receberam orientação necessitarem de uma amputação, segundo modelo final de regressão.

Vários estudos insistem na importância de uma intervenção proativa, com abordagem por equipe multidisciplinar, tendo como alvo de cuidados a população de alto risco 6 , 8 , 17 , 18.

Segundo o Consenso Internacional sobre Pé Diabético9, as pessoas devem ter, no mínimo, um exame anual de seus pés (em maior número, se o risco de complicações for elevado)9. E assegura-se que este exame é o componente essencial para o manejo adequado desta complicação, mediante investigação da sensação protetora do pé, de sua estrutura, biomecânica, circulação e integridade da pele, através de testes simples e de baixo custo, concordando com vários estudos.

A maior parte dessas medidas está incluída no escopo das atribuições e competências dos profissionais da Atenção Básica, tanto no que se refere ao exame dos membros inferiores para identificação do pé em risco como no desenvolvimento de atividades educativas. Entretanto, apesar de esses profissionais reconhecerem a importância das práticas educativas - citando-as como estratégia eficaz no acompanhamento da doença, bem como alternativa para lidar com a crescente demanda de atendimentos -, alguns relatam dificuldades em relação ao planejamento, à condução e à avaliação desse processo17.

Os achados aqui encontrados quanto ao exame e às orientações referentes aos pés de pacientes diabéticos revelam que estas práticas ainda não foram incorporadas às ações cotidianas da Atenção Básica e se mostram como importantes fatores associados à ocorrência de amputações nestes pacientes, mesmo considerando as limitações metodológicas do estudo.

Uma limitação do estudo se relaciona a um possível viés de memória, uma vez que, a partir de pacientes hospitalizados por pé diabético, buscou-se resgatar os fatores relacionados à atenção preventiva previamente recebida. No entanto, acredita-se que tal viés foi minimizado, devido à sua relação com o problema atual.

Dentre os fatores associados à amputação de membros inferiores por pé diabético encontrados neste estudo, destacaram-se aqueles relacionados à Atenção Básica (preventiva) recebida, especialmente quanto ao maior tempo de ocorrência do problema com o pé, à falta de informação dos resultados dos exames de glicemia e à falta de orientação sobre cuidados com os pés.

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