Compartilhar

Fatores associados à desnutrição em pacientes adolescentes e adultos com fibrose cística

Fatores associados à desnutrição em pacientes adolescentes e adultos com fibrose cística

Autores:

Gabriela Cristofoli Barni,
Gabriele Carra Forte,
Luis Felipe Forgiarini,
Claudine Lacerda de Oliveira Abrahão,
Paulo de Tarso Roth Dalcin

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Brasileiro de Pneumologia

versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756

J. bras. pneumol. vol.43 no.5 São Paulo set./out. 2017 Epub 31-Jul-2017

http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562016000000319

INTRODUÇÃO

A fibrose cística (FC) é a mais comum doença autossômica recessiva limitante da vida em indivíduos brancos e é causada pela ausência ou disfunção da proteína cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR, reguladora de condutância transmembrana da fibrose cística). Sabe-se que mutações no gene CFTR alteram a via aérea e o microambiente intestinal.1,2 A proteína CFTR consiste em um canal de cloreto na membrana apical das células das vias aéreas, bem como no intestino, fígado e tecidos reprodutores; ela afeta a função pancreática exócrina e os ductos sudoríparos. A proteína CFTR regula o transporte de eletrólitos através das membranas dessas células e dele participa. Assim, há uma relação entre sua ausência ou funcionamento parcial e a fisiopatologia da FC.3,4

As manifestações clínicas da doença resultam do aumento da viscosidade das secreções, que resulta em obstrução das células epiteliais dos ductos. O fenótipo clássico da FC ou mucoviscidose é caracterizado por infecções pulmonares, insuficiência pancreática, má absorção de nutrientes, doença hepática, infertilidade masculina e perda de eletrólitos no suor.5

Nos últimos anos, avanços médicos e tecnológicos aumentaram as médias das taxas de sobrevida em todo o mundo, principalmente por meio do diagnóstico precoce da FC, da contribuição de especialistas, de melhores tratamentos e de transplantes de órgãos. Quase metade da população com FC tem 18 anos de idade ou mais.5

O curso clínico da FC e a qualidade de vida dos pacientes são diretamente afetados por seu estado nutricional, e a desnutrição é um dos desafios mais graves e difíceis do tratamento da FC.6 A desnutrição resulta de uma discrepância entre as necessidades energéticas/nutricionais e a ingestão alimentar, que pode ser causada por má absorção.7

A desnutrição e a doença pulmonar estão inextricavelmente entretecidas na FC. Estudos demonstram que o declínio da função pulmonar e a desnutrição estão relacionados e são fatores dependentes. A desnutrição está relacionada com redução da função pulmonar e da sobrevida. Infecções pulmonares crônicas e diminuição da função pulmonar resultam em aumento das necessidades calóricas e diminuição do apetite, que pioram o estado nutricional dos pacientes com FC.8,9 Embora haja um crescente número de estudos sobre desnutrição e FC, esses estudos estão relacionados principalmente com pacientes pediátricos.10,11

Os objetivos do presente estudo foram determinar a prevalência de desnutrição em pacientes de um programa para adultos com FC e investigar a relação da desnutrição com as características clínicas desses pacientes.

MÉTODOS

Desenho do estudo

Trata-se de um estudo transversal, realizado em um único centro, de dados coletados prospectivamente. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, em Porto Alegre (RS). Todos os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.

População

O estudo incluiu pacientes com FC que tinham 16 anos de idade ou mais. Só foram incluídos pacientes cujo diagnóstico havia sido baseado em critérios de consenso.12 Além disso, só foram incluídos pacientes clinicamente estáveis, isto é, aqueles sem nenhuma mudança atual de medicamentos e sem uso de antibióticos por via intravenosa ou oral em virtude de exacerbações pulmonares nos últimos 30 dias. Foram excluídos os pacientes que não aceitaram participar do estudo, aqueles que não preencheram os critérios de inclusão e as gestantes.

Variáveis clínicas

Foram registrados os seguintes dados: idade, sexo, etnia, presença da mutação F508del (homozigótica, heterozigótica ou outras mutações), presença de diabetes mellitus e escore hepático (normal ou anormal).13

Avaliação nutricional

O estado nutricional foi avaliado pelo índice de massa corporal (IMC) e seu percentil. O IMC foi calculado pela relação peso/altura2 (kg/m2). Em pacientes com menos de 20 anos, foi calculado o percentil do IMC. Com base em seu estado nutricional, os pacientes foram divididos em três grupos: nutrição adequada (NA): IMC > 22 kg/m2 para mulheres e IMC > 23 kg/m2 para homens (idade ≥ 20 anos) ou percentil do IMC > 25 (para pacientes com idade < 20 anos); risco nutricional (RN): IMC = 19-22 kg/m2 para mulheres e 19-23 kg/m2 para homens (idade ≥ 20 anos) ou percentil do IMC = 10-25 (para pacientes com idade < 20 anos); desnutrição: IMC < 19 kg/m2 (para pacientes com idade ≥ 20 anos) ou percentil do IMC < 10 (para pacientes com idade < 20 anos).6,14

Estado bacteriológico

Os isolados bacterianos de culturas de escarro dos participantes foram avaliados no Departamento de Microbiologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Foi registrada a presença de Staphylococcus aureus, Pseudomonas aeruginosa e Burkholderia cepacia. A presença de qualquer um dos patógenos supracitados foi confirmada por seu isolamento em amostras de escarro rotineiras no laboratório em pelo menos duas ocasiões, com pelo menos 12 meses de intervalo.

Escore clínico

O escore clínico usado foi o escore de Shwachman-Kulczycki (S-K),15 avaliado pelo médico da equipe de FC em regime ambulatorial.

Testes de função pulmonar

Os testes de função pulmonar foram realizados com um espirômetro computadorizado (MasterScreen v4.31; Jaeger, Würzburg, Alemanha). Foram obtidas pelo menos três curvas, sendo as melhores selecionadas para determinar a CVF e o VEF1, tanto em l como em porcentagem dos valores previstos para a idade, a estatura e o sexo.16

Avaliação da função pancreática

O teste da elastase-1 fecal foi realizado por meio de ELISA monoclonal. As amostras de fezes foram coletadas e armazenadas a −22°C até o momento do teste. O ponto de corte de 200 µg/g foi usado para classificar a função pancreática exócrina dos pacientes (≥ 200 μg/g: suficiência; < 200 μg/g: insuficiência). Os pacientes cujos resultados foram ≥ 100 µg/g, porém < 200 µg/g, foram considerados pacientes com insuficiência pancreática exócrina moderada. Os pacientes com níveis de elastase-1 < 100 µg/g foram considerados pacientes com insuficiência pancreática exócrina grave.17

Adesão ao tratamento dietético

Os pacientes preencheram um questionário (adaptado de outro estudo)18 com três perguntas sobre sua adesão à terapia de reposição enzimática pancreática, ingestão de suplementos multivitamínicos (vitamina A, D, E e K) e dieta hipercalórica (uma dieta rica em energia, proteína e gordura, baseada em um plano de tratamento nutricional e adaptada para atender às necessidades nutricionais de cada indivíduo). Cada pergunta deveria ser respondida com base na frequência semanal de ingestão, da seguinte forma: a) todos os dias ou quase todos os dias; b) 3-5 dias por semana; c) menos de 3 dias por semana ou nunca; d) não se aplica.

Análise estatística

Todos os dados foram processados e analisados por meio do Statistical Package for the Social Sciences, versão 18.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA). Os resultados quantitativos foram expressos em forma de médias e desvios-padrão ou medianas e intervalos interquartis, ao passo que as variáveis qualitativas foram expressas em forma de número de casos e proporções. Dados quantitativos com distribuição normal foram submetidos a ANOVA de uma via com teste post hoc de Tukey. Para dados contínuos com distribuição não normal, foram usados o teste de Kruskal-Wallis e o teste Z post hoc. O teste de qui-quadrado foi aplicado a todos os dados qualitativos, assim como o foi a correção de Yates ou o teste exato de Fisher, conforme necessário. Análises multivariadas foram geradas por meio de análise de regressão logística pelo método enter. Assim, a odds ratio foi a odds ratio para desnutrição. Variáveis selecionadas com p < 0,10 foram introduzidas na regressão logística binária controlada por sexo e idade. Foram então criadas curvas ROC para cada variável preditora identificada na análise de regressão logística, as quais foram usadas para o cálculo da sensibilidade, especificidade e valores preditivos das variáveis clínicas relacionadas com a desnutrição. Todos os testes estatísticos usados foram bicaudais. O nível de significância adotado foi de p < 0,05.

RESULTADOS

No período entre maio de 2013 e maio de 2014, 104 pacientes foram convidados a participar do estudo. Destes, 6 morreram antes que todos os testes fossem concluídos, 1 mudou-se para outro país, 6 não aceitaram participar do estudo e 18 não realizaram o teste da elastase-1 fecal; portanto, a amostra compreendeu um total de 73 pacientes que completaram o estudo. O resultado do teste da elastase-1 fecal foi inconclusivo em 7 pacientes (n = 66), embora o teste tenha sido executado duas vezes. A média de idade dos participantes foi de 25,6 ± 7,3 anos (19 adolescentes e 54 adultos), dos quais 40 (54,8%) eram do sexo feminino e 33 (45,2%) eram do sexo masculino. Todos os participantes eram brancos. A média do IMC foi de 21,0 ± 3,0 kg/m2, e a média do VEF1 foi de 59,7 ± 30,6% do valor previsto. Os grupos foram formados com base no estado nutricional dos pacientes: NA (n = 32; 43,8%); RN (n = 23; 31,5%) e desnutrição (n = 18; 24,7%; Tabela 1).

Tabela 1 Características clínicas dos pacientes incluídos no estudo (N = 73).a 

Variável Resultado
Sexo
Masculino 33 (45,2)
Feminino 40 (54,8)
Idade, anos 25,6 ± 7,3
IMC, kg/m2 21,0 ± 3,0
Classificação nutricional
Nutrição adequada 32 (43,8)
Risco nutricional 23 (31,5)
Desnutrição 18 (24,7)
DRFC 10 (13,7)
Tipo de mutação
Homozigoto para F508del 13 (17,8)
Heterozigoto para F508del 33 (45,2)
Outras mutações/mutações não identificadas 27 (37,0)
Idade no momento do diagnóstico, anosb 8 (16)
Escore de S-K 70,41 ± 16,4
Função pulmonar
CVF, l 3,0 ± 1,24
CVF, % do previsto 71,3 ± 31,5
VEF1, l 2,1 ± 1,1
VEF1, % do previsto 59,7 ± 30,6
Elastase-1 fecal, µg/g 92,3 ± 36,8
Colonização bacteriana
Pseudomonas aeruginosa 48 (65,8)
Staphylococcus aureus 50 (68,5)
SARM 8 (11,0)
Burkholderia cepacia 15 (20,5)

IMC: índice de massa corporal; S-K: Shwachman-Kulczycki; DRFC: diabetes relacionado com a fibrose cística; e SARM: Staphylococcus aureus resistente a meticilina. aValores expressos em forma de n (%) ou média ± dp, exceto onde indicado. bValor expresso em forma de mediana (intervalo interquartil).

A Tabela 2 apresenta uma comparação das características clínicas dos grupos supracitados. Não houve diferenças significativas entre os grupos quanto ao sexo, idade, presença da mutação F508del e escore hepático. A proporção de pacientes com diabetes mellitus foi significativamente maior no grupo RN que nos grupos NA e desnutrição (p = 0,014). O escore de S-K foi significativamente menor nos grupos RN e desnutrição que no grupo NA (p < 0,001). Os valores de CVF e VEF1 em % do previsto foram significativamente menores no grupo desnutrição que nos grupos NA e RN (p < 0,001 para ambos). Os níveis de elastase-1 fecal foram significativamente mais baixos no grupo RN que nos grupos NA e desnutrição (p < 0,001 para ambos). Cinquenta e seis pacientes estavam em terapia de reposição enzimática pancreática, e o número de unidades de enzima/kg/refeição foi significativamente maior no grupo desnutrição que no grupo NA (p < 0,001) e no grupo RN (p = 0,001).

Tabela 2 Comparação dos grupos estudados quanto às características clínicas.a 

Variável Grupo p
Nutrição adequada Risco nutricional Desnutrição
(n = 32) (n = 23) (n = 18)
Sexo
Masculino 11(34,4) 12 (52,2) 10 (55,6) 0,254
Feminino 21 (65,6) 11 (47,8) 8 (44,4)
Idade, anos 25,8 ± 8,8 26,7 ± 6,2 23,8 ± 5,5 0,454
Idade no momento do diagnóstico, anosb 12,0 (18,0) 4,0 (8,0) 9,5 (18,0) 0,043
Escore de S-K 79.5 ± 12.1A 70.6 ± 10B 53.9 ± 17.0C < 0,001
Tipo de mutação
Homozigoto para F508del 5 (15,6) 3 (13,0) 5 (27,8) 0,326
Heterozigoto para F508del 13 (40,6) 10 (43,5) 10 (55,6)
Outras mutações/mutações não identificadas 14 (43,8) 10 (43,5) 3 (16,7)
Escore hepático
Normal 24 (75,0) 17 (73,9) 12 (66,7) 0,806
Anormal 8 (25,0) 6 (26,1) 6 (33,3)
DRFC 1 (3,1) 7 (30,4) 2 (11,1) 0,014
Função pulmonar
CVF, l 3,4 ± 1,2A 3,0 ± 1,1AB 2,2 ± 1,1B 0,002
CVF, % do previsto 83,9±32,3A 73,1±25,5A 46,7± 23,0B < 0,001
VEF1, l 2,5 ± 1,0A 2,1 ± 1,0A 1,3 ± 0,7B < 0,001
VEF1, % do previsto 74,2 ± 30,8A 58,9 ± 25,9A 35,0 ± 18,1B < 0,001
Classificação pelo teste da elastase-1 fecalc
Insuficiência pancreática moderada (100-200 µg/g) 17 (56,7) 6 (28,6)* 13 (86,7)* 0,002
Insuficiência pancreática grave (< 100 µg/g) 13 (43,3) 15 (71,4)* 2 (13,3)*
Elastase-1 fecal, µg/g 94,0 ± 32,6A 70,8 ± 35,4B 119,2 ± 28,9C < 0,001
Colonização bacteriana
Pseudomonas aeruginosa 20 (62,5) 16 (69,6) 12 (66,7) 0,858
Staphylococcus aureus 22 (68,8) 14 (60,9) 14 (77,8) 0,512
SARM 1 (3,1) 4 (17,4) 3 (16,7) 0,166
Burkholderia cepacia 6 (18,8) 6 (26,1) 3 (16,7) 0,718
Unidades de lipase/kg/refeição 725,0 ± 476,4A 830,2 ± 456,9A 1423,9 ± 404,3B < 0,001

S-K: Shwachman-Kulczycki; DRFC: diabetes relacionado com a fibrose cística; e SARM: Staphylococcus aureus resistente a meticilina. aValores expressos em forma de n (%) ou média ± dp, exceto onde indicado. bValores expressos em forma de mediana (intervalo interquartil). cn = 66. *Resíduo-padrão ajustado > 1,96 ou < −1,96 implica porcentagens significativamente diferentes. ANOVA de uma via com teste post hoc de Tukey e teste de Kruskal-Wallis e teste Z post hoc: as médias e medianas foram significativamente diferentes quando as letras em sobrescrito (A, B e C) são diferentes (teste do qui-quadrado para variáveis categóricas).

A Tabela 3 mostra a adesão, segundo o relato dos próprios pacientes, à dieta hipercalórica, terapia de reposição enzimática pancreática e ingestão de suplementos vitamínicos nos três grupos nutricionais. Não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos quanto a essas variáveis.

Tabela 3 Adesão, segundo o relato dos próprios pacientes, à dieta hipercalórica, terapia de reposição enzimática pancreática e ingestão de suplementos vitamínicos, por grupo.  

Variável Grupo p
Nutrição adequada Risco nutricional Desnutrição
Dieta hipercalórica
Alta 25 (78,1) 15 (65,2) 10 (55,6) 0,49
Moderada 4 (12,5) 6 (26,1) 5 (27,8)
Baixa 3 (9,4) 2 (8,7) 3 (16,7)
Terapia de reposição enzimática pancreáticaa
Alta 15 (93,8) 20 (87,0) 15 (88,2) 0,33
Moderada 0 (0,0) 3 (13,0) 2 (11,8)
Baixa 1 (6,3) 0 (0,0) 0 (0,0)
Suplementação vitamínicab
Alta 17 (89,5) 20 (87,0) 16 (94,1) 0,816
Moderada 1 (5,3) 1 (4,3) 1 (5,9)
Baixa 1 (5,3) 2 (8,7) 0 (0,0)

an = 56; terapia de reposição enzimática pancreática não indicada em 17 pacientes. bn = 59: suplementação vitamínica não indicada em 14 pacientes.

A análise de regressão logística identificou três fatores independentes relacionados com a desnutrição: idade (OR = 0,78; p = 0,013), escore de S-K (OR = 0,90; p = 0,015) e VEF1 em % do previsto (OR = 0,95; p = 0,046; Tabela 4).

Tabela 4 Análise de regressão logística da desnutrição (pelo método enter).  

Variável Beta p OR IC95% da OR
Sexo masculino −0,41 0,961 0,96 0,19-4,95
Idade −0,24 0,013 0,78 0,65-0,95
Escore de S-K −0,11 0,015 0,90 0,82-0,98
VEF1, % do previsto −0,05 0,046 0,95 0,90-0,99
Constante 14,65 0,002 2.312.450,04 -

S-K: Shwachman-Kulczycki.

A análise da curva ROC mostrou que a área sob a curva para o escore de S-K foi de 0,85. Usando um valor de corte ≤ 65 pontos como preditor de desnutrição, observamos sensibilidade de 78,8%, especificidade de 67,3%, valor preditivo positivo de 43,8% e valor preditivo negativo de 90,2%. A área sob a curva para o VEF1 em % do previsto foi de 0,83. Usando um valor de corte ≤ 40% como preditor de desnutrição, observamos sensibilidade de 67,7%, especificidade de 81,8%, valor preditivo positivo de 54,5% e valor preditivo negativo de 88,2%. Quanto à idade, a área sob a curva foi de 0,57. Usando um valor de corte ≤ 22 anos de idade como preditor de desnutrição, observamos sensibilidade de 50,0%, especificidade de 58,2%, valor preditivo positivo de 28,1% e valor preditivo negativo de 78,1%.

DISCUSSÃO

O presente estudo transversal forneceu informações relevantes sobre a prevalência de desnutrição e as características clínicas relacionadas com a desnutrição em pacientes com FC em um programa para adultos em um grande centro terciário no sul do Brasil. Em primeiro lugar, metade dos pacientes apresentava nutrição adequada, e um quarto estava desnutrido. Em segundo lugar, identificamos alguns fatores independentes relacionados com o risco de desnutrição: escore de S-K, VEF1 em % do previsto e idade. Portanto, nossos achados contribuem para a conscientização a respeito dos aspectos multifatoriais da desnutrição em pacientes adolescentes e adultos com FC. Na tentativa de melhorar a nutrição na prática clínica, a equipe multidisciplinar de FC deve levar em conta pacientes mais jovens, com baixo escore clínico e função pulmonar comprometida.

É desafiador discutir o estado nutricional, já que os pesquisadores usam diferentes parâmetros para avaliá-lo. Além disso, a definição de desnutrição varia na literatura. Embora as diretrizes recomendem o uso do IMC como um indicador antropométrico simples para classificar o estado nutricional com a finalidade de melhorar o tratamento nutricional dos pacientes com FC, o uso de múltiplos indicadores nutricionais adequados pode ser de grande importância para melhorar o tratamento individual de pacientes com FC nas práticas de saúde.7,14,19,20

A proporção de pacientes com FC com desnutrição no presente estudo (24,7%) é semelhante a achados relatados em outros estudos.21-24 Um estudo transversal realizado na Grécia21 com a mesma metodologia e os mesmos pontos de corte para classificar o estado nutricional mostrou que 23% dos 68 pacientes com FC estavam desnutridos. No entanto, o estudo envolveu 37 crianças e adolescentes.21 Por outro lado, um estudo com 163 pacientes em um centro terciário para adultos com FC na França mostrou que 49,7% sofriam de desnutrição.22 O estudo também usou a mesma metodologia e os mesmos pontos de corte para classificar desnutrição.22 Um estudo transversal retrospectivo realizado em São Paulo (SP) com 30 adolescentes (na faixa etária de 10,1 a 19,8 anos) usou uma metodologia diferente (o IMC para a idade) para avaliar o estado nutricional dos participantes.23 Os pontos de corte foram os seguintes: ≥ escore z −3 e < escore z −2 (magreza); escore z −2 e ≤ escore z +1 (peso normal); > escore z +1 (sobrepeso ou obesidade). A mediana (mínimo; máximo) do escore z para o IMC para a idade foi de −0,6 (−3,7; +2,6), o que corresponde a estado nutricional adequado de acordo com os parâmetros da Organização Mundial da Saúde.23 Em 2007, um estudo realizado em nosso hospital incluiu 41 pacientes com FC (na faixa etária de 16 a 47 anos), usou a mesma metodologia e o mesmo ponto de corte para desnutrição e identificou 9 pacientes desnutridos (22%).24 Essas discrepâncias notáveis quanto à prevalência de desnutrição em pacientes com FC podem ser atribuídas à heterogeneidade da doença, ao efeito de sobrevida observado em coortes de indivíduos adultos, a variações interpopulacionais e a diferenças na qualidade da assistência à saúde ou no desenho do estudo (seleção da amostra, faixas etárias incluídas, indicadores de desnutrição e valores de corte).

Há muito se reconhece a relação entre o estado nutricional e a função pulmonar. Numerosos estudos apontaram o efeito negativo da desnutrição na função respiratória e no prognóstico.25,26 Os resultados do presente estudo confirmam que nutrição e função pulmonar são variáveis codependentes em pacientes com FC: função pulmonar ruim prediz desnutrição. Em um estudo recente, Hulzebos et al.27 mostraram que o uso do IMC com o VEF1 poderia prever com precisão a mortalidade em pacientes com FC. Outro estudo recente, com 14.732 pacientes (com idade ≥ 6 anos) do European Cystic Fibrosis Society Patient Registry, confirmou a relação significativa entre IMC ruim e função pulmonar ruim.28 Os autores enfatizaram que o IMC é um fator evitável ou potencialmente tratável; entretanto, apesar das diretrizes disponíveis para a prevenção e correção de deficiências nutricionais na FC, 9,5% dos pacientes com FC na Europa ainda sofrem de desnutrição grave crônica.28

A insuficiência pancreática exócrina é um fator prognóstico da desnutrição. Couper et al.,29 em um estudo longitudinal, mostraram que pacientes com suficiência pancreática apresentaram insuficiência pancreática em uma idade mais avançada. No presente estudo, o teste da elastase-1 fecal foi usado para quantificar a gravidade da insuficiência pancreática e prever desnutrição. Todos os pacientes de nossa amostra apresentaram níveis de elastase-1 fecal < 200 µg/g. Surpreendentemente, os níveis de elastase-1 fecal foram mais elevados no grupo desnutrição que no grupo NA e mais elevados no grupo NA que no grupo RN. Uma possível explicação para esse achado é que a diferença entre os grupos quanto à média do nível de elastase-1 fecal, embora estatisticamente significativa, foi de baixa magnitude e não teve impacto no desfecho nutricional.

Outro achado do presente estudo foi que as doses de reposição enzimática pancreática foram significativamente maiores nos pacientes desnutridos que nos pacientes dos outros grupos. Esse achado vai de encontro aos de uma recente análise retrospectiva feita por Haupt et al.,30 que sugeriram que a dose de reposição enzimática pancreática está relacionada com um estado nutricional melhor; no entanto, o estudo em questão só incluiu crianças. A média da dose de reposição enzimática em nossos pacientes foi coerente com as recomendações das diretrizes7: não superior a 2.500 unidades de lipase/kg/refeição.

O escore de S-K15 é um escore de gravidade clínica geral com quatro domínios: atividade geral, exame físico, nutrição e achados radiológicos. Cada domínio varia de 0 a 25 pontos, e as pontuações dos domínios são somadas a fim de obter a pontuação global (de no máximo 100). Pontuações mais altas refletem um estado clínico melhor. No presente estudo, escores clínicos baixos previram desnutrição. O escore de S-K não foi usado em três estudos prévios sobre o estado nutricional de pacientes com FC.21-23 Por outro lado, não houve relação significativa entre desnutrição e o escore de S-K no estudo de Ziegler et al.24

Estudos longitudinais demonstraram que se pode esperar que a desnutrição aumente com o envelhecimento.31,32 No entanto, é interessante que nossos resultados tenham mostrado que ser jovem foi um preditor de desnutrição apenas na análise multivariada. Não obstante, é provável que a idade e a preservação do estado nutricional estejam relacionadas com doença mais leve, e que um início mais tardio da doença tenha um impacto positivo no estado nutricional dos pacientes. Uma hipótese para esse achado é o viés de sobrevivência na população de pacientes com FC no presente estudo. Pacientes com função pulmonar ruim e desnutrição não atingiram a faixa etária investigada no presente estudo.

Em nosso estudo, a adesão, segundo o relato dos próprios pacientes, à dieta hipercalórica, terapia de reposição enzimática pancreática e ingestão de suplementos vitamínicos foi alta e não apresentou relação com o estado nutricional. Em um estudo anterior,33 65,8%, 96,3% e 79,4% dos pacientes, respectivamente, relataram boa adesão à dieta hipercalórica, terapia de reposição enzimática pancreática e ingestão de suplementos vitamínicos. Arias Llorente et al.34 sugeriram que a adesão dos pacientes ao tratamento seria melhor se eles acreditassem que o tratamento seria benéfico e melhoraria sua qualidade de vida. Além disso, estudos anteriores demonstraram que pacientes que compreendem a importância de seguir instruções médicas e que confiam em seus médicos provavelmente apresentam maior adesão. O fato de que a adesão ao tratamento tende a diminuir com a idade também já foi mencionado.18,35

O presente estudo tem potenciais limitações. Por se tratar de um estudo transversal, foi impossível estabelecer a sequência temporal dos fatores estudados e a desnutrição. Além disso, nossa amostra de pacientes foi pequena.

Em suma, o presente estudo demonstrou que a desnutrição ainda é uma complicação comum em adolescentes e adultos com FC, não obstante o aconselhamento dietético. A desnutrição está relacionada com a idade, a gravidade clínica e o comprometimento da função pulmonar.

REFERÊNCIAS

1 Madan JC, Koestler DC, Stanton BA, Davidson L, Moulton LA, Housman ML, et al. Serial analysis of the gut and respiratory microbiome in cystic fibrosis in infancy: interaction between intestinal and respiratory tracts and impact of nutritional exposures. MBio. 2012;3(4):e00251-12. pii: e00251-12.
2 Davies JC, Alton EW, Bush A. Cystic fibrosis. BMJ. 2007;335(7632):1255-9.
3 Cohen-Cymberknoh M, Shoseyov D, Kerem E. Managing cystic fibrosis: strategies that increase life expectancy and improve quality of life. Am J Respir Crit Care Med. 2011;183(11):1463-71.
4 Strausbaugh SD, Davis PB. Cystic fibrosis: a review of epidemiology and pathobiology. Clin Chest Med. 2007;28(2):279-88.
5 Boyle MP. Adult cystic fibrosis. JAMA. 2007;298(15):1787-93.
6 Milla CE. Nutrition and lung disease in cystic fibrosis. Clin Chest Med . 2007;28(2):319-30.
7 Stallings VA, Stark LJ, Robinson KA, Feranchak AP, Quinton H; Clinical Practice Guidelines on Growth and Nutrition Subcommittee; et al. Evidence-based practice recommendations for nutrition-related management of children and adults with cystic fibrosis and pancreatic insufficiency: results of a systematic review. J Am Diet Assoc. 2008;108(5):832-9.
8 Peterson ML, Jacobs DR Jr, Milla CE. Longitudinal changes in growth parameters are correlated with changes in pulmonary function in children with cystic fibrosis. Pediatrics. 2003; 112(3 Pt 1):588-92.
9 Konstan MW, Butler SM, Wohl ME, Stoddard M, Matousek R, Wagener JS, et al. Growth and nutritional indexes in early life predict pulmonary function in cystic fibrosis. J Pediatr. 2003;142(6):624-30.
10 Ranganathan SC, Parsons F, Gangell C, Brennan S, Stick SM, Sly PD, et al. Evolution of pulmonary inflammation and nutritional status in infants and young children with cystic fibrosis. Thorax. 2011;66(5):408-13.
11 Sheikh S, Zemel BS, Stallings VA, Rubenstein RC, Kelly A. Body composition and pulmonary function in cystic fibrosis. Front Pediatr. 2014;2:33.
12 Rosenstein BJ, Cutting GR. The diagnosis of cystic fibrosis: a consensus statement. Cystic Fibrosis Foundation Consensus Panel. J Pediatr . 1998;132(4):589-95.
13 Williams SG, Evanson JE, Barrett N, Hodson ME, Boultbee JE, Westaby D. An ultrasound scoring system for the diagnosis of liver disease in cystic fibrosis. J Hepatol. 1995;22(5):513-21.
14 Borowitz D, Baker RD, Stallings V. Consensus report on nutrition for pediatric patients with cystic fibrosis. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2002;35(3):246-59.
15 Shwachman H, Kulczychi L. Long-term study of one hundred five patients with cystic fibrosis; studies made over a five- to fourteen-year period. AMA J Dis Child. 1958;96(1):6-15.
16 Pereira CA, Barreto SP, Simões JG, Pereira FW, Gerstler JG, Nakatani J. Valores de referência para espirometria em uma amostra da população brasileira adulta. J Pneumol. 1992;18(1):10-22.
17 Löser C, Möllgaard A, Fölsch UR. Faecal elastase 1: a novel, highly sensitive, and specific tubeless pancreatic function test. Gut. 1996;39(4):580-6.
18 Conway SP, Pond MN, Hamnett T, Watson A. Compliance with treatment in adult patients with cystic fibrosis. Thorax . 1996;51(1):29-33.
19 Sinaasappel M, Stern M, Littlewood J, Wolfe S, Steinkamp G, Heijerman HG, et al. Nutrition in patients with cystic fibrosis: a European Consensus. J Cyst Fibros. 2002;1(2):51-75.
20 Yankaskas JR, Marshall BC, Sufian B, Simon RH, Rodman D. Cystic fibrosis adult care: consensus conference report. Chest. 2004;125(1 Suppl):1S-39S.
21 Panagopoulou P, Fotoulaki M, Nikolaou A, Nousia-Arvanitakis S. Prevalence of malnutrition and obesity among cystic fibrosis patients. Pediatr Int. 2014;56(1):89-94.
22 Dray X, Kanaan R, Bienvenu T, Desmazes-Dufeu N, Dusser D, Marteau P, et al. Malnutrition in adults with cystic fibrosis. Eur J Clin Nutr. 2005;59(1):152-4.
23 Del Ciampo IR, Del Ciampo LA, Sawamura R, de Oliveira LR, Fernandes MI. Nutritional status of adolescents with cystic fibrosis treated at a reference center in the southeast region of Brazil. Ital J Pediatr . 2015;41:51.
24 Ziegler B, Rovedder PM, Lukrafka JL, Abrahão CL, Dalcin PT. Estado nutricional em pacientes atendidos por um programa de adultos para fibrose cística. Rev HCPA. 2007;27(3):13-9.
25 Corey M, McLaughlin FJ, Williams M, Levison H. A comparison of survival, growth, and pulmonary function in patients with cystic fibrosis in Boston and Toronto. J Clin Epidemiol. 1988;41(6):583-91.
26 Zemel BS, Jawad AF, FitzSimmons S, Stallings VA. Longitudinal relationship among growth, nutritional status, and pulmonary function in children with cystic fibrosis: analysis of the Cystic Fibrosis Foundation National CF Patient Registry. J Pediatr . 2000;137(3):374-80.
27 Hulzebos EH, Bomhof-Roordink H, van de Weert-van Leeuwen PB, Twisk JW, Arets HG, van der Ent CK, et al. Prediction of mortality in adolescents with cystic fibrosis. Med Sci Sports Exerc. 2014;46(11):2047-52.
28 Kerem E, Viviani L, Zolin A, MacNeill S, Hatziagorou E, Ellemunter H, et al. Factors associated with FEV1 decline in cystic fibrosis: analysis of the ECFS patient registry. Eur Respir J. 2014;43(1):125-33.
29 Couper RT, Corey M, Moore DJ, Fisher LJ, Forstner GG, Durie PR. Decline of exocrine pancreatic function in cystic fibrosis patients with pancreatic sufficiency. Pediatr Res. 1992;32(2):179-82.
30 Haupt ME, Kwasny MJ, Schechter MS, McColley SA. Pancreatic enzyme replacement therapy dosing and nutritional outcomes in children with cystic fibrosis. J Pediatr . 2014;164(5):1110-1115.e1.
31 Steinkamp G, Wiedemann B. Relationship between nutritional status and lung function in cystic fibrosis: cross sectional and longitudinal analyses from the German CF quality assurance (CFQA) project. Thorax . 2002;57(7):596-601. https://doi.org/10.1136/thorax.57.7.596
32 Nir M, Lanng S, Johansen HK, Koch C. Long-term survival and nutritional data in patients with cystic fibrosis treated in a Danish centre. Thorax . 1996;51(10):1023-7.
33 Dalcin Pde T, Rampon G, Pasin LR, Ramon GM, Abrahão CL, Oliveira VZ. Adherence to treatment in patients with cystic fibrosis Article in Portuguese. J Bras Pneumol. 2007;33(6):663-70.
34 Arias Llorente RP, Bousoño García C, Díaz Martín JJ. Treatment compliance in children and adults with cystic fibrosis. J Cyst Fibros . 2008;7(5):359-67.
35 Abbott J, Dodd M, Gee L, Webb K. Ways of coping with cystic fibrosis: implications for treatment adherence. Disabil Rehabil. 2001;23(8):315-24.