versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.7 Rio de Janeiro jul. 2019 Epub 22-Jul-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018247.24162017
Nas últimas décadas ocorreram mudanças nos hábitos alimentares da população brasileira caracterizadas principalmente pela substituição de alimentos caseiros e in natura por alimentos processados e ultraprocessados (AUP)1, sendo estes introduzidos cada vez mais precocemente na alimentação infantil2-4. Tais alimentos são nutricionalmente desequilibrados pois possuem alta densidade energética, alta quantidade de gordura, açúcar e/ou sódio, pouca fibra, além de passarem por diversas etapas de processamento e adição de muitos ingredientes para aumentar a durabilidade e palatabilidade1.
Esta mudança na alimentação da população brasileira é uma das principais causas da atual pandemia de obesidade e de doenças crônicas5. Na população infantil, a obesidade vem sendo também relacionada com a introdução precoce e inadequada da alimentação complementar (AC) e com o desmame precoce do aleitamento materno (AM)6. O impacto da introdução de dietas obesogênicas em fases iniciais do desenvolvimento tem efeitos também em longo prazo sobre a saúde dos lactentes, predispondo-os ao desenvolvimento de doenças crônicas na vida adulta7.
Os benefícios do aleitamento materno já são bem estabelecidos, independente da renda. O aumento dessa prática, pode desempenhar papel importante na melhora da nutrição, educação e saúde da mãe e do bebê8. De acordo com as recomendações do Ministério da Saúde, a criança deve receber leite materno (LM) exclusivamente até os seis meses de vida e complementado até os dois anos ou mais. A partir dos seis meses de vida, deve-se iniciar a introdução gradual e diária de alimentos complementares, qual deve ser baseada em alimentos in natura, obtidos diretamente de plantas e animais, tais como as frutas, legumes, verduras, ovos, carnes, tubérculos, grãos e cereais. Antes dos dois anos de vida deve-se ainda evitar o consumo de AUP, como refrigerante, sucos industrializados, salgadinhos, embutidos e doces, uma vez que o consumo destes alimentos está associado à anemia, ao excesso de peso e a alergias alimentares9. Devido à preferência inata ao sabor doce, a oferta de alimentos adicionados de açúcar ou com grandes quantidades de energia leva a criança ao desinteresse pelos cereais, frutas, verduras e legumes10. Entretanto, o AM e a introdução correta da AC preveem melhor aceitação desses alimentos in natura11.
Os primeiros dois anos de vida são fundamentais para o incentivo e a adoção de hábitos alimentares saudáveis e para prevenção de doenças crônicas em fases posteriores da vida, já que os hábitos alimentares estabelecidos nesta fase da vida tendem a se manter na vida adulta10. Neste contexto destaca-se a forte influência de características maternas e familiares na formação de hábitos alimentares12,13, visto que as mães com hábitos alimentares inadequados dificilmente irão estabelecer uma alimentação adequada para seus filhos14. Desta forma, o objetivo deste estudo foi verificar a associação de fatores maternos e antropométricos com o consumo de alimentos ultraprocessados em crianças de quatro meses a dois anos de idade internadas em um hospital de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
Estudo transversal realizado em um hospital terciário na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no período de março de 2012 a julho de 2013. Este estudo é parte de uma pesquisa intitulada “Conhecimento materno sobre alimentação nos primeiros anos de vida e sua relação com a introdução de alimentos complementares em crianças de quatro a 24 meses internadas de Porto Alegre”.
Foram incluídas no estudo crianças acompanhadas por suas mães, de ambos os sexos, com idade entre quatro a 24 meses, internadas na unidade de pediatria ou emergência pediátrica por complicações agudas como doenças respiratórias, gastroenterites, infecções do trato urinário e situações cirúrgicas eletivas como hipospádia, herniorrafia, orquidopexia, dentre outras. Foram excluídas do estudo as crianças com nutrição enteral e parenteral e aquelas que apresentavam alguma complicação crônica que pudesse interferir na alimentação e crescimento, tais como doenças neurológicas e genéticas, alergias ou intolerâncias alimentares. Também foram excluídas crianças com mães menores de 18 anos de idade sem acompanhamento de responsável e aquelas em que o AM foi contraindicado, como mães soropositivas para o vírus da imunodeficiência humana e em tratamento antineoplásico.
O cálculo do tamanho amostral baseou-se na II Pesquisa de Prevalência de Aleitamento Materno (PPAM) do Ministério da Saúde (MS), 200915. Utilizando-se intervalo de confiança de 95%, margem de erro de 5%, poder estatístico de 80% e considerando que 21% das crianças entre três e seis meses já haviam introduzido AC, chegou-se a amostra mínima de 255 pares de mães e crianças.
A coleta de dados deu-se nas primeiras 72 horas de internação para que não houvesse interferência da dieta hospitalar nos questionamentos sobre o hábito alimentar da criança. A coleta de dados foi realizada por nutricionistas residentes e acadêmicas de nutrição, capacitadas para realizar a aplicação do questionário estruturado relacionado às variáveis em estudo. As variáveis maternas pesquisadas foram: idade, escolaridade, renda familiar, paridade, índice de massa corporal (IMC) e se recebeu orientação sobre AC. As variáveis referentes à criança foram: idade, AM, frequência em escola infantil, índice de massa corporal para idade (IMC/I), estatura para idade (E/I), peso para idade (P/I) e introdução de AUP.
Em relação aos AUP, foi analisada a introdução dos seguintes alimentos: achocolatado, iogurte, queijo petit suisse, bolacha, biscoito recheado, salgadinho, suco artificial e refrigerante, doces, gelatina e embutidos. Os alimentos questionados foram selecionados de acordo com a definição de AUP presente no Guia Alimentar para População Brasileira1.
Para a avaliação do estado nutricional atual das crianças foram utilizados peso e comprimento, coletados do prontuário. Para classificação foram utilizadas as curvas de E/I, IMC/I e P/I da World Health Organization (WHO) de 2006. Foi utilizado o padrão de escore-z, considerando para IMC/I e P/I, respectivamente: < -2.00 desvios padrão (DP) como magreza/baixo peso para idade, entre -2.00 e +2.00 DP como eutrofia/peso adequado para idade, ≥ +2.00 DP como excesso de peso/peso elevado para idade; e para E/I: < -2.00 DP como baixa estatura e ≥ -2.00 DP como estatura adequada para idade. Para classificação das crianças nascidas pré-termo foi utilizado à idade corrigida.
A idade materna foi dividida em ≤ 19 anos, entre 20 e 34, e ≥ 35 anos. Já a escolaridade materna, foi categorizada até oito anos (baixa escolaridade), entre nove e 11 anos e ≥ 12 anos de estudo. A renda familiar foi definida de acordo com o sistema de pontos do Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB)16, sendo consideradas como alta renda familiar as classes A e B, média, a classe C e baixa renda familiar as classes D e E.
O IMC materno foi calculado a partir do peso e estatura aferidos no dia da entrevista em uma sala de procedimentos da unidade de internação. As mães eram convidadas a deslocarem-se até a sala para aferição dos dados. O peso foi aferido em duplicata, em balança digital com capacidade para 150kg, e o valor médio das duas aferições foi utilizado para o cálculo do IMC. A estatura foi medida com antropômetro fixo, sendo também realizada em duplicata, sendo aceitos valores com no máximo um centímetro de diferença. Para classificação considerou-se os pontos de corte propostos para adultos da Organização Mundial da Saúde17, sendo estes baixo peso o IMC < 18.5 kg/m2, eutróficas entre 18.5 e 24.9 kg/m2 e excesso de peso acima de 25kg/m2. Os casos em que a mãe não aceitou realizar as aferições acima foram desconsiderados para análise de regressão linear.
As análises foram realizadas no Programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 18.0. Para caracterização da amostra utilizou-se para as variáveis categóricas, percentual absoluto e número absoluto de indivíduos, e para as variáveis quantitativas, média e desvio padrão ou mediana e intervalo interquartil. A associação entre os fatores estudados e o consumo de AUP foi testada por meio de um modelo de regressão linear. As variáveis que apresentaram p < 0.20 na análise univariada foram consideradas na análise multivariada. Foram analisados os pressupostos do modelo: normalidade, linearidade e homoscedasticidade. O pressuposto da normalidade foi avaliado pela análise do resíduo ajustado; a linearidade e a homoscedasticidade foram avaliadas pela inspeção gráfica; ainda, foi avaliada a colinearidade por meio do VIF. Todos os pressupostos foram atendidos para utilização do modelo. O nível de significância considerado foi de 0.05.
As questões éticas do presente estudo seguem as Diretrizes e Normas Reguladoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos (Resolução 466/2012) e foi submetido a avaliações do Grupo de Pesquisa e Pós-Graduação (GPPG) e Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), aprovado. Garantiu-se o sigilo com relação à identidade, privacidade e confidencialidade dos dados obtidos.
Foram arrolados 300 pares de mães e crianças no estudo. Em relação às variáveis que não atingiram a amostra completa (n = 80, 26,6%) isso deve-se ao fato da recusa das mães de se afastar temporariamente dos filhos pois as medidas antropométricas eram realizadas na sala de procedimentos da unidade. Quanto às demais variáveis, as perdas devem-se a negativa de resposta pela mãe.
A mediana de idade das crianças foi de oito meses (5-12). A Tabela 1 apresenta a caracterização das mães e crianças, apresentando 59.3% (n = 178) das crianças do sexo masculino. Mais da metade das crianças menores de seis meses de idade estava em AM (57.1%), no entanto, destas, apenas 25% (n = 11) estava em aleitamento materno exclusivo (AME). Já dentre as maiores de seis meses, aproximadamente metade (49.3%) estava em AM, mas apenas 5.4% (n = 6) dessas crianças receberam AME até o sexto mês de vida.
Tabela 1 Caracterização da amostra de mães e crianças entre 4 e 24 meses internadas em hospital terciário de Porto Alegre, RS.
Variáveis | n | % |
---|---|---|
Idade materna | ||
≤ 19 anos | 48 | 16,0 |
20 – 34 anos | 221 | 73,7 |
≥ 35 anos | 31 | 10,3 |
Total | 300 | 100 |
Escolaridade materna | ||
≤ 8 anos | 118 | 39,3 |
9 – 11 anos | 155 | 51,7 |
≥ 12 anos | 27 | 9,0 |
Total | 300 | 100 |
Situação Conjugal | ||
Sem companheiro | 131 | 43,8 |
Com companheiro | 168 | 56,1 |
Total | 299 | 100 |
Paridade | ||
Primíparas | 112 | 37,3 |
Multíparas | 188 | 62,7 |
Total | 300 | 100 |
IMC materno | ||
Baixo peso | 5 | 2,3 |
Eutrofia | 101 | 45,9 |
Excesso de peso | 114 | 51,8 |
Total | 220 | 100 |
Renda familiar | ||
Alta renda | 60 | 21,1 |
Renda média | 186 | 65,5 |
Baixa renda | 38 | 13,4 |
Total | 284 | 100 |
Orientação alimentação complementar | ||
Não | 112 | 37,4 |
Sim | 188 | 62,6 |
Total | 300 | 100 |
Sexo | ||
Masculino | 178 | 59,3 |
Total | 300 | 100 |
Idade | ||
< 6 meses | 77 | 25,7 |
≥ 6 meses | 223 | 74,3 |
Total | 300 | 100 |
Aleitamento materno | ||
Ainda mama | 154 | 51,3 |
Parou antes dos 6 meses | 118 | 39,3 |
Parou depois dos 6 meses | 28 | 9,3 |
Total | 300 | 100 |
Frequenta escola infantil | ||
Não | 233 | 77,7 |
Sim | 67 | 22,3 |
Total | 300 | 100 |
Peso para idade | ||
Baixo peso | 23 | 7,7 |
Peso adequado | 255 | 85,0 |
Peso elevado | 22 | 3,3 |
Total | 300 | 100 |
Estatura para idade | ||
Baixa estatura | 58 | 19,3 |
Estatura adequada | 242 | 80,7 |
Total | 300 | 100 |
IMC para idade | ||
Magreza | 13 | 4,3 |
Eutrofia | 237 | 79,0 |
Excesso de peso | 50 | 16,7 |
Total | 300 | 100 |
Em relação às características maternas, a média de idade foi 26.29 (DP 6.09) anos, 39.3% (n = 118) apresentavam baixa escolaridade (≤ 8 anos), 51.8% (n = 114) estavam com excesso de peso e 62.7% (n = 188) eram multíparas. Além disso, a maior parte das famílias era de renda média (classe C) (65.5%), o que equivale à renda familiar média de 1,6 salários mínimos. Mais da metade das mães (62.6%) havia recebido algum tipo de orientação sobre alimentação complementar, porém, apenas 19.6% (n = 37) foram orientadas por nutricionista, sendo a grande maioria por pediatra e/ou outro profissional de saúde, e mais da metade (53.7%) realizada em unidade básica de saúde (UBS).
Os alimentos mais oferecidos às crianças antes dos dois anos de idade foram: bolacha (65,7%), gelatina (62,3%) e queijo petit suisse (58,3%). Em relação à introdução precoce dos alimentos ultraprocessados (AUP), verificou-se que apenas 21% (n = 63) das crianças ainda não haviam recebido este tipo de produto. A mediana dos AUP que já haviam sido introduzidos na alimentação das crianças foi de cinco (3-7) ultraprocessados. Dentre as crianças que já haviam consumido estes alimentos nos primeiros anos de vida 56.5% (n = 134) recebeu algum destes alimentos antes dos seis meses.
A Figura 1 apresenta os AUP conforme seu momento de introdução na alimentação da criança (não introduzido, antes ou depois dos seis meses). Os alimentos mais introduzidos antes dos seis meses foram: gelatina (27.0%), queijo petit suisse (23.7%) e bolacha sem recheio (19.7%). Após os seis meses de idade estes mesmos alimentos mantêm-se como sendo os mais apresentados às crianças, porém em maiores proporções: 46% das crianças recebeu bolacha sem recheio nesta faixa etária, 35.3% gelatina e 34.7% recebeu queijo petit suisse. Os alimentos menos introduzidos pelas mães antes dos seis meses foram: o achocolatado (2%), embutidos (1%) e salgadinho (1%).
Figura 1 Introdução de alimentos ultraprocessados em crianças menores de dois anos internadas em hospital terciário de Porto Alegre, RS (n = 300).
A Tabela 2 apresenta a análise de regressão linear, sendo considerado como desfecho o número de AUP introduzido na alimentação da criança. Na análise univariada, observou-se associação estatisticamente significativa da introdução dos AUP com escolaridade materna, renda familiar, idade materna, paridade, peso para idade e IMC para idade. Na análise multivariada, mantiveram significância estatística, escolaridade materna, renda familiar, idade materna e paridade. Verificou-se que quanto menor a escolaridade maior o número de produtos ultraprocessados introduzidos, assim como a renda familiar, quanto mais alta menor o número de alimentos apresentado às crianças. Por outro lado, a idade materna mais avançada relacionou-se com maior introdução destes alimentos, assim como a multiparidade.
Tabela 2 Regressão univariada e multivariada, tendo como variável dependente o número de alimentos ultraprocessados introduzido.
Variável Independente | Análise Univariável | Análise Multivariável | ||
---|---|---|---|---|
| ||||
Alimentos Ultraprocessados | Alimentos Ultraprocessados | |||
| ||||
β (IC 95%) | P | β (IC 95%) | P | |
Escolaridade Materna | ||||
≥ 12 anos | 1 | 1 | ||
9-11 anos | 1,93 (0,57 a 3,30) | 0,006 | 1,58 (0,23 a 2,954) | 0,022 |
≤ 8 anos | 2,59 (1,2 a 3,99) | <0,001 | 1,82 (0,38 a 3,25) | 0,013 |
Idade Materna | ||||
≥ 35 anos | 1 | 1 | ||
20 – 34 anos | -1,5 (-2,77 a -0,24) | 0,020 | -1,47 (-2,74 a -0,19) | 0,025 |
≤ 19 anos | -0,56 (-2,08 a 0,96) | 0,469 | -,019 (-1,64 a 1,61) | 0,982 |
Frequenta escola infantil | ||||
Sim | 1 | |||
Não | -0,25 (-1,17 a 0,68) | 0,603 | - | - |
IMC Materno | ||||
Eutrofia | 1 | - | - | |
Baixo Peso | -1,32 (-4,48 a 1,84) | 0,411 | - | - |
Excesso de Peso | -0,88 (-1,82 a 0,06) | 0,067 | - | - |
Renda familiar | ||||
Baixa | 1 | 1 | ||
Média | -1,98 (-3,14 a -0,82) | 0,001 | -1,85 (-3,00 a -0,71) | 0,002 |
Alta | -2,66 (-4,01 a -1,31) | <0,001 | -2,30 (-3,66 a -0,93) | 0,001 |
Paridade | ||||
Primípara | 1 | |||
Multípara | 1,05 (0,26 a 1,83) | 0,009 | 1,11 (0,26 a 1,97) | 0,010 |
Situação Conjugal | ||||
Com companheiro | 1 | |||
Sem companheiro | 0,41 (-0,36 a 1,18) | 0,300 | - | - |
Estatura para idade | ||||
Adequada | 1 | |||
Baixa Estatura | -0,33 (-1,30 a 0,65) | 0,507 | - | - |
Peso para idade | ||||
Adequado | 1 | 1 | ||
Baixo peso | -0,99 (-2,42 a 0,45) | 0,176 | 1,50 (-0,81 a 3,09) | 0,063 |
Peso elevado | 1,88 (0,41 a 3,34) | 0,012 | -0,52 (-2,16 a 1,12) | 0,532 |
IMC para idade | ||||
Eutrofia | 1 | 1 | ||
Magreza | -0,32 (-2,21 a 1,57) | 0,742 | 0,12 (-1,02 a 1,26) | 0,833 |
Excesso de Peso | 1,05 (0,01 a 2,08) | 0,047 | -0,64 (-2,71 a 1,42) | 0,540 |
Resultados em negrito apontam significância estatística. Coeficiente de determinação do modelo ajustado (R2ajustado) =0,121.
Nossos achados apontam para práticas alimentares inadequadas nos primeiros dois anos de vida, com baixa prevalência de AME e introdução de alimentos complementares inadequados, visto a alta prevalência de introdução precoce de AUP, principalmente antes dos seis meses de vida, apesar de 62.6% das mães ter recebido algum tipo de orientação sobre AC de profissionais da saúde.
Em relação aos fatores investigados associados à introdução dos AUP, observou-se maior introdução destes alimentos dentre as mães de menor renda familiar, menor escolaridade, idade mais avançada e multíparas. Esses resultados vão ao encontro dos achados apresentados por diversos autores que afirmam que mães com baixa escolaridade, menor renda familiar, mais velhas ou multíparas tendem a introduzir a AC precocemente18-20, inclusive AUP3,21, e consequentemente, apresentam menor tempo de duração do AM12. Pries et al.21, referem que uma alimentação minimamente aceitável, de acordo com diversidade dietética e frequência de refeições está diretamente relacionada ao maior nível de escolaridade materna e à maior renda familiar. Contrapondo-se aos resultados encontrados neste estudo, Simon et al. observaram em escolas particulares que mães com mais de 35 anos introduziram mais tardiamente guloseimas nos primeiros dois anos de vida, entretanto ressalta-se que estas apresentavam elevado nível socioeconômico22. O maior acesso às informações sobre práticas alimentares saudáveis possivelmente explica a associação da escolaridade materna e da classe social com menor introdução de AUP.
Nas últimas décadas, houve aumento do consumo de AUP na dieta brasileira de adolescentes e adultos, de 18,7%, em 1987, para 29,6%, em 2009, sendo que a participação de embutidos, refeições prontas, doces, refrigerantes e bebidas açucaradas mais que dobrou. Este aumento ocorreu em todos os estratos econômicos, entretanto, tendeu a ser maior entre as classes de menor renda5. Este aumento tem relação com a maior praticidade e durabilidade destes alimentos, já que estes produtos são geralmente vendidos em grandes porções, na forma de lanches prontos para o consumo, facilitando o hábito de comer entre as refeições. Muitas vezes, têm ampla vantagem comercial quando comparados com os alimentos in natura ou minimamente processados, apresentando também menor custo23. Ainda, são considerados hiperpalatáveis devido a sua composição e o seu processamento, portanto, são susceptíveis de provocar “comer sem sentido” e prejudicar os processos que controlam a saciedade e apetite23-26. Todas estas características aliadas ao marketing agressivo tornam esses alimentos atraentes e desejados, principalmente pelo público infantil5,26.
Em paralelo ao aumento do consumo de AUP, aumentaram também as taxas de obesidade em todo o mundo, particularmente em países de renda média5,27, possivelmente devido ao perfil nutricional desfavorável dos AUP, uma vez que estes possuem 2,5 vezes mais energia, duas vezes mais açúcar livre, 1,5 vezes mais gorduras em geral e oito vezes mais gorduras trans, além de apresentarem três vezes menos fibras, duas vezes menos proteínas e 2,5 menos potássio26. Consequentemente, estes produtos estão associados ao aumento significativo no IMC (0,94 kg/m2; IC 95%: 0.42-1.47) e maiores chances de sobrepeso (OR = 1,26; IC 95%:0.95-1.69) e obesidade (OR = 1,98; IC 95%: 1.26-3.12)28. Além do baixo valor nutricional desses alimentos, evidências recentes sugerem que crianças entre dois e três anos de idade de baixa renda estariam em risco de ingestão excessiva de micronutrientes como cálcio, ferro, zinco, vitamina A, C e folato devido ao alto consumo (88.1%) de AUP destinados ao público infantil, que geralmente são enriquecidos com esses nutrientes29. Ainda que nossos achados não tenham encontrado relação entre o consumo dos AUP com a obesidade infantil, cabe destacar que este reflexo pode ser encontrado também a longo prazo, sendo o aumento de peso uma consequência frequente da alimentação pobre em alimentos in natura e rica em produtos processados e ultraprocessados.
Os AUP vêm sendo introduzidos cada vez mais precocemente na alimentação de crianças menores de dois anos de idade2-4, corroborando com nossos achados. Pries et al.21 observaram resultados semelhantes, sendo que aproximadamente 70% das mães que relataram evitar a oferta de AUP porque acreditavam prejudicar a saúde de seus filhos, havia oferecido esse tipo de alimento a criança no dia anterior a entrevista. Dados recentes do MS, encontraram valores menores entre crianças de seis a 23 meses de vida, onde 56% já havia consumido algum tipo de AUP30. Heitor et al.2 associam a tendência de aumento da oferta dos alimentos industrializados com a desaceleração no crescimento da criança no segundo ano de vida, já que há uma diminuição do apetite, e muitas vezes a mãe, preocupada com esse aspecto, passa a oferecer os alimentos preferidos e solicitados pela criança.
Os resultados encontrados são preocupantes, considerando que os primeiros mil dias de vida, período intrauterino e primeiros dois anos de vida, são sensíveis a fatores metabólicos e nutricionais os quais podem predispor a consequências a curto e longo prazos na saúde do indivíduo, estendendo-se até a idade adulta2,7. Assim, a alimentação inadequada nos primeiros anos de vida pode ser um dos fatores determinantes do crescimento da obesidade infantil e das doenças crônicas na vida adulta, já que o consumo destes AUP tem impacto negativo sobre a saúde ainda nos primeiros anos de vida. Sabe-se que aumento de 10% no consumo de AUP aos 3-4 anos de idade pode aumentar em até 3 mg/dL os níveis de colesterol total e LDL aos 7-8 anos de idade, independente da ingestão de energia e do estado nutricional31. Além disso, dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-200932 apontam que o consumo de AUP (pizza, carnes processadas, salgadinhos, biscoitos recheados e refrigerantes) esteve associado com maior ingestão de sódio31, o que pode resultar em pressão arterial alterada já em idade pré-escolar33.
Estudo com crianças mexicanas entre cinco e 24 meses e suas mães encontrou associação significativa entre o consumo de alimentos de alta densidade energética e bebidas adoçadas e o sobrepeso (11%) e obesidade (8%)34. Observou-se resultados semelhantes no presente estudo, apesar de não ter se mantido a associação com consumo de AUP na análise mutivariada, o que pode estar relacionado com o fato de nossas crianças serem jovens e ainda não ter-se o reflexo da alimentação no estado nutricional.
Os alimentos mais oferecidos às crianças antes dos dois anos de idade foram: bolacha, gelatina e queijo petit suisse. A II PPAM, realizada nas capitais brasileiras e no Distrito Federal, encontrou elevado consumo de bolachas/salgadinhos entre crianças de seis e nove meses, sendo os maiores valores encontrados na região Sul, atingindo 61.1% em Porto Alegre15. Nossos achados corroboram com os dados nacionais, já que esses alimentos faziam parte da alimentação de 70.7% das crianças maiores de seis meses, sendo a bolacha o alimento mais oferecido nesta faixa etária15. Em relação ao queijo petit suisse, estudos nacionais também encontraram altas prevalências do consumo deste tipo de ultraprocessado, variando de 62.2 a 73.6%, sendo o alimento mais consumindo em menores de um ano e oferecido até o final do sexto mês de vida para aproximadamente metade das crianças2,35. Este consumo alto justifica-se pelo acelerado crescimento na comercialização do queijo petit suisse nos últimos anos, passando a ser considerado um alimento saudável pelas famílias em função de amplas campanhas publicitárias voltadas estrategicamente ao público infantil, além de fatores como palatabilidade e praticidade, que os inseriram e os mantiveram no hábito alimentar da população, principalmente nos lares da classe C35. Em relação à composição deste AUP, quando comparado com o LM, os percentuais de adequação para proteínas e carboidratos apresentaram-se superiores, ultrapassando em mais de 400% a quantidade de proteína35, o que pode levar ao desenvolvimento de obesidade na idade escolar e adulta36. Já para o cálcio e para o sódio, os percentuais de adequação foram mais de 20 vezes superiores, ultrapassando em 300% as necessidades diárias na faixa etária de zero a seis meses, ficando muito além dos teores presentes no LM35, podendo acarretar em aumento da excreção renal de cálcio, com impacto negativo sobre a saúde óssea da criança37.
Destaca-se ainda que o presente estudo encontrou altas taxas de excesso de peso materno. Embora não tenha sido encontrada associação do IMC materno com a introdução de AUP, esta relação vem sendo muito explorada na literatura. A obesidade materna está associada com intenção diminuída para amamentar, diminuição da iniciação e da duração do AM38 e também com o desmame antes dos seis meses. O tempo reduzido do AM é também um fator de risco para o consumo de snacks e bebidas adoçadas34.
Corroborando com nossos achados, Alves et al.3 também encontraram introdução precoce da AC e alto consumo de AUP mesmo após orientação das mães sobre AM e AC durante acompanhamento de rotina de seus filhos em UBS. Os motivos relacionados a esta não adesão às orientações podem estar relacionados à falta de conhecimento sobre o tema por parte dos profissionais em geral39,40, dificuldades na comunicação entre o profissional e a mãe41, a divergência pessoal da mãe em relação às orientações dietéticas recebidas42e a crença materna de que as práticas alimentares tenham pouca influência no desenvolvimento da criança43. Broiloa et al.44 sugerem, ainda, que a transmissão de informações não é suficiente para motivar as ações das mães quanto as práticas alimentares de seus filhos, já que 47% das mães relataram não seguir as orientações recebidas nas UBS. Dessas, 45,7% não reconheceram a importância da alimentação para a saúde da criança. Além disso, os principais motivos pelos quais as mães oferecem AC precocemente são baseados em suas próprias experiências ou crenças, ou seja, por acreditarem que o tempo é oportuno ou que somente o LM não é suficiente, em informações fornecidas pelo pediatra e pela influência da mídia13,14,45.
Com objetivo de qualificar o processo de trabalho dos profissionais de saúde em relação ao tema, o governo federal instituiu a Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil (EAAB), que reforça e incentiva a promoção do AM e AC saudável no Sistema Único de Saúde (SUS), através de treinamentos e de educação continuada dos profissionais sobre tema46. Desta forma, cabe aos profissionais, principalmente ao nutricionista, o incentivo e a disseminação de informações sobre a importância da alimentação saudável nesta fase da vida para formação de hábitos alimentares saudáveis e prevenção de doenças crônicas na vida adulta. Esta necessidade é reforçada por evidências que demonstram que intervenções nutricionais ao longo do tempo são efetivas na redução do consumo de AUP (biscoitos, queijo petit suisse e refrigerante), independentemente da idade e escolaridade maternas, quando realizadas com lactentes no primeiro ano de vida, através de consultas nutricionais ou visitas domiciliares e baseadas nos “Dez Passos da Alimentação Saudável para Crianças Brasileiras Menores de Dois Anos”13,47. Além disso, a percepção materna de adesão às orientações fornecidas por profissionais da saúde está associada a maiores prevalências de AME, introdução de alimentos sólidos após quatro meses e introdução de alimentos não recomendados após seis meses, além de maior renda familiar44.
O presente estudo contribui para melhor compreensão dos fatores associados à introdução precoce de alimentos ultraprocessados na alimentação infantil. Quanto às limitações, elencam-se a ausência de um documento validado para a análise do consumo dos AUP no momento da realização da pesquisa e o desconhecimento da frequência e da qualidade das orientações acerca da alimentação fornecida pelos profissionais de saúde às mães. Também refere-se o menor tamanho amostral da variável IMC materno, já que foram avaliadas 220 mães.
Conclui-se assim que as práticas alimentares de crianças entre quatro e 24 meses estão inadequadas frente às recomendações atuais da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde. Neste sentido, os profissionais de saúde devem estar atentos a estas práticas para serem capazes de adequar as ações de promoção aos contextos sociodemográficos e culturais da população assistida, a fim de propiciar às mães oportunidades de adquirir conhecimentos e habilidades sobre alimentação infantil. Salienta-se ainda a importância da capacitação e atualização continuada de profissionais da saúde sobre o tema de acordo com as recomendações atuais, para que as orientações sejam dadas de forma adequada e continuada para as mães e familiares.
Espera-se, portanto, que este estudo possa contribuir para a reorientação das ações de educação alimentar e nutricional nos serviços de saúde, sobretudo na atenção terciária, onde os profissionais de saúde, principalmente nutricionistas, têm contato diário com pacientes e seus familiares, podendo realizar ações de promoção do AM e AC saudável para prevenir agravos nutricionais já na primeira infância.