versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.9 Rio de Janeiro set. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017229.12752017
A violência contra as crianças é reconhecida pela Organização Mundial de Saúde como um problema global, afetando, a cada ano, milhões de crianças, familiares e comunidades1. Existem diversas formas de manifestação desta violência, seja por meio da negligência, abandono e maus tratos, agressões física, psicológica e sexual, contendo traços agravantes pelas subnotificação e vulnerabilidade das vítimas2-4.
A violência contra a criança está disseminada por todos os países e sociedades. O impacto sobre a vida de cada criança é profundo, e os custos econômicos mundiais resultantes da violência física, psicológica e sexual contra crianças chegariam a cerca de sete trilhões de dólares e cerca de 8% do Produto Interno Bruto global2.
As violências sofridas na infância, mesmo sem lesões físicas aparentes, são acompanhadas de sofrimentos psíquicos e resultam em traumas profundos para toda a vida4. Além disso, a violência doméstica aumenta o risco das crianças nela envolvidas tornarem-se vítimas de homicídios5.
A violência é fenômeno complexo, resultando de desigualdades sociais, questões culturais e históricas4, e seu enfrentamento implica em comprometimento dos governos e da sociedade. Em 2015, a ONU incluiu objetivos de enfrentamento da violência na infância aos Objetivos do Desenvolvimento do Sustentável (ODS), indicando o muito ainda a ser feito na prevenção de violências contra crianças e mulheres6. Eliminar a violência contra a criança deve ser uma prioridade pública, acabando com a percepção de que seja algo aceitável.
O Ministério da Saúde conceitua a violência como evento causado por ações impostas por indivíduos, grupos, classes, nações, que ocasionam danos físicos, emocionais, morais e/ou espirituais a si próprio ou a outros e a diferencia de acidente, por serem estes de origem não intencional e evitável7. Quanto à sua natureza, a OMS classifica os eventos como violência física, psicológica, sexual e por negligência ou abandono4.
A maioria dos estudos sobre o tema violência no Brasil utiliza o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), o Sistema de Informação Hospitalar (SIH). Dados do SIM, no ano de 2014, apontam que as causas externas foram os principais motivos de mortalidade em crianças de 1 ano a 10 anos8. As informações referentes a inquéritos sobre causas externas e notificação de violência contra as crianças são recentes na literatura nacional, tendo crescido na última década3,9. Com a implantação, em 2006, pelo Ministério da Saúde, do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva)10, com seus dois componentes: Vigilância por Inquérito, e Vigilância Contínua por meio de notificação compulsória das violências interpessoais e autoprovocadas, reduziu-se a lacuna de conhecimentos sobre o tema. O primeiro componente tem sido realizado a cada três anos e este é o primeiro artigo a analisar os dados desta edição do inquérito VIVA 2014 sobre violência contra criança.
Torna-se de grande relevância para o país avaliar a violência praticada contra crianças, por sua vulnerabilidade e incapacidade de reação e denúncia. Embora a literatura especializada agregue informações sobre a participação dos pais e familiares como responsáveis pelas agressões3,4, no Brasil, ainda existe muita subnotificação3,10. A maioria dos casos permanece oculta, tornando-se necessário conhecer mais sobre estas ocorrências, sobre os autores da violência, idades mais vulneráveis, tipos de violência praticados contra as crianças, locais de ocorrência, dentre outros.
Assim, os objetivos do estudo foram descrever as características demográficas, tipos de violência praticada contra as crianças, agressores, locais de ocorrência e verificar a associação entre as variáveis.
Trata-se de estudo transversal realizado pela análise de dados do inquérito do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA). A população de estudo é composta pelas crianças vítimas de acidentes e violências que procuram estes estabelecimentos. O inquérito foi realizado em 86 serviços sentinelas de urgência e emergência no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), localizados no Distrito Federal e 24 capitais brasileiras, em setembro de 2014. Não foram incluídas as capitais Florianópolis/SC e Cuiabá/MT, pelo fato da não realização do inquérito nessas cidades, em função de problemas operacionais10.
Trata-se de uma amostra por conglomerados em único estágio de seleção, sendo a unidade primária de amostragem composta por turnos de 12 horas. Para efeito de sorteio de turnos, considerou-se como período de coleta 30 dias divididos em dois turnos (diurno e noturno), totalizando 60 unidades10.
Foi realizado treinamento centralizado em Brasília, prévio à Pesquisa, pela Secretaria de Vigilância em Saúde, para a padronização da coleta, discussão e capacitação para utilização dos instrumentos, procedimentos e fluxos. As equipes capacitadas replicaram o treinamento nos seus municípios, garantindo a padronização da pesquisa. Os municípios receberam incentivos financeiros para a execução do inquérito10.
O total de participantes entrevistados no inquérito foi de 55.950, incluindo acidentes, violências e todas as faixas de idade. Entretanto, no estudo atual foram analisados os dados referentes à violência praticada contra criança que procuraram atendimento nos serviços de urgência e emergência selecionados, totalizando 404 crianças menores de 10 anos de idade, no período de setembro a novembro de 2014. Com o objetivo de analisar diferenças de ocorrências segundo idade, foram categorizadas três faixas etárias (0-1 ano, 2-5 anos, 6-9 anos).
Os dados foram coletados por meio de formulário padronizado, já utilizado nas pesquisas anteriores do VIVA, e adaptado para esta edição10. Todos os usuários atendidos por causa externa foram entrevistados pelos pesquisadores capacitados. Os participantes que se encontravam incapacitados de responder, em função das lesões sofridas, ou por serem crianças, ou vítimas incapazes, os acompanhantes foram entrevistados, além de coletados dados em prontuários. Os eventos violentos foram classificados em agressões (X85-Y09), maus-tratos (Y05-Y07) e intervenção legal (Y35), lesões autoprovocadas voluntariamente/tentativa de suicídio (X60-X84).
Inicialmente, foi realizado o estudo descritivo dos casos decorrentes de violência contra a criança. Para verificar possíveis associações entre as variáveis levantadas foi utilizada a técnica de análise de correspondência, uma vez que permite trabalhar com uma grande quantidade de variáveis qualitativas, constituídas de grande número de categorias11,12.
A análise de correspondência constitui uma fase exploratória dos dados e utiliza-se de tabelas de contingência, também denominadas de tabelas cruzadas, para verificar a dependência entre as linhas e as colunas da tabela. Essa técnica exploratória visa sintetizar a estrutura de variabilidade dos dados em termos de dimensões, no qual o número destas é menor que o de variáveis11,12. A análise é equivalente à análise fatorial, porém os resultados são apresentados de forma gráfica, na qual as menores distâncias entre as categorias linha e coluna representam as mais fortes associações entre elas, enquanto as maiores distâncias representam dissociações entre as mesmas13,14.
O algoritmo da técnica de análise de correspondência disponível nos “softwares” estatísticos supõe que os dados são provenientes de plano de amostragem aleatória simples. No entanto, Souza et al.14 discutem o uso dessa técnica em dados provenientes de planos complexos de amostragem (PCA) e alertam que, ao desconsiderar o plano de amostragem, a qualidade dos resultados pode ser questionável. Os autores14 esperam que ao considerar os pesos amostrais no cálculo das proporções de cada célula da tabela, mediante expansão da amostra, o gráfico resultante manterá a mesma proporção da população. Assim, recomendam a utilização de pesos amostrais para a análise de correspondência14. Este procedimento foi utilizado no estudo atual, adotando-se diferentes pesos amostrais referentes a cada capital, o que pode ser visto em detalhes em outras publicações9,10.
A técnica de análise de correspondência simples (ACS) foi utilizada para descrever o perfil das crianças vítimas violência do Inquérito VIVA. Por se tratar de dados provenientes de planos complexos de amostragem (PCA), tomou-se o cuidado em obter, primeiramente, as tabelas de contingência expandidas (total de atendimentos) e, a partir delas, o gráfico de correspondência. Em função do emprego de pesos amostrais, ocorreu a expansão do n amostral, conforme descrito a seguir.
O estimador14,15 do total de atendimentos por acidentes e violências em serviços sentinelas de urgência e emergência no período de 30 dias é dado pela expressão:
sendo:
whij o peso da amostra no h-ésimo estrato (nces), i-ésima UPA (turno) e j-ésimo número de elementos do h-ésimo estrato da í-ésima UPA;
yhij o valor observado da variável (1 se possui e 0, em caso contrário) no h-ésimo estrato, i-ésima UPA e j-ésimo número de elementos do h-ésimo estrato da í-ésima UPA.
Na análise de correspondência, foram selecionadas as seguintes variáveis de interesse: Variáveis coluna, que correspondem aos casos – demográficas (sexo, faixa etária (0-1 ano, 2-5 anos, 6-9 anos); Variáveis linha, ou variáveis de interesse – a) características do evento: tipo de violência (física ou sexual, negligencia/abandono); b) relação vítima/agressor (pai ou mãe, familiar, amigo); c) local de ocorrência (domicílio, escola, via pública); d) natureza da lesão (Contusão/Entorse/luxação, Corte/laceração,Fratura/Amputação/Traumas). Os dados foram analisados no software Stata15 (Quadro 1).
Variáveis demográficas das crianças vítimas de agressão | ||
---|---|---|
Variável coluna | Valor | Descrição |
0 a 1 | 1 = Sim; 0 = Não | Idade entre 0 e 1 ano |
2 a 5 | 1 = Sim; 0 = Não | Idade entre 2 e 5 anos |
6 a 9 | 1 = Sim; 0 = Não | Idade entre 6 e 9 anos |
Masc | 1 = Sim; 0 = Não | Sexo masculino |
Fem | 1 = Sim; 0 = Não | Sexo feminino |
Variáveis relacionadas à ocorrência | ||
Variáveis linha | Valor | Descrição |
Física | 1 = Sim; 0 = Não | Tipo de violência |
Sexual | 1 = Sim; 0 = Não | Tipo de violência |
Negligência/Abandono | 1 = Sim; 0 = Não | Tipo de violência |
Domicílio | 1 = Sim; 0 = Não | Local de ocorrência |
Escola | 1 = Sim; 0 = Não | Local de ocorrência |
Via pública | 1 = Sim; 0 = Não | Local de ocorrência |
Sem lesão | 1 = Sim; 0 = não | Natureza da lesão |
Contusão/Entorse/luxação | 1 = Sim; 0 = Não | Natureza da lesão |
Corte/laceração | 1 = Sim; 0 = Não | Natureza da lesão |
Fratura/Amputação/Traumas | 1 = Sim; 0 = Não | Natureza da lesão |
Pai/Mãe | 1 = Sim; 0 = Não | Agressor |
Familiar | 1 = Sim; 0 = Não | Agressor |
Amigo | 1 = Sim; 0 = Não | Agressor |
O projeto de pesquisa foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Por se tratar de ação de vigilância epidemiológica de âmbito nacional, a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi substituída por consentimento verbal, que foi registrado em um campo na ficha de coleta. Em conformidade com a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, foram garantidos total anonimato e privacidade aos participantes, assim como a liberdade em desistirem de participar da entrevista a qualquer momento e sem prejuízo de qualquer natureza para si próprios ou familiares.
A Tabela 1, de contingência, apresenta os dados expandidos, segundo peso amostral, das vítimas de agressões por tipo de violência estratificada por idade. Predominaram eventos de violência no sexo masculino, de 6 a 9 anos, a negligência/abandono foi a mais frequente, seguida de agressão física e, por último, a sexual. O local de ocorrência mais frequente foi o domicílio. Dentre as lesões predominaram cortes e lacerações, seguidas de contusão/entorse/luxação. Os agressores mais frequentes foram o pai ou mãe, seguido de amigos, familiares.
Variáveis | Idade (ano) | Sexo | |||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
0 a 1 | 2 a 5 | 6 a 9 | Masculino | Feminino | |
Tipo de violência | |||||
Física | 90 | 149 | 290 | 381 | 148 |
Sexual | 5 | 28 | 17 | 20 | 30 |
Negligência/Abandono | 518 | 406 | 80 | 556 | 450 |
Local de ocorrência | |||||
Domicílio | 575 | 424 | 152 | 274 | 313 |
Escola | 10 | 66 | 155 | 162 | 99 |
Via pública | 24 | 57 | 73 | 916 | 248 |
Lesão | |||||
Sem lesão | 129 | 107 | 40 | 172 | 104 |
Contusão/Entorse/luxação | 147 | 83 | 145 | 210 | 165 |
Corte/laceração | 128 | 211 | 128 | 289 | 178 |
Fratura/Amputação/Traumas | 137 | 85 | 48 | 182 | 88 |
Agressor | |||||
Pai/Mãe | 487 | 310 | 74 | 487 | 384 |
Familiar | 79 | 108 | 67 | 144 | 110 |
Amigo | 22 | 83 | 202 | 224 | 83 |
(*) frequências expandidas.
A Tabela 2 apresenta as medidas estatísticas resultantes da análise de correspondência. A primeira coluna apresenta o número de dimensões necessário para explicar 100% da variabilidade conjunta das variáveis relacionadas ao tipo de violência. Nota-se que as duas primeiras dimensões explicam 96% da variância total, sendo que a primeira explica 64,2% e a segunda 32,2%. O valor do χ2 do teste de independência da tabela mostra que a hipótese H0 de independência entre as linhas e colunas é rejeitada. Portanto, nessa amostra, conclui-se que existe associação entre as variáveis relacionadas ao tipo de agressão e as demográficas.
Dimensão | Valor singular | Inércia | chi2 | % variância explicada | % variância explicada acumulada |
---|---|---|---|---|---|
1 | 0.39 | 0.15 | 1727.41 | 64.23 | 64.23 |
2 | 0.27 | 0.07 | 866.86 | 32.23 | 96.46 |
3 | 0.08 | 0.01 | 73.95 | 2.75 | 99.21 |
4 | 0.04 | 0.00 | 21.26 | 0.79 | 100.00 |
Total | 0.23 | 2689.49 | 100.00 |
A Tabela 3 apresenta a composição das variáveis segundo as categorias de violência e demográfica – em cada dimensão. Na categoria “violência”, a variável “local de ocorrência” foi a que mais contribuiu para a dimensão 1 (57%), seguida pela variável “agressor”, com 21%, e “tipo de violência”, com 20%. Na categoria demográfica, a “idade” foi a que mais contribuiu para dimensão 1, com 72%, seguida pela variável “sexo”, com 38%. Na dimensão 2, o “local de ocorrência” foi a que mais contribuiu, com 65%, seguida pela variável “tipo de violência”, com 17%, e “agressor”, com 16%. Na categoria demográfica, a “idade” foi a que mais contribuiu na dimensão 2, com 67%, seguida de “sexo”, com 33%.
A representação gráfica desse conjunto de variáveis foi possível devido à existência da associação entre as variáveis. A Figura 1 mostra as categorias de idade e sexo das vítimas associadas às características de violência nas duas dimensões. Esta associação pode ser observada pela proximidade dos pontos que representam as categorias de cada uma das variáveis. Verificou-se, em relação ao local de ocorrência, que a “Residência” está próximo das vítimas de 0 a 1 ano e 2 a 5 anos, enquanto “Escola” associou-se às vítimas de 6 a 9 anos. O sexo masculino associou-se a ocorrências na via pública. Quanto ao tipo de violência, a “Negligência/Abandono” associou-se às vítimas de 0 a 1 ano e de 2 a 5 anos, enquanto a “Violência Física” associou-se às vítimas de 6 a 9 anos. Quanto ao tipo de agressor, “Pai/Mãe” mostrou-se associado às crianças de 0 a 1 ano e de 2 a 5 anos, enquanto o agressor “Amigo” mostrou-se associado às vítimas de 6 a 9 anos. Em relação às lesões, o sexo “feminino” mostrou-se mais associado com lesões do tipo fratura, ocorrências sem lesão e cortes.
O estudo atual analisou dados do inquérito VIVA 2014 em serviços de emergência nas capitais brasileiras; e ao comparar com os inquéritos anteriores (2006, 2007, 2009 e 2011), alguns aspectos foram semelhantes, como por exemplo a maior ocorrência de violências praticadas contra crianças do sexo masculino. Entretanto, destacamos diversos aspectos distintos, como a ocorrência da negligência como o tipo de violência mais frequente, cerca de dois terços, com maior frequência entre 0 e 1 ano e entre 2 e 5 anos. Nos estudos anteriores a agressão física predominou16,17. Na edição atual a agressão veio em segundo lugar e foi mais frequente contra crianças mais velhas (6 a 9 anos). O estudo apontou ainda a importância da violência sexual contra meninas. Em todas as edições anteriores, o domicílio foi o local de ocorrência mais frequente, o que foi aqui confirmado. Entretanto, outras duas novidades no estudo atual: a importância da violência ocorrida na escola, em especial entre as crianças de 6 a 9 anos. Outra diferença, a visibilidade das violências praticadas contra meninos nas vias públicas. Assim, os resultados do VIVA 2014 realçam não apenas o domicílio como local inseguro para a infância, incluindo a escola e as vias públicas como outros espaços que devem ser monitorados. Em todas as edições do VIVA, os agressores mais frequentes foram os pais, inclusive na atual, mas também se destacaram os familiares e os amigos, apontando a vulnerabilidade das vítimas.
Este é o primeiro estudo do VIVA a empregar a Análise de Correspondência para explorar a ocorrência da violência praticada contra crianças. Foram aplicados pesos amostrais e expansão da população da amostra, o que pode explicar algumas diferenças encontradas. A técnica de caráter exploratório utiliza análise de Regressão Multivariada e visa identificar variáveis associadas ao desfecho violência contra a criança. O estudo atual inovou na opção metodológica, analisando simultaneamente diversas variáveis, e com isto representar conjuntos de dados por meio de um modelo gráfico que facilita a interpretação da relação entre os conjuntos. A proximidade dos dados no gráfico indica uma associação entre os mesmos14. Estudos posteriores poderão avançar nas evidências aqui apontadas.
A opção metodológica do estudo, por meio de análises estratificadas segundo a idade, também foi fundamental, na medida em que existem distinções importantes segundo idade, tipo de violência sofrida, sexo e agressor10,17,18. Torna-se relevante conhecer esta distinção por faixa etária para se definir estratégias de prevenção.
As crianças permanecem mais tempo de suas vidas no domicílio e a ocorrência de violências torna-se mais frequente neste local, especialmente entre as crianças mais jovens, de 0 a 1 ano e de 2 a 5 anos10,17-19. A residência, que deveria ser locus de proteção e de cuidado, torna-se o local de agressão e de vitimização da infância. Autores destacam também a violência estrutural na qual a família se insere, contribuiria para a perpetuação de violações interpessoais nos lares4,19,20. Além disso, a violência doméstica não deveria ser entendida como assunto interno às famílias, e sim como tema de interesse público, na medida que viola os direitos de pessoas vulneráveis21,22.
O presente inquérito apontou a associação entre a ocorrência de violências nas vias públicas e o sexo masculino, que pode ser compreendido pela maior liberalidade das famílias com as brincadeiras dos meninos fora de casa, ocupando outros espaços, enquanto as meninas são mantidas mais em casa, estimulando uma cultura de dominação do universo masculino17,23. Este comportamento resulta em maior violência física praticada contra os meninos mais velhos, 6-9 anos, o que também está em conformidade com a literatura, mas ainda não havia sido tão claramente apontado nas edições do VIVA inquérito4,24,25. Além disso, o estudo ressalta a escola como local de violência praticada contra crianças de 6 a 9 anos, sendo o agressor frequente, o amigo, constituindo uma novidade no inquérito. A violência praticada na escola tem sido bem descrita entre adolescentes mais jovens, destacando-se entre 11 a 13 anos, a prática do bullying, mas também incluindo violência física26. Estudos na escola sobre violência são mais comuns entre adolescentes e na infância ainda são escassos, predominando sobre violência doméstica21. O que remete a aprofundamento da temática.
A violência perpetrada pelos pais pode ocorrer de diferentes maneiras, incluindo-se práticas de autoritarismo, aplicação de castigo físico para a disciplina dos filhos, punições, agressões, negligência, abandono27,28. Alguns estudos destacam o papel dos agressores, pais, mães, namorado ou companheiro da mãe, apontando a complexidade do tema29-32. A violência doméstica ou os abusos praticados no interior da família impedem o desenvolvimento físico e psicológico das crianças, devendo ser enfrentados e condenados por toda a sociedade21.
O estudo atual identificou outros agressores além dos pais, como familiares e amigos. Quanto aos familiares, já existe ampla base de evidências, sendo motivo de grande preocupação31,32, entretanto, violências praticadas por amigos das crianças, resultando em atendimento em urgências, precisam ser aprofundado em outros estudos, já que as evidencias maiores concentram-se em estudos sobre adolescentes26.
A negligência inclui o abandono, a ausência ou a insuficiência de cuidados físicos e emocionais4,18, e pode refletir o próprio abandono da família, a ruptura de laços familiares18, e o uso de drogas por parte dos pais29. Rates et al.18, analisando dados de notificação compulsória, descreveram que negligência e abandono são ocorrências mais frequentes em menores de 1 ano e em meninas, como encontrado no estudo atual. Este resultado também foi consistente com o relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)33 que apontou que as meninas são mais expostas ao risco da negligência. Estudos realizados pelo Conselho Tutelar também apontam que negligência tem sido o tipo de violência mais notificada34.
O estudo atual, diferentemente das edições anteriores do VIVA inquérito16,19, destacou a importância da negligência como a forma mais frequente, chamando a atenção para formas sutis e nem sempre percebidas pelos profissionais de saúde. Este tipo de achado já foi observado na literatura internacional4, mas é a primeira edição do VIVA inquérito a realçar estas ocorrências. A opção metodológica e a escolha da análise de correspondência podem explicar este achado, por empregar análise multivariada e verificar simultaneamente todos os fatores.
Também foi descrita a violência física, em especial contra crianças de 6 a 9 anos, em conformidade com estudos anteriores do VIVA16,19.
A violência sexual foi associada ao sexo feminino e entre meninas de 6 a 9 anos, seguidas das de 2 a 5 anos, o que também está em conformidade com outros estudos17,24,34. O Relatório da UNICEF sobre violência contra as crianças33 aponta que 20% das mulheres adultas e entre 5 a 10% dos homens relataram ter sido vítimas de violência sexual na infância, apontando a extensão do problema e a maior vulnerabilidade das meninas17.
Autores têm apontado que a agressividade está associada ao sexo masculino, como simbologia do poder desde a infância4,23,24. Este perfil irá se desdobrar mais tarde nas ocorrências em adolescentes e adultos, resultando em taxas de morbimortalidade masculina até 10 vezes mais elevada do que em mulheres8,25,35. Relações de gênero na configuração da violência já estão assimiladas culturalmente desde os primeiros anos na infância e foram confirmadas no estudo atual24,36.
Quanto aos tipos de lesões, foram descritas fraturas, contusões, cortes, além de eventos sem sua ocorrência, denotando casos de menor gravidade. Estudos anteriores também apontaram casos mais leves, que resultaram em alta8,9,23, o que, em hipótese alguma, minimiza o risco e a extensão do problema.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990)37 estabeleceu um marco legal em defesa dos direitos da criança, e torna-se fundamental articular a rede de atenção e proteção social, os serviços intersetoriais, a saúde, a educação, os serviços de responsabilização e proteção e outros, visando à redução destes agravos e à proteção da vida destas crianças. Toda a sociedade é responsável pelas ações de proteção às vítimas, porém, e, sobretudo, cabem aos governos a coordenação e a liderança no processo de implementação de políticas públicas que promovam o respeito, garantam direitos e cultura de paz, com o propósito de reduzir e eliminar a reprodução da violência, e, com isso, melhorar a situação das crianças no país, colocando-as como prioridade absoluta.
Dentre os limites do presente estudo, cita-se a utilização da estratégia de serviços de urgência e emergência públicas. Assim, podem não ser estimativas populacionais, embora hospitais públicos concentrem a grande maioria dos atendimentos de causas externas nestas capitais, podendo ser uma proxy do universo. Por outro lado, os serviços sentinelas agregam vantagens por serem serviços de referência de atendimento de causas externas, garantindo maior representatividade, e por terem participado de edições anteriores do Inquérito VIVA, aumenta-se a comparabilidade com edições anteriores nestas cidades. Outro limite pode ser a omissão de informações pelos responsáveis, em função da delicadeza do tema e a participação dos familiares nas ocorrências. Além disso, a metodologia empregada, indicada para estudos exploratórios, deverá ser complementada futuramente por outros, com análises de maior precisão.
As violências contra crianças constituem um grave problema de saúde pública e o estudo atual constitui-se de avanços para o conhecimento da situação, ao descrever as principais características de sua ocorrência: predomínio de vítimas do sexo masculino, crianças menores de 5 anos vítimas de abandono e negligência, tendo os pais como agressores e a residência como o principal local de perpetuação. Destaca-se também a escola como local de risco para crianças maiores e as vias públicas para meninos. O VIVA inquérito continua sendo um importante instrumento de denúncia, conferindo visibilidade ao tema. A delicadeza do tema e a forma reiterada de ocorrência revelam que o problema não foi superado, exigindo uma melhor articulação da sociedade, conselhos tutelares e profissionais de saúde.
Assim, com base nestes achados, poderão ser tomadas medidas de proteção, prevenção e outras legais cabíveis. Foi importante inserir nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável compromissos com a saúde infantil e com o enfrentamento das violências, o que visa garantir um compromisso real das nações e governos com esta problemática. Ocorreram muitos progressos globais na prevenção da violência contra as crianças, mas ainda há muito a ser feito e diversos fatores limitam o impacto de medidas preventivas. Dentre eles, a OMS cita as desigualdades sociais que afetam diferenciadamente crianças ricas e pobres. Nenhuma violência é justificável e toda aquela contra crianças pode ser prevenida.