versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.11 Rio de Janeiro nov. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152111.14472015
Este artigo traz para a discussão o binômio idosos e HIV/AIDS, sob a perspectiva de idosos que vivem com o vírus. A proposta de estudo1 procura desmitificar a ideia de que idoso não faz sexo e registra que a incidência de HIV/AIDS está presente também no grupo etário de 60 anos ou mais. A pergunta de pesquisa foi quais os fatores associados à vulnerabilidade dos idosos ao HIV/AIDS?. Visou-se definir a vulnerabilidade por meio do relato daqueles que estão vivendo com HIV/AIDS, priorizando algumas linhas temáticas.
Falar de sexualidade de idosos é quebrar tabus. A atividade sexual não é prerrogativa exclusiva dos jovens2. Conquanto seja assim, vários estudos assinalam essa invisibilidade sexual dos idosos2-6, crença compartilhada inclusive por profissionais da área da saúde7-9 e que justifica o número menor de estudos e publicações sobre o tema, como também constatado por outros autores2,5,10.
Entre idosos, a epidemia de HIV/AIDS tem incidências crescentes em várias populações, como exposto por Sankar et al.10 e em outros estudos11-17. Menos comum, embora crescente, é o foco na população com 60 anos ou mais, que constitui o universo de investigação deste estudo.
No Brasil, a incidência de HIV/AIDS em idosos também é ascendente4,18-20. Na perspectiva de estudos de casos, alguns trabalhos também concluíram que está aumentando o número de idosos com HIV/AIDS no Brasil, como o de Gross21, no Rio de Janeiro (RJ), e o de Barbosa22, na Grande São Paulo (SP).
Neste artigo, busca-se avançar na discussão do tema e, para tanto, utiliza-se o conceito de vulnerabilidade operacionalizado por Mann et al.23, contemplando os níveis individual, social e programático. A lógica do arcabouço conceitual é que o comportamento individual é o maior determinante da infecção pelo HIV, sendo este comportamento mutante e determinado socialmente.
No primeiro nível analítico do arcabouço desses autores23, encontra-se a vulnerabilidade individual, compreendendo a condição do indivíduo, que pode ser afetada pelos fatores cognitivos e comportamentais, em relação com o contexto. No segundo nível, define-se a vulnerabilidade coletiva, dividida nas categorias social e programática. A vulnerabilidade social, por sua vez, tem relação com os aspectos econômicos, culturais e sociais (gênero, crenças religiosas, desigualdade social e democracia); a programática se relaciona à definição de políticas, organização de serviços, acesso à informação, educação, saúde e assistência social24. Os autores23 chamam atenção para o fato de que os indivíduos, embora vivendo em uma mesma localidade, podem apresentar graus diferentes de vulnerabilidade, na proporção da diferença das necessidades individuais de informações, educação, serviços sociais de saúde e apoio, assim como da capacidade de enfrentar o risco24,25.
Para Mann et al.23, a redução da vulnerabilidade implica a sua antítese, o empoderamento. Empoderar significa ofertar serviços sociais e de saúde que permitam aos indivíduos tomar decisões26. Em se tratando das práticas sexuais, os autores23 reconhecem que são decisões tomadas, geralmente, em conjunto com o(a) parceiro(a). Contudo, as intervenções ao HIV são focadas no indivíduo.
Logo, amplia-se a discussão, passando a considerar a existência de identidades (e práticas) intersubjetivamente construídas, assumindo que existem contextos intersubjetivos nos quais se efetiva a vulnerabilidade ao HIV/AIDS27, contemplando o componente relacional. “Nós somos porque o Outro é, nós somos à medida que o Outro é; nós não somos senão diante de um Outro”27.
Vulnerabilidade, portanto, com base em Brasil28 e Mann et al.23, é o conjunto de fatores de natureza biológica, epidemiológica, social, cultural, econômica e política cuja interação amplia ou reduz o risco ou a proteção de um grupo populacional, diante de uma determinada doença, condição ou dano28. Alguns aspectos desse conjunto, ou seja, das três dimensões principais da vulnerabilidade – individual, social e programática25,28-31, são contemplados neste artigo.
Foi adotada metodologia qualitativa, realizando-se entrevistas em profundidade, semiestruturadas32, pela proposta de descrever o fenômeno de forma detalhada e pela possibilidade da interação de perspectivas múltiplas, registrando o ponto de vista do indivíduo e as interpretações individuais sobre o tema33, e abordando pessoas com escolaridades diversas34. O conhecimento de significados, que têm a função de estruturar e organizar a vida das pessoas35, permitiu um melhor entendimento do objeto de estudo.
Foram realizadas 20 entrevistas com idosos que vivem com HIV/AIDS atendidos no Hospital Eduardo de Menezes da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (HEM/FHEMIG), em Belo Horizonte, sendo 12 mulheres (3 institucionalizadas) e 8 homens, que expressaram o consentimento livre e esclarecido para participar da pesquisa, no período de fevereiro a abril de 2014, nas dependências do HEM/FHEMIG.
Optou-se por adotar o laudo definidor do estado mental dos idosos proferido pela equipe de saúde do hospital, tendo em vista a dificuldade que é definir este estado mental36.
Foi adotado, ainda, o critério de saturação de amostra para pesquisas qualitativas37,38, como também utilizado por outros autores39,40, realizando-se entrevistas até quando não foram obtidos dados novos37. Os critérios de inclusão foram: ter 60 anos ou mais de idade; ter conhecimento sobre a condição sorológica; apresentar condições físicas e psíquicas para participar; aceitar o convite e manifestar o aceite por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A análise qualitativa dos relatos foi feita com base na proposta de redes de temas41 que, após a leitura, incluiu seis passos: codificação do material; identificação dos temas; construção de redes temáticas; descrição e exploração das redes temáticas; sumário de temas; interpretação dos padrões registrados.
As análises fundamentaram-se no método hermenêutico-dialético42, que leva em conta a subjetividade, aspecto intrínseco ao estudo da sexualidade. A fala dos indivíduos, atores sociais, é compreendida dentro do contexto e o ponto de partida é o “interior da fala” e, o ponto de chegada, o “campo da especificidade histórica e totalizante que produz a fala”42. Adotando-se a hermenêutica, entender a realidade contextualizada é entender o outro. Por sua vez, a dialética considera como fundamento da comunicação as relações sociais historicamente dinâmicas, antagônicas e contraditórias entre classes, grupos e culturas42.
Este estudo cumpre os princípios éticos necessários às pesquisas com seres humanos, com pareceres dos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e do HEM/FHEMIG.
A maioria dos entrevistados estava em uso de TARV (90%), estiveram ou estavam em união (85%), contraíram HIV/AIDS em relação sexual (90%), consideraram como boa a adesão à TARV (70%) – adesão definida como “boa” é aquela na qual o indivíduo toma todos os medicamentos prescritos (conceito adotado pela equipe médica) –, tinham vida sexual ativa (65%), não revelaram seu status sorológico (90%) e não estiveram internados em decorrência de doença pelo HIV (55%). Para metade dos entrevistados o diagnóstico foi conhecido antes de terem completado 60 anos.
Embora ao longo do texto se faça menção individualizada aos trechos selecionados, o critério adotado foi o de representatividade, ou seja, o teor dos relatos reflete os posicionamentos hegemônicos entre a totalidade dos entrevistados.
Entre os idosos entrevistados foi possível distinguir cinco situações no que se refere à descoberta da condição sorológica. A primeira é marcada pela descoberta da infecção pelo vírus HIV em decorrência do diagnóstico da companheira, do marido ou da morte do companheiro (marido) por aids.
Minha fia, foi uma dor muito forte. E tive dó, e tive raiva, ódio, achei bem feito porque a doença dele me contou que ele me traía. Ai, sofri muito, muito mesmo. E aí bebi muito, muito! Eu olhava pra ele e achava que ele tava pagando, sabe?! Pagando... mas, tinha dó. Tinha de cuidar dele, né?! E cuidei, até o derradeiro dia. E fui obrigada a fazer o teste. Aí, foi mais dor. Mais tudo de raiva. Porque peguei dele, uai... e ainda hoje, quando tenho de tumar os remédio, as vez eu tenho raiva... E tomo umas... E fico com mais raiva dele. E ele é só alma hoje... [risos]. (82 anos, viúva, analfabeta, diagnosticada há 15 anos).
A segunda condição é a descoberta do vírus por causa de uma doença oportunista, como a idosa que tratou de tuberculose e, como não melhorava, foi encaminhada para exames adicionais que constataram a infecção pelo HIV/AIDS:
Mas disparou minha fia disintiria ni mim... Aquela dor na barriga assim, oh... Que ela atravessava aqui e vinha pra debaixo da costela aqui e fazia tchummm e eu oh... Estiquei pro banheiro... Aí, eu fui num cumpadre meu lá... até o padrim da minina minha... Consultei com ele... [Contou como foi a consulta]. Mas a disintiria era dimais! E é banheiro na certeza... A roupa ganha, minha fia, se eu não achar o banheiro [cochichou]. E esse trem [o teste para HIV] pra cá... E vem vem vem... agora apareceu esse negócio [HIV/AIDS] e eles ta falando que é isso... (71 anos, viúva e em união, analfabeta, diagnosticada há 5 anos).
A terceira condição é pautada pela descoberta da infecção durante a realização de um check-up, ou exame para o trabalho, ou de rotina:
Eu fui fazer uma olhada de tudo, minha fia. E falei pro dotor que meu cumpanheiro é mulherengo, que uma amiga minha viu ele com uma muié esquisita... Eu nunca pensei nisso, nunca achei que podia ta em mim, sabe? Aí, foi certeiro! O dotor me mandou pra cá. Mas custei acreditar, mesmo com meu cumpanheiro safado... (63 anos, viúva, analfabeta funcional, diagnosticada há quase 3 anos).
A quarta condição insere na discussão a questão da violência contra a mulher e os usuários de droga. Exemplo disso é o caso de uma idosa que afirma que o diagnóstico foi positivo seis meses após o estupro (idosa viúva e em abstinência sexual há mais de 10 anos, até a ocorrência do estupro), assim como o de um idoso que alega que foi diagnosticado após espancamento na rua, por causa de drogas.
Tudo aconteceu assim... fui estuprada perto da minha casa, quando ia pra farmácia... Foram 2 homens, eles me estupraram e me rasgaram... ficou um buraco enorme em mim, da vagina ao ânus. Aí, fui levada pro hospital Júlia Kubitschek e tomei o coquetel e fiz perioplastia. Fiquei internada por 2 meses, recebi alta e fui pra casa. Seis meses depois, rompeu o buraco em mim... voltei pro hospital, sangrando e, quando chegou lá, fizeram o exame e deu que eu tava com essa doença... (64 anos, viúva, 4ª série do 1º grau, diagnóstico há 3 anos).
A quinta condição traz um elemento novo para o debate: a descoberta ocorreu ao se fazer uma doação de sangue:
Foi a coisa mais engraçada [sic], descobri por conta de doação de sangue... Sempre doei, aí, na última vez, em 2001, o resultado deu que eu tava com a doença... [quando questionada sobre a provável forma de contração do vírus, ela responde] Meu marido morreu há 10 anos, e ainda casada, eu tive um namoro com uma pessoa, acho que foi dele que peguei, ele já morreu, mas não sei de que... (62 anos, viúva e tem companheiro, 3ª série do 1º grau, diagnóstico há 13 anos).
Em quase todas essas condições a categoria de exposição foi o contato sexual. As exceções foram um idoso que afirma ter contraído o HIV pelo compartilhamento de instrumento perfuro-cortante contaminado com sangue, e o outro que contraiu o HIV pelo uso de drogas.
Entre os entrevistados foi recorrente a afirmativa de que a aids é uma doença normal, inclusive por parte de idosas institucionalizadas. Nessa perspectiva, a revelação de um idoso usuário de crack chamou a atenção: pra mim, não me atinge, não fede nem cheira! Ele apresenta uma total despreocupação com a infecção, repercutindo em vários episódios de abandono do tratamento.
Para alguns idosos entrevistados, os significados são ostentados por sentimentos diversos, como raiva, ódio, desconfiança, descrédito, coquetel de remédios, vida que segue. A religião não tem associação com esses significados, constituindo exceção o caso de uma idosa que, em função da sua crença religiosa, não acredita que a aids exista. Essa idosa é assintomática para HIV/AIDS. Gosta de falar, conta detalhes e, realmente, expressa a sua convicção de que a aids não existe, pelo menos nela, não. A sua religiosidade é notória na fala e em símbolos que carrega consigo. Para outra idosa, que não aceita o diagnóstico e apresenta bloqueio com a doença e não menciona o nome da infecção, a religiosidade tem como efeito o esquecimento:
Eu era católica, agora tô começando a passar pra evangélica pra vê se melhora... vamos ver, né? Porque preciso de alguma coisa que me faça esquecer disso... Sinto vontade de sumir. (61 anos, solteira, 4ª série do 1º grau, diagnóstico há 8 anos).
A condição sorológica é associada com uma normatividade de tomar remédios que incomoda, atrapalha o cotidiano. O estigma construído no contexto do HIV/AIDS é incorporado e se ramifica na falta de cuidado consigo mesmas, em quadros de depressão e autodepreciação. Falta de aceitação porque contrair a infecção não foi planejado, não foi para isso que estavam com o marido e o namorado.
É um monte de remédio… tenho de parar de costurar e ir tomar... meu irmão me cobra, me quer bem. Tenho vontade de largar tudo! O resto da vida assim... Mas, como eu ia adivinhar? Eu gostava dele, a gente se dava bem. (67 anos, solteira, 1º grau completo, diagnosticada há 5 anos).
A idosa que foi estuprada por dois homens, não sabe definir a aids, e apresenta sentimentos de medo, raiva e pavor, em consequência do estupro e em relação à figura do homem.
Pra falar a verdade, não conheço a doença. Tenho vontade de perguntar ao médico, pra saber o que acontece, porque não sinto nada... Num sei o que é... Só sei que não quero mais homem na minha vida. Quando imagino um homem olhando pra mim, fico louca, com muito medo. Tenho pavor de homem. Só dô conta de encarar o médico, e meus filhos... A última vez que fiz alguma coisa [sexo] foi quando aconteceu o estupro... (64 anos, viúva, 4ª série do 1º grau, diagnóstico há 3 anos).
E, para os homens idosos abordados, há ausência de significado para a aids e, para um deles, esta é uma doença séria, grave, que atrapalha a gente namorar [risos]. E eu gosto de namorar!. Igualmente, para uma idosa, viver com HIV/AIDS é ter uma doença séria, tem de tomar remédio e seguir as orientações do médico, estabelecendo um vínculo forte entre ambos. E observa-se uma completa falta de informações e significados, com ausência de conhecimento sobre a aids, inclusive por idosos com sorologia há muito tempo.
A aids é isso, minha fia... É normal. E eu tomo cuidado com a roupa dos meus filhos e netos... lavo tudo separado. Sei lá... (62 anos, viúva e tem companheiro, 3ª série do 1º grau, diagnóstico há 13 anos).
Algumas mulheres passaram a ser inativas sexualmente após o diagnóstico, como registrado em alguns relatos.
Na minha cama, só ele mesmo... foi jura de amor para a vida toda, minha fia! Num quero mais homi, num quero mais saber dessas coisa aí... Namorar... Eu falo que, mesmo sendo só ele, eu peguei essa doença, imagina se arrumo mais um homi pra dar dor de cabeça... a gente vevi sem isso, minha fia. A gente vevi... (64 anos, viúva, analfabeta, diagnóstico há 14 anos).
Para um dos idosos entrevistados não há o celibato, mas ele afirmou que reduziu muito o número de relações sexuais. Outro idoso contou que tem vida sexual ruim porque tem de usar preservativo e por causa do efeito colateral da TARV na função erétil, como citado em Cooperman et al.43.
No que concerne às experiências desprotegidas, algumas idosas revelam que os companheiros sabem da condição sorológica e recusam-se a usar preservativo, ou a negação do uso do preservativo é consenso entre o casal. Os companheiros de algumas idosas vivem com HIV/AIDS. Um deles, por exemplo, não faz uso da TARV, outro faz o tratamento, e há ainda o caso de outro que nunca fez o teste e não quer fazê-lo.
Oia procê vê minha vida, minha fia... Meu cumpanheiro num quer usar camisinha... ele sabe que eu tô com essa doença, e num quer usar. Também num quer fazer o teste. O doutor pediu pra ele vim fazer, ele num veio. É turrão! Teimoso, minha fia. Num quer fazer teste, num quer proteger, privinir, ou como fala mesmo? Num quer... (60 anos, viúva e em união, analfabeta, diagnosticada há 7 anos).
Eu vô pros forró, minha fia! Eu namoro nos forró. E camisinha, pra que? Bobagi... [risos] Num carece disso não! (61 anos, separada, analfabeta, diagnóstico há 2 anos – institucionalizada).
Uma idosa, embora depressiva, com falhas na TARV e descontente com a vida, afirmou que usa o preservativo nas relações sexuais, orientada pela equipe que cuida dela quando retorna ao HEM/FHEMIG para buscar medicamentos. No tocante ao sexo desprotegido, alguns idosos também afirmaram o uso não constante do preservativo, mesmo após o diagnóstico.
Tenho cuidado com minha muié, agora, há um ano, desde que deu que tenho essa doença. Mas, num deixo de namorar. E num é toda vez que leva a tal camisinha, e ela atrapalha, a verdade é só essa. (66 anos, casado, analfabeto, diagnóstico há um ano).
Minha amante tem 40 anos e não tem HIV. Aí, as veis falha o uso da camisinha, mais eu uso de veis em quando. (61 anos, separado e tem amante, 7ª série do 1º grau, diagnóstico há 16 anos).
Um idoso, com três anos de estudo superior, com sorologia positiva para o HIV desde 1993, afirma que nunca deixou de usar o preservativo com sua esposa, e nunca a traiu (alega que contraiu o vírus utilizando instrumento perfuro-cortante contaminado com sangue). É incisivo ao afirmar: Jamais faria isso com ela! Neste sentido, de ter consciência da possibilidade de transmissão do vírus em relações não protegidas, outro idoso, com a 5ª série do primeiro grau, se expressa:
Pra mim tem de usar preservativo, e outra coisa... Já saber que tem um problema desse e se vai querer passar pra frente... Só se a pessoa não tiver com cabeça, né? Não é um ser humano... Não é isso? (60 anos, separado, 5ª série do 1º grau, diagnóstico há 13 anos).
A tônica dos resultados apresentados diverge de equívocos relacionados ao HIV/AIDS, como, por exemplo, a associação do HIV/AIDS com a morte iminente que ainda surpreende, ainda mais em um país como o Brasil, cujo acesso à TARV é universal, pelo Sistema Único de Saúde44. Essa associação é base para estigma, preconceito e raiva e demais sentimentos ao se conhecer a condição sorológica do parceiro. Aids como castigo também é um conceito arraigado45 e, nesse rol de equívocos, registra-se a comparação da aids com o câncer, perigosa e letal15, como a encarnação de um mal que representa a morte anunciada46.
Sobre a infidelidade e o relacionamento extraconjugal, a cultura machista na qual foi educada a maioria dos atuais idosos preza a multiplicidade de parceiros e é socialmente aceita47. Alguns relatos ratificam o fato de as mulheres idosas terem, também, a mesma cultura machista no sentido de se verem como a mulher de família, cuja referência é amor/afeto e sexo e a negação da relação sexual pelo prazer em si48. Poder aproveitar a vida, porque são homens, por terem uma sexualidade incontrolável e por ser esperado que eles tenham múltiplas parceiras49, são especificidades socioculturais e comportamentais que justificam o caso extraconjugal do marido. A sexualidade feminina sustenta-se em referências normativas que definem o sexo como dever conjugal e o prazer como um direito dos homens48.
No tocante à tuberculose, há um desafio em tratar o paciente com HIV e tuberculose50 e retoma-se a questão cultural e da invisibilidade sexual2,10 dos idosos. Essa invisibilidade é observada também na iniciativa pessoal de fazer o teste anti-HIV, denunciando que a sexualidade dos idosos é invisível inclusive para os profissionais de saúde5,7,10. A ausência da crença de estar vulnerável em relação à possibilidade de contrair o HIV é forte entre os idosos, como também observado por outros pesquisadores26,51,52. Já os casos do estupro e violência representam sérias violações dos direitos humanos e são, igualmente, problemas de polícia e de saúde pública, dadas as dimensões dos fatos53.
Sobre a relação da religiosidade com a negação da existência da aids, Chepngeno-Langat14 encontrou, realizando um survey na África Subsaariana, que religiosidade é significativamente associada com a percepção de se contrair o HIV e os indivíduos frequentes a eventos religiosos mais que uma vez por semana têm menor percepção do risco de infecção pelo HIV.
Tratando-se do estado físico, há estudos, como o de Paiva et al.54, ressaltando a dificuldade de aceitação e tratamento daquelas pessoas que não têm sintomas e não se sentem doentes. E o vínculo forte com a figura do médico, como pontuado em alguns depoimentos, tem sintonia com o encontrado nos estudos de Cardoso e Arruda55, de existência de vínculo forte com os pacientes aderentes ao tratamento.
Como exposto em outros trabalhos16, a falta do uso do preservativo, mesmo entre idosos infectados pelo HIV, deve estar relacionada tanto à simbologia e ao significado que o preservativo tem para esses idosos26,56, quanto à questão de gênero e poder da mulher29,57,58. No conjunto, os relatos mostram como é complexo e difícil o processo de negociar práticas sexuais mais seguras59, mostrando ausência de associação entre escolaridade e percepções sobre HIV/AIDS entre os idosos entrevistados, e indo além das formulações sob a perspectiva teórica que se traduz no discurso de vitimização da mulher. Em algumas situações, o não uso do preservativo é uma escolha da mulher, por motivos que precisam ser pesquisados, visto que a negociação do uso, ou não, é um jogo dinâmico48.
Estes são alguns dos fatores associados à vulnerabilidade nos três níveis de análise que, somados às condições biológicas diferentes de cada idoso e reforçados pela ausência de conhecimento sobre HIV/AIDS, por parte deles, e pela invisibilidade sexual dos idosos, definem a capacidade de resposta do indivíduo à vulnerabilidade.
Ressalta-se que o contexto social no qual os idosos entrevistados se inserem define os significados individuais e, como fator agravante, a falta de informações perpassa todos os níveis de vulnerabilidade, criando uma situação desconfortável onde, de um lado, idosos exercem sua sexualidade com total liberdade, no sentido de não se protegerem e se sentirem imunes e, de outro lado, a sociedade e o estado, na figura dos entes sanitários, acreditam que eles são assexuados.
Os idosos entrevistados apresentam, grosso modo, baixa capacidade de resposta à vulnerabilidade, porque têm percepções e crenças equivocadas e comportamentos fundados em relações de gênero estruturadas com assimetria de poder48,57,58. Eles, em geral, não sabem o que é a aids, a infecção em si, como também não sabem da necessidade de se preservar para evitar uma reinfecção com outra cepa do vírus59,60. Compreender os significados da aids para os idosos é adentrar no mundo da sexualidade e concebê-la como um constructo social e cultural61.
Fazem-se necessárias políticas públicas que tenham como núcleo a oferta de informações. Acredita-se, ainda, na necessidade de estratégias boca a boca, respeitando-se a individualidade de cada idoso e a vontade deles de conversar, inclusive sobre sexo e afins, oportunidade para se falar da erotização do uso do preservativo. Igualmente, é necessário que haja política pública voltada para os idosos que vivem com HIV/AIDS, além do tratamento, como também para os agentes públicos de saúde, visto que a TARV é feita pelo SUS. São ações que permitem perceber os idosos integralmente, ou seja, desmitificar a invisibilidade sexual deles e assumir o caráter interativo das práticas sexuais, garantindo-lhes uma vida sexual saudável e contínua, o que lhes é de direito.