versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.3 Rio de Janeiro mar. 2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018243.02022017
O aumento da expectativa de vida da população contribuiu para uma transição no perfil de morbimortalidade, no qual as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) passaram a ser a principal causa de morte no mundo. Dentre as DCNT, o diabetes mellitus (DM) é considerado como um grave problema de saúde pública, devido a sua elevada prevalência, que já atingiu proporção epidêmica, sendo um dos principais fatores de risco para doenças cardiovasculares e acidente vascular encefálico1,2.
O DM consiste em um grupo de distúrbios metabólicos caracterizados por defeitos na síntese e/ou ação da insulina, o que gera um estado de hiperglicemia constante. O DM tipo 2 (DM2) é a forma presente em 90% a 95% dos casos1. Em 2014, no mundo, 387 milhões de pessoas com idades entre 20 e 79 anos possuíam DM, com uma prevalência de 8,3% e destes, 77% viviam em países subdesenvolvidos2. No Brasil, 11,6 milhões de pessoas vivem com o DM, uma prevalência de 8,6% na população adulta, com prognóstico de que, em 2030, sejam 16,3 milhões de indivíduos2. Estudo desenvolvido com dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), um inquérito domiciliar realizado no Brasil em 2013, pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou que a prevalência de diabetes aumentou com o avanço da idade, atingindo aproximadamente 20% da população das faixas etárias de 65 a 74 anos e de 75 anos ou mais, um contingente superior a 3,5 milhões de pessoas3.
O desenvolvimento do DM2 está associado a fatores hereditários, comportamentais e socioeconômicos. O controle dessa doença envolve ações individuais para o autocuidado com o apoio constante de uma equipe multiprofissional de saúde, que oriente quanto ao seguimento de um plano alimentar, a monitorização da glicemia capilar, a realização de atividades físicas e o uso correto da medicação4.
Uma das estratégias para avaliar a efetividade do tratamento do DM é a aferição laboratorial periódica da hemoglobina glicada (HbA1c), que representa o percentual de hemoglobina que se encontra ligada à glicose, sendo considerada a referência básica para o controle glicêmico. Esta é uma importante ferramenta para os profissionais de saúde no acompanhamento dos diabéticos e na análise da efetividade do plano terapêutico1,5.
Embora a literatura demonstre a importância do exame de HbA1c como um indicador do controle glicêmico do DM21,4, não foram identificados estudos nacionais que abrangesse a avaliação desse exame em pessoas com mais de 40 anos, idade em que a maioria das pessoas com DM2 é diagnosticada1,6, e os fatores associados a sua alteração. Além disso, essa pesquisa buscou identificar a situação das pessoas com DM2 acompanhadas pela Atenção Primária a Saúde, com base nesse indicador de resultado do plano terapêutico.
Este estudo teve como objetivo investigar os fatores associados ao controle glicêmico de pessoas com diabetes mellitus.
Este estudo atende um dos objetivos de um projeto de pesquisa financiado que avaliou os fatores associados ao risco de ulceração nos pés de pessoas com DM em um município de grande porte no sul do Brasil. Estudo transversal, realizado com indivíduos com DM2, cadastrados em todas as 38 Unidades Básicas de Saúde (UBS) da área urbana desse município, no ano de 2012. Para o cálculo da amostra solicitou-se a Secretaria de Saúde Municipal o total da população com DM2 do município. Contudo, segundo o órgão, os dados referentes ao cadastro das pessoas com DM encontravam-se desatualizados, inviabilizando a identificação da população total de diabéticos. Sendo assim, o cálculo da população total de pessoas com DM2 foi realizado com base na estimativa do MS, que determina a prevalência de DM2 de 11% na população acima de 40 anos6, ou seja, 20.634 indivíduos. Assim a amostra desse projeto foi estratificada por região do município e calculada no programa Epi Info, considerado um erro amostral de 5%, nível de confiança de 95%, totalizando 1.679 indivíduos, contudo obteve-se, aproximadamente, 10% de perdas e amostra final foi constituída de 1.515 indivíduos.
Entretanto, dos 1.515 participantes que participaram do projeto guarda chuva, 769 pessoas foram excluídas da análise para o alcance do objetivo deste estudo, que consiste na identificação dos fatores associados ao controle glicêmico, uma vez que apresentaram os resultados dos exames laboratoriais incompletos ou realizados há mais de 12 meses. Portanto, a amostra final foi determinada em 746 pessoas.
Cada UBS do município disponibilizou uma lista com a identificação dos diabéticos cadastrados no Sistema de Cadastramento de Hipertensos e Diabéticos. Nesta lista foram sorteados os participantes do estudo para compor a amostra. Estes indivíduos deveriam atender aos seguintes critérios para inclusão no estudo: capacidade cognitiva preservada; não possuir úlceras ativas nos membros inferiores e não realizar tratamento dialítico. Quando na coleta de dados, um desses critérios não foram identificados, o participante era substituído por outro em um novo sorteio. Os dados foram coletados nas UBSs no ano 2012 por discentes do curso de mestrado e graduação em enfermagem previamente capacitados pela coordenadora do projeto de pesquisa.
Utilizou-se um instrumento que abrange as etapas de entrevista, análise dos prontuários e avaliação clínica dos pés5. A alteração do exame de hemoglobina glicada (HbA1c) foi considerada como variável dependente desta pesquisa, sendo esta classificada como elevada quando o valor apresentava resultado superior a 7%. É recomendado que o exame de HbA1c seja realizado pelo menos duas vezes ao ano para os pacientes com controle razoável e a cada 3 meses para os mais instáveis1. Entretanto, neste estudo foram considerados os resultados de exames realizados há pelo menos 12 meses, uma vez que estes resultados foram coletados nos prontuários dos indivíduos e apenas 20% da amostra apresentava os dados deste exame há menos de 6 meses.
As variáveis independentes foram relacionadas a dados socioeconômicos, estilo de vida, condições clínicas e ao risco para o desenvolvimento de úlceras nos pés. As variáveis socioeconômicas incluíram o sexo, idade, situação conjugal, escolaridade, cor da pele e classificação socioeconômica. A classificação socioeconômica foi determinada segundo a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP)7. As variáveis de estilo de vida também foram autorreferidas e relacionadas à realização de dieta alimentar, prática regular de atividade física, tabagismo e consumo excessivo de álcool. A prática de atividade física foi considerada regular quando o indivíduo referia realizar no mínimo 30 minutos de exercícios físicos, três vezes ou mais por semana. A ingestão de álcool foi considerada em excesso quando superior a uma dose/dia para mulheres e duas doses/dia para homens1.
Os dados relacionados às condições clínicas foram: tempo de diagnóstico, uso de insulina, obesidade, hipertensão arterial (HA) e dislipidemia. Ainda, nesse item foram verificados histórico dos seguintes eventos cardiovasculares ou complicações crônicas: acidente vascular encefálico, infarto agudo do miocárdio, retinopatia e nefropatia diabética. Estes dados foram coletados nos prontuários e completados durante a entrevista. A obesidade foi identificada por meio do cálculo do índice de massa corpórea (IMC) e diagnosticada quando o IMC ≥ 30 kg/m2. A dislipidemia foi determinada segundo os resultados dos exames laboratoriais do perfil lipídico do último ano e caracterizava-se por lipoproteínas de alta densidade (HDL) < 45 mg/dl, triglicerídeos > 150 mg/dl, lipoproteínas de baixa densidade (LDL) ≥ 100 mg/dl e colesterol total > 200 mg/dl1.
Realizou-se ainda a avaliação clínica dos membros inferiores pelo pesquisador. O indivíduo foi considerado com risco para o desenvolvimento de úlceras nos pés quando apresentava sinais da neuropatia periférica, alterações vasculares, deformidades nos pés e/ou em caso de amputação ou úlcera prévia1.
As análises estatísticas foram realizadas com auxilio do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) 21.0. A medida de associação empregada foi à razão de prevalência (RP) tanto para a análise bivariada como para a regressão de Poisson. Para ambas as análises adotou-se o nível de significância de 5% no teste qui-quadrado de Wald e foram apresentados o valor de p e o intervalo de confiança de 95% (IC95%). Variáveis com valor de p < 0,20 na análise bivariada foram selecionadas para compor o modelo ajustado por regressão de Poisson.
A pesquisa obteve aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética – CAAE e seguiu as recomendações para a pesquisa com seres humanos, com utilização de Termo de Consentimento Livre e esclarecido.
As diferenças entre as características socioeconômicas dos participantes incluídos e excluídos do estudo foram apresentadas na Tabela 1.
Tabela 1 Diferenças entre características socioeconômicas dos participantes incluídos e excluídos do estudo, Brasil, 2012.
Variáveis | Participantes incluídos no estudo (n=746) | Participantes excluídos do estudo (n=769) | p-value | ||
---|---|---|---|---|---|
|
|
||||
n | % | n | % | ||
Sexo | |||||
Feminino | 489 | 65,5 | 465 | 60,5 | 0,043 |
Masculino | 257 | 34,5 | 304 | 39,5 | |
Idade (anos) | |||||
40-49 | 49 | 6,6 | 38 | 4,9 | 0,375 |
50-69 | 424 | 56,8 | 451 | 58,6 | |
≥70 | 273 | 36,6 | 280 | 34,4 | |
Cor da pele | |||||
Branca | 382 | 51,2 | 430 | 55,9 | 0,071 |
Não branca | 364 | 48,8 | 339 | 44,1 | |
Situação conjugal | |||||
Com companheiro | 489 | 65,5 | 515 | 67,0 | 0,298 |
Sem companheiro | 257 | 34,5 | 254 | 33,0 | |
Anos de estudo | |||||
Oito anos ou mais | 162 | 21,1 | 231 | 30,0 | 0,051 |
Até oito anos | 589 | 78,9 | 538 | 70,0 | |
Classificação socioeconômica | |||||
A/B | 176 | 23,6 | 255 | 29,3 | 0,052 |
C | 462 | 61,9 | 468 | 60,9 | |
D/E | 108 | 14,5 | 76 | 9,9 |
Após análise de perdas para todas as variáveis, observou-se diferença estatisticamente entre as pessoas incluídas e excluídas no estudo apenas para a variável sexo: 48,7% das mulheres e 54,2% dos homens não compuseram a amostra, devido a não apresentarem os resultados dos exames laboratoriais no último ano.
Dentre os 746 participantes inclusos no estudo, 521 (69,8%) apresentaram o resultado do teste de hemoglobina glicada elevado. Em relação aos dados socioeconômicos, essa alteração foi mais prevalente em mulheres, pessoas não brancas, com companheiro, com mais de oito anos de estudo e da classe econômica A/B. Identificou-se associação estatisticamente significativa apenas para a variável idade, sendo que as pessoas entre 50 e 69 anos apresentaram maior prevalência (76,9%) de valores de hemoglobina glicada acima do normal em comparação com aquelas entre 40 e 49 anos (p = 0,019) (Tabela 2).
Tabela 2 Prevalência da elevação no resultado da hemoglobina glicada, segundo as variáveis socioeconômicas e demográficas, em pessoas com diabetes mellitus tipo 2.
Variáveis | n | % | p-value | RP bruta | IC95% |
---|---|---|---|---|---|
Sexo | |||||
Feminino | 352 | 72,0 | 1 | - | |
Masculino | 169 | 65,8 | 0,089 | 0,91 | 0,82-1,01 |
Idade (anos) | |||||
40-49 | 28 | 57,1 | - | 1 | - |
50-69 | 326 | 76,9 | 0,019 | 1,34 | 1,05-1,72 |
≥70 | 167 | 61,2 | 0,608 | 1,07 | 0,82-1,38 |
Cor da pele | |||||
Branca | 266 | 69,6 | - | 1 | - |
Não branca | 255 | 70,1 | 0,900 | 1,00 | 0,91-1,10 |
Situação conjugal | |||||
Com companheiro | 349 | 71,4 | - | 1 | - |
Sem companheiro | 172 | 66,9 | 0,220 | 0,93 | 0,84-1,03 |
Anos de estudo | |||||
Oito anos ou mais | 119 | 73,5 | - | 1 | - |
Até oito anos | 402 | 68,3 | 0,236 | 0,93 | 0,84-1,04 |
Classificação socioeconômica | |||||
A/B | 132 | 75,0 | - | 1 | |
C | 314 | 68,0 | 0,068 | 0,90 | 0,81-1,00 |
D/E | 75 | 69,4 | 0,319 | 0,92 | 0,79-1,07 |
Não foram observadas diferenças significativas entre as categorias das variáveis referentes ao fumo, à dieta alimentar, à prática de atividade física regular e ao consumo excessivo de álcool.
Entretanto, na análise das condições clínicas, maiores prevalências de elevação no resultado da hemoglobina glicada foram associadas ao tempo de diagnóstico de DM superior a 10 anos (p = 0,003), ao uso de insulina (p < 0,001) e à dislipidemia (p = 0,036). Ainda, verificou-se que os indivíduos com obesidade apresentaram maior prevalência de alteração na HbAc1 em comparação àqueles com peso normal (p<0,001). Já os participantes que possuíam alguma complicação crônica devido ao DM tiveram prevalências de descontrole na HbAc1 semelhantes aos não identificados com alguma dessas complicações. Também, foi verificada uma alta prevalência (80,6%) da elevação no resultado da hemoglobina glicada em pessoas com risco de desenvolverem úlceras nos pés (p = 0,004) (Tabela 3).
Tabela 3 Prevalência da elevação no resultado da hemoglobina glicada, segundo as variáveis de condições clínicas, em pessoas com diabetes mellitus tipo 2.
Variáveis | Total (n=746) | Alteração glicêmica | p-value | RP bruta | IC95% | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|
|
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n | % | n | % | ||||
Tempo de diagnóstico | |||||||
Até 10 anos | 390 | 52,3 | 254 | 65,1 | - | 1 | 1 |
Acima de 10 anos | 356 | 47,7 | 267 | 75,0 | 0,003 | 1,15 | 1,04-1,26 |
Uso de insulina | |||||||
Não | 572 | 76,7 | 369 | 64,5 | - | 1 | 1 |
Sim | 174 | 23,3 | 152 | 87,4 | <0,001 | 1,35 | 1,24-1,47 |
Dislipidemia | |||||||
Não | 161 | 21,6 | 88 | 61,5 | - | 1 | - |
Sim | 585 | 78,4 | 418 | 71,5 | 0,036 | 1,16 | 1,01-1,33 |
Obesidade | |||||||
Não | 389 | 52,1 | 250 | 64,3 | - | 1 | |
Sim | 357 | 47,9 | 271 | 75,9 | <0,001 | 1,18 | 1,09-1,29 |
Hipertensão Arterial | |||||||
Não | 139 | 18,6 | 99 | 71,2 | - | 1 | |
Sim | 607 | 81,4 | 422 | 69,5 | 0,688 | 0,97 | 0,86-1,09 |
Complicações crônicas | |||||||
Não | 559 | 74,9 | 300 | 53,7 | - | 1 | |
Sim | 187 | 25,1 | 102 | 54,5 | 0,834 | 1,01 | 0,87-1,18 |
Risco de ulceração nos pés | |||||||
Não | 653 | 87,5 | 446 | 68,3 | - | 1 | - |
Sim | 93 | 12,5 | 75 | 80,6 | 0,004 | 1,18 | 1,05-1,32 |
Na análise ajustada, permaneceram associadas estatisticamente à alteração na glicemia as variáveis idade, entre 50 e 69 anos, obesidade, uso de insulina e risco de ulceração nos pés (Tabela 4).
Tabela 4 Modelo de regressão múltipla de Poisson com as variáveis associadas ao resultado do exame de hemoglobina glicada elevado, em pessoas com diabetes mellitus tipo 2.
Variáveis | p-value | RP* | IC95% |
---|---|---|---|
Idade (anos) | |||
40 – 49 | 1 | - | |
50 – 69 | 0,008 | 1,38 | 1,09-1,75 |
70 ou mais | 0,355 | 1,12 | 0,87-1,46 |
Obesidade | |||
Não | 1 | - | |
Sim | 0,006 | 1,14 | 1,03-1,25 |
Uso de insulina | |||
Não | 1 | ||
Sim | 0,001 | 1,28 | 1,16-1,40 |
Risco de ulceração nos pés | |||
Não | 1 | - | |
Sim | 0,029 | 1,14 | 1,09-1,28 |
* Modelo ajustado por: sexo, condição socioeconômica, atividade física regular, tempo de diagnóstico e dislipidemia.
Os resultados desse estudo apresentam relevância clínica ao possibilitar a análise do perfil cardiometabólico dos pacientes com DM2, que possuem cadastro nas UBS do município em estudo. Verificou-se, nesta pesquisa, que o tratamento da maior parte dos diabéticos cadastrados nas UBS pode não estar sendo efetivo no controle da doença e na prevenção das complicações crônicas. Essa dificuldade na atenção à saúde desta população já foi mencionada no início do estudo, uma vez que não foi possível avaliar as condições de saúde de 50,7% das pessoas, por não estarem com os exames laboratoriais atualizados, sendo estas excluídas da pesquisa. Este fato comprometeu os resultados da pesquisa ao interferir na estratificação da amostra, uma vez que não foi possível garantir a representatividade das características da população total ao ser necessários excluir todos os indivíduos que não apresentaram o resultado do exame de hemoglobina glicada. Considerando o perfil socioeconômico da população estudada supõe-se que as UBS sejam o principal serviço que esses indivíduos buscam por assistência à saúde.
Identificou-se a elevada prevalência de alteração glicêmica, pois sete em cada 10 pessoas apresentavam exame com alteração. Ademais, essa alteração associou-se, após ajustes por possíveis variáveis de confusão, à idade, à obesidade, à insulinoterapia e ao risco de ulceração nos pés, indicando subgrupos dessa população mais vulnerável a apresentar hiperglicemia.
A realização regular da HbA1c possibilita a avaliação do controle glicêmico e a verificação da eficácia do tratamento medicamentoso, bem como da educação para o autocuidado. Estima-se que entre 33% a 49% das pessoas com DM2 não consigam atingir as metas adequadas de glicemia, pressão arterial, ou controle do perfil lipídico e apenas 14% atinjam parâmetros normais nessas medidas1,8.
O aumento na incidência de DM2 possui estreita relação com o avanço da faixa etária. Neste estudo, ter idade entre 50 e 69 anos foi associado à maior prevalência da elevação da hemoglobina glicada. Os sintomas do DM2 surgem, na maioria das pessoas, após os 40 anos de idade, mas essas já poderiam apresentar o estado de tolerância à glicose diminuída até dez anos antes1,5,9.
Além disso, estudos demonstram que a maior parte dos indivíduos busca por assistência à saúde apenas quando surgem os primeiros sintomas das complicações por DCNT. Dessa forma, muitas vezes, não é mais possível apenas a adoção das estratégias de mudança de comportamento no estilo de vida, sendo necessário o início do tratamento medicamentoso devido as alterações cardiovasculares e o avanço da idade10,11.
Pressupõe-se, ainda, que nessa idade as pessoas estejam muito envolvidas em suas ocupações laborais e disponham de pouco tempo para se dedicarem às ações relacionadas à promoção da saúde e prevenção de problemas, como atividade física e consultas periódicas com profissionais da área. Entretanto, o adoecimento nessa faixa etária tem graves repercussões sociais, uma vez que esses indivíduos poderão apresentar diferentes problemas, que afetam a participação no mercado de trabalho como, por exemplo, o tempo exigido para consultas médicas, internações hospitalares, licenças, limitações físicas, aposentadoria precoce e mortalidade10,12.
Essas podem ser algumas das hipóteses que podem explicar a maior frequência relativa de homens que não realizaram os exames de controle do DM no último ano, conforme a análise das perdas deste estudo. O cuidado com a saúde dos homens tem sido um desafio para políticas públicas, uma vez que eles, por fatores socioculturais, na sua maioria, negligenciam sinais das doenças crônicas, buscam atendimento profissional somente em situação do agravamento dos sintomas e possuem maior dificuldade em se adaptar as mudanças no estilo de vida e autocuidado10,11.
A obesidade também apresentou associação com a alteração nos níveis glicêmicos, independentemente de outras variáveis. O excesso de peso é um dos fatores determinantes para a manutenção da hiperglicemia, por meio de diversos mecanismos, como o aumento dos ácidos graxos livres circulantes, a diminuição da adiponectina e secreção de citocinas pelo tecido adiposo, que em última análise exacerbam a resistência à insulina1,9.
A prática da atividade física regular, apesar de não associada estatisticamente à alteração glicêmica nesta amostra, é essencial para a adequação do peso e do perfil lipídico alterado. A dislipidemia tem efeitos tóxicos nas células β pancreáticas (lipotoxicidade) e, na presença da hiperglicemia, aumenta potencialmente o risco de doenças cardiovasculares, principal causa de morte na população com diabetes1. Em pesquisa desenvolvida com homens adultos, obesos, com e sem DM2, que foram submetidos a um programa de treinamento aeróbio, com duração de 20 a 30 minutos, de quatro a cinco vezes por semana, identificou-se que, ao final de 10 semanas, ambos os grupos apresentaram aumento da respiração mitocondrial, consumo máximo de oxigênio e sensibilidade à insulina, sem diferenças significativas entre os grupos13. Assim, a normalização do IMC é uma das metas mais importantes para o controle do DM2. A perda de peso de dois a oito quilos pode proporcionar a redução dos níveis glicêmicos de 0,5% a 2%, e resulta em benefícios na qualidade de vida das pessoas com diabetes, especialmente no início da doença8,14.
Outro resultado importante foi a associação entre o uso de insulina e a maior prevalência da HbA1c elevada. A insulinoterapia pode ser iniciada em etapas precoces do tratamento do DM, quando somente modificações no estilo de vida associadas aos hipoglicemiantes orais forem insuficientes para obter o controle glicêmico adequado. O ajuste da dose de insulina pode ser feito até atingir essa meta, sem que haja recomendação de limite da dosagem1,15. Portanto, o resultado identificado demonstra que a insulinoterapia não está apresentando eficácia no controle glicêmico da maioria das pessoas com DM deste estudo.
Constatou-se também a prevalência de complicações crônicas em mais da metade da amostra e o risco de ulceração nos pés se manteve associado à elevação da HbA1c. É comum o desenvolvimento das macroangiopatias, que comprometem as artérias coronarianas, dos membros inferiores e as cerebrais. Outras complicações também são conhecidas no DM e englobam as microangiopatias, afetando, especificamente, a retina, o glomérulo renal e os nervos periféricos11,15. A persistência do estado hiperglicêmico é o fator primário desencadeador de complicações microvasculares8,11,15.
Nesse sentido, a dificuldade em controlar a glicemia deve ser um critério para a avaliação sistematizada e periódica dos pés das pessoas com DM a fim de evitar o surgimento de lesões que predispõem as amputações. A manutenção do valor da hemoglobina glicada inferior a 7% esta associada à diminuição do risco de complicações vasculares1,16.
O controle glicêmico e a prevenção das complicações crônicas nas pessoas com DM dependem de diversos fatores, dentre eles o conhecimento e a atitude do indivíduo diagnosticado com a doença para mudanças comportamentais e de estilo de vida. A American Diabetes Association recomenda que os indivíduos com DM recebam educação e apoio para a auto-gestão da doença, uma vez que essa tem sido identificada como medida mais eficaz para o controle e melhoria da qualidade de vida1. Estudos verificaram que programas de educação em diabetes, que incluíam terapia nutricional e planos de cuidado individualizados tiveram associação com a diminuição do HbA1c em pessoas com DM14,17,18.
Em grande parte dos serviços de atenção básica a saúde o enfermeiro tem assumido a responsabilidade de gestão dos casos dos usuários com DM e outras DCNT. A consulta de enfermagem tem sido uma estratégia efetiva para o acompanhamento do diabético e ensino para o autocuidado necessário para prevenção das complicações crônicas19. Nesse contexto, a HbAc1 é um importante indicador para a avaliação da efetividade do plano terapêutico e, ainda, pode ser utilizado na priorização dos casos que necessitam de intervenção e apoio. Tem-se ainda a necessidade de implementação da busca ativa dos diabéticos para a realização do exame de hemoglobina glicada, no mínimo a cada seis meses e em menor período nos que fazem uso de insulinoterapia.
As pessoas que sofrem com o DM têm de aprender a conviver com as várias mudanças de comportamento exigidas para o controle da doença e essas mudanças levam tempo para serem aceitas e incorporadas pelos indivíduos e seus familiares. É comum que os indivíduos que iniciam o tratamento farmacológico apresentem efeitos colaterais como diarreia, náuseas, tonturas e crises de hipoglicemia, além do desconforto pela automonitorização glicêmica e administração da insulina, em alguns casos, que exige a perfuração cutânea diária1. Essa rotina induz grande parte dos diabéticos a não seguirem adequadamente o tratamento e até ao seu abandono. Por isso, sem o apoio dos serviços de atenção básica, fornecendo educação para o autocuidado e subsídios para o controle do DM, rapidamente o quadro clínico desses indivíduos se agrava e surgem as comorbidades e complicações crônicas, que impactam negativamente na sua qualidade de vida.
As limitações do estudo referem-se à necessidade da exclusão de indivíduos da amostra pesquisada devido a não realização dos exames laboratoriais no último ano ou por estes não apresentarem registros nos prontuários. Este fato não possibilitou a avaliação da terapêutica, fundamentada na analise da hemoglobina glicada, de mais da metade da amostra, sendo este um dos principais objetivos do projeto original e compromete, principalmente, a analise de associação com fatores socioeconômicos e situação clinica dos diabéticos.
Além disso, optou-se por avaliar o exame de HbA1c realizado em até um ano, uma vez que os indivíduos que apresentavam o resultado deste exame no prazo estipulado pelo protocolo era muito baixo e não seria possível realizar as análises.
Ainda, os dados relacionados ao estilo de vida ser autorreferidos e poderem estar sub ou superestimados. Além disso, destaca-se a impossibilidade do estabelecimento da relação de causa e efeito entre a variável dependente e as independentes, devido ao delineamento transversal da pesquisa.
Foi possível verificar que os indivíduos na faixa etária entre 50 e 69 anos, os que faziam uso de insulina, os obesos e os que possuíam risco de ulceração nos pés apresentaram proporção de resultado do exame de hemoglobina glicada elevados, independentemente de outros fatores de risco. Esses resultados indicam subgrupos de pessoas com DM que devem receber maior atenção dos serviços de atenção básica.