Compartilhar

Fatores associados ao uso não urgente de unidades de pronto atendimento: uma abordagem multinível

Fatores associados ao uso não urgente de unidades de pronto atendimento: uma abordagem multinível

Autores:

Lidiane Cintia de Souza,
Glaucia Maria Bovi Ambrosano,
Katarinne Lima Moraes,
Emílio Prado da Fonseca,
Fábio Luiz Mialhe

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.28 no.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2020 Epub 09-Abr-2020

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x202000280354

Abstract

Background

Studies in Brazil and in several countries indicate that emergency services are often used as gateways to health systems, overburdening them and impacting on the quality of service provided to the population. However, little is known about this phenomenon in the Emergency Care Units (EUCs) of our country.

Objective

To investigate the variables associated with the inadequate use of two EUCs in a large municipality.

Method

A cross-sectional study was carried out with a sample of 756 individuals that analyzed individual, contextual and service-related variables associated with the inappropriate use of EUCs through a hierarchical multiple logistic regression model.

Results

The final regression model showed that individuals who had self-perceived their condition as an emergency and whose age was equal to or older than 60 years presented high odds to seek these services for non-urgent reasons.

Conclusions

Individual variables were associated with non-urgent use of the ECUs. Future studies of a qualitative nature may help to understand the reasons for the inadequate use of these services by these individuals.

Keywords:  epidemiology; emergency medical services; needs and demand health services; information services

INTRODUÇÃO

A reforma da Política Nacional de Atenção às Urgências (Portaria no 1.600, de 7 de julho de 2011) adotou como estratégia nuclear a implantação da rede temática prioritária de atenção às urgências e emergências (RUE) com vistas a assegurar ao usuário o conjunto de ações e serviços em situações de urgência e emergência com resolutividade e em tempo oportuno1. Entre os componentes dessa rede, estão as unidades de pronto atendimento (UPAs) que funcionam como unidades intermediárias entre a atenção básica e os hospitais e atuam em conformidade com a lógica de acolhimento e de classificação de risco, auxiliando no alívio da demanda aos hospitais e prontos-socorros pertencentes ao Sistema Único de Saúde (SUS)1.

As transições epidemiológica e demográfica vivenciados no Brasil indicam uma acelerada progressão de mortes por causas externas e das doenças cardiovasculares, o que demanda uma nova conformação do sistema de saúde brasileiro2. Nesse sentido, o enfrentamento das situações de urgência e emergência e de suas causas requer não apenas assistência imediata, mas inclui ações de promoção da saúde e prevenção de doenças e agravos, com tratamento contínuo e eficaz das doenças crônicas, reabilitação e cuidados paliativos1. Ademais, o atendimento às urgências deve estar amparado efetivamente em todos os níveis de atenção, cada uma dentro das suas limitações de resolutividade, inclusive na atenção básica3.

No Brasil, as unidades de urgência e emergência, historicamente, são consideradas a referência para o tratamento de problemas de saúde pela população, por serem ambientes com atendimento rápido e resolutivo4. Assim sendo, há uma compreensão equivocada da finalidade do serviço de urgência e emergência, que é vista como alternativa para a falta de resolutividade da atenção básica.

Estudos apontam a existência de demandas desnecessárias em serviços de urgência e que estão relacionadas a fatores sociodemográficos, culturais, do acesso aos serviços e à organização do sistema de saúde5. A utilização inapropriada dos serviços de urgência como porta de entrada para o sistema de saúde pode sobrecarregar o serviço (superlotação) e, consequentemente, impactar a qualidade dos serviços prestados nesses serviços5,6. Ademais, tal fato pode aumentar os custos desnecessários para o sistema de saúde e induzir uma forma de assistência que não produz vínculo com os usuários dos serviços, pois os indivíduos recebem apenas o tratamento dos sintomas agudos7. Entretanto, a produção científica nacional sobre quais fatores levam o uso inapropriado dos serviços de urgência e emergência nas UPAs ainda é escassa, concentrando-se de forma substancial na região Sul do país e em contextos de serviços de urgências hospitalares4,8,9.

Com base no exposto, o objetivo deste estudo foi investigar as variáveis individuais, contextuais e dos serviços de saúde associadas à utilização inapropriada de duas UPAs localizadas em um município de grande porte do estado de São Paulo.

MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal realizado no município de Piracicaba (SP), distante 165 km da capital, São Paulo, e que em 2012 contava com uma população estimada em 364.571 habitantes e índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,78510.

Seleção das UPAs

Fizeram parte do estudo duas das quatro UPAs do município e que haviam implantado o sistema de acolhimento com avaliação e classificação de risco baseado no Sistema de Triagem Manchester, o qual identifica o estado de saúde do indivíduo em quatro níveis de gravidade, por meio de cores: vermelho (emergente); amarelo (urgente); verde (pouco urgente); azul (não urgente)11.

A amostra foi dimensionada para detectar odds ratio acima de 1,50, para taxa de exposto/não exposto na variável independente de 1:1 a 1:5, nível de confiança de 95% e poder do teste de, no mínimo, 80% para todas as associações analisadas, resultando em 756 voluntários.

Seleção dos indivíduos

A população do estudo foi constituída por usuários maiores de 18 anos de idade, de ambos os sexos, que procuraram as duas UPAs, no período de julho a dezembro de 2012, e que, na recepção, haviam sido classificadas de acordo com o critério de risco no processo de acolhimento11. Após terem passado pela classificação de risco e consulta médica, os usuários foram convidados pela pesquisadora a participarem da pesquisa e assinaram um termo de consentimento. No caso dos usuários classificados como urgentes, foi realizada entrevista com aqueles que apresentavam condições de responder às questões e foram excluídos do estudo indivíduos que não residiam em Piracicaba.

Foi elaborado um questionário com base nos estudos anteriores que investigaram o mesmo tema, caracterizando as variáveis independentes do estudo9. A variável dependente caracterizou-se pelas classificações das UPAs em urgentes ou não urgentes. Os questionários foram aplicados por uma entrevistadora previamente treinada para o estudo, que permanecia nas UPAs entre as 8 h e as 18 h, de segunda à sexta-feira. Coletas das informações foram realizadas na sala de espera das duas UPAs e previamente ao atendimento. Selecionou-se esse período, pois, segundo um estudo de Gomide et al.12, há mais estabilidade na procura por serviços de urgência em dias úteis e períodos diurnos (manhã e tarde), já que nesses dias e horários as UBSs e USFs também estão abertas para atendimento (distorção no sistema)12.

Um estudo piloto foi realizado com 20 usuários para verificar a clareza e o entendimento das perguntas, o padrão de respostas e testar o método de entrevista.

Variáveis do estudo

Foram obtidas dos sujeitos informações sobre quatro grupos de variáveis: 1. Variáveis sociodemográficas: idade (18 a 44, 45 a 59, 60 ou mais), sexo, cor da pele (branco/não branco) e situação conjugal atual (com parceiro/sem parceiro); 2. Variáveis socioeconômicas: renda familiar, escolaridade, tempo de deslocamento até a UPA e se possui plano de saúde (sim, não); 3. Variáveis relacionadas ao uso dos serviços: o atendimento da UBS/USF do bairro é (muito bom/bom, regular/ruim, nunca foi), quantas vezes procurou a UPA e a USF/UBS nos últimos seis meses (até três vezes; mais de três vezes), dificuldade de acesso à atenção básica (sim não), já veio antes à UPA (sim, não); 4. Autorrelato de necessidades em saúde: estado de saúde (muito bom/bom, regular, ruim), doença crônica (sim, não), percepção se seu estado de saúde é urgente (sim, não), duração dos sintomas (um a três dias ≤ 4 a 30 dias, > 30 dias). Todas foram selecionadas com base em estudos prévios que verificaram associações com a variável desfecho4-9.

Análise dos dados

As associações entre a classificação do usuário como urgente ou não urgente e as variáveis independentes foram analisadas por meio de modelo de regressão logística múltipla e hierarquizado de três níveis pelo procedimento PROC GENMOD do programa SAS.

Para construir a hierarquização do modelo, utilizou-se o referencial teórico de Andersen (1995), que caracterizou o acesso aos serviços de saúde segundo grupos de variáveis, que abrangem da entrada no serviço de saúde até o cuidado prestado13. Nesse sentido, o acesso é compreendido como produto da relação do indivíduo/usuário (demanda) com as características dos serviços (oferta) para explicar a existência ou não de utilização de serviços de saúde13. O autor desenvolveu um modelo para análise do acesso embasado no trinômio disponibilidade, acessibilidade e aceitabilidade (necessidade percebida) e que permite estabelecer a relação oferta/demanda, o volume e o tipo de serviços existentes, a capacidade financeira (affordability), a organização da rede assistencial e tomando por base as características da população13. Mais do que aspectos mensuráveis e que permitem uma avaliação externa, o acesso é determinado por questões políticas, assistencial/operacional de oferta de serviços de saúde e individuais (objetivas e subjetivas)13. A Figura 1 apresenta uma representação das variáveis que fizeram parte de cada nível, sendo os fatores de predisposição: idade, sexo, cor da pele, situação conjugal, escolaridade e renda; fatores facilitadores: tempo de deslocamento até a UPA, possui plano de saúde, qualidade no atendimento da UBS/PSF, quantas vezes visitou a unidade de saúde nos últimos seis meses, dificuldade de acesso na atenção básica; necessidades percebidas: autoavaliação de saúde, portador de doença crônica, percepção de emergência e tempo de surgimento dos primeiros sintomas.

Figura 1 Modelo de análise multivariado e hierarquizado de acesso a serviços de urgência na modalidade UPA - Piracicaba, 2016 

Foram testadas no modelo de regressão logística múltipla as variáveis com p ≤ 0,20 em cada nível, permanecendo no modelo aquelas que continuaram associadas à classificação da urgência ou não com p ≤ 0,05 após o ajuste para as variáveis do mesmo nível e para os níveis subsequentes. A significância estatística referente à introdução de cada variável no modelo foi analisada pelo p-valor e o ajuste do modelo como um todo foi avaliado pela estatística - 2 vezes o logaritmo da verossimilhança. Todas as análises foram realizadas no programa estatístico SAS versão 9.2. A Figura 1 apresenta o modelo de análise multivariado e hierarquizado de acesso a serviços de urgência na modalidade UPA utilizado no presente estudo.

RESULTADOS

A descrição dos dados e os resultados das análises bivariadas por blocos são apresentados nas Tabelas 1 -3. Entre os 756 adultos entrevistados, 374 (49,5%) possuíam idade entre 18 e 44 anos, 394 (52,1%) eram do sexo feminino, 461 (61,0%) eram brancos, 385 (50,9%) não tinham parceiro, 349 (46,2%) apresentavam baixa escolaridade e 460 (60,8%) possuíam renda familiar de até três salários mínimos. Do total dos usuários entrevistados, 347 (45,9%) foram classificados pelas UPAs como não urgentes pelo sistema de acolhimento com avaliação e classificação de risco. Quanto à idade, os usuários não urgentes apresentaram média de 41,24 anos (DP ± 17,23), enquanto os urgentes, 52,69 anos (DP ± 19,4).

Tabela 1 Resultados das análises individuais da associação das variáveis do bloco distal com o tipo de risco (urgente e não urgente) - Piracicaba-SP, 2016. 

Variáveis N % Urgente OR IC95% p-valor
Sim Não
n % n %
Idade
18 a 44 anos 374 49.5 252 67.4 122 32.6 1
45 a 59 anos 187 24.7 92 49.2 95 50.8 2,13 1,49-3,05 <0,0001
60 anos ou mais 195 25.8 65 33.3 130 66.7 4,13 2,86-5,97 0,0017
Sexo
Feminino 394 52.1 225 57.1 169 42.9 1
Masculino 362 47.9 184 50.8 178 49.2 1,29 0,97-1,72 0,0838
Cor da pele
Branca 461 61.0 236 51.2 225 48.8 1,35 1,01-1,82 0,0452
Não branca 295 39.0 173 58.6 122 41.3 1
Situação conjugal
Sem parceiro 385 50.9 220 57.1 165 42.9 1
Com parceiro 371 49.1 189 50.9 182 49.1 1,28 0,96-1,71 0,0874
Escolaridade
Até fundamental incompleto 349 46.2 154 44.1 195 55.9 2,29 1,68-3,12 <0,0001
Fundamental completo ou médio incompleto 84 11.1 47 56 37 44.0 1,42 0,88-2,32 0,1552
Pelo menos médio completo 323 42.7 208 64.4 115 35.6 1
Renda
Até 3 SM 460 60.9 244 53.0 216 47.0 1,12 0,83-1,50 0,4678
≥ 3 SM 296 39.1 165 55.7 131 44.3 1

OR: odds ratio; IC95%: intervalo de confiança de 95%

Tabela 2 Resultados das análises individuais da associação das variáveis do bloco mesial com o tipo de risco (urgente e não urgente) - Piracicaba-SP, 2016. 

Variáveis N % Urgente OR IC95% p-valor
Sim Não
n % n %
Tempo de deslocamento até a UPA
< 15 minutos 425 56.2 211 49.6 214 50.4 1,82 1,15-2,88 0,0109
De 15 a 30 min 236 31.2 137 58.0 99 42.0 1,30 0,79-2,12 0,3017
> 30 minutos 95 12.6 61 64.2 34 36.1 1
Plano de saúde
Não 666 88.1 352 52.9 314 47.1 1,54 0,98-2,43 0,0625
Sim 90 11.9 57 63.3 33 36.7 1
Qualidade de atendimento da UBS/PSF
Muito bom/bom 332 43.9 171 51.5 161 48.5 1,07 0,69-1,65 0,7572
Regular/ruim 315 41.7 180 57.1 135 42.9 0,85 0,55-1,32 0,4760
Nunca foi 109 14.4 58 53.2 51 46.8 1
Consultou a USF nos últimos seis meses
Até três vezes 576 76.2 328 56.9 248 43.1 1
Mais de três vezes 180 23.8 81 45 99 55.0 1,62 1,15-2,26 0,0052
Dificuldade de acesso à atenção básica
Não 301 39.8 146 48.5 155 51.5 1,50 0,99-2,28 0,0140
Sim 327 43.3 188 57.5 139 42.5 1,05 0,69-1,58 0,3058
Não utilizo 138 16.9 75 58.6 53 41.4 1

OR: odds ratio; IC95%: intervalo de confiança de 95%

Tabela 3 Resultados das análises individuais da associação das variáveis do bloco proximal com o risco (urgente e não urgente) - Piracicaba-SP, 2016. 

Variáveis N % Urgente OR* IC95% p-valor
Sim Não
n % n %
Autoavaliação de saúde
Muito bom/bom 446 59.0 265 59.4 181 40.6 1
Regular 223 29.5 115 51.6 108 48.4 1,38 0,99-1,90 0,0537
Ruim 87 11.5 29 33.3 58 66.7 2,93 1,80-4,75 <0,0001
Doença crônica
Sim 377 49.9 170 45.1 207 54,9 2,08 1,55-2,78 <0,0001
Não 379 50.1 239 63.1 140 36,9 1
Percepção da emergência
Sim 540 71.4 217 40.2 323 59.8 11,91 7,53-18,82 <0,0001
Não 216 28.6 192 88.9 24 11.1 1
Tempo dos sintomas
1 a 3 dias 491 65.2 258 52.5 233 47.5 1,87 0,98-3,54 0,0566
4 a 30 dias 216 28.7 117 54.2 99 45.8 1,75 0,89-3,42 0,1032
> 30 dias 46 6.1 31 67.4 15 32.6 1

*OR: odds ratio bruto; IC95%: intervalo de confiança de 95%

Para as variáveis do bloco mesial (Tabela 2), 661 (87,4%) dos indivíduos atendidos despenderam menos de 30 minutos de deslocamento até a UPA, 666 (88,1%) não possuíam plano de saúde, 332 (43,9%) avaliaram positivamente o atendimento recebido na atenção básica e 576 (76,2%) consultaram a USF até três vezes nos últimos seis meses. Entretanto, 327 (43,3%) dos entrevistados relataram dificuldade no acesso à atenção básica.

Na Tabela 3 (bloco proximal), verificou-se que 446 (59,0%) dos indivíduos autoavaliaram seu estado de saúde como satisfatório. Em relação à presença de doença crônica, 379 (50,1%) dos entrevistados relataram não possuírem. A percepção de necessidade de atendimento de emergência foi positiva para 540 (71,4%) dos entrevistados. O tempo dos sintomas que motivaram a procura pela UPA foi relatado como inferior a três dias para 491 (65,2%) dos entrevistados.

Na Tabela 4 são apresentados os resultados para a regressão logística múltipla. Quando o resultado de cada variável foi ajustado para as demais variáveis independentes para a classificação de risco, observou-se que os indivíduos classificados como não urgentes possuíam as seguintes características significativas: apresentavam autopercepção de que sua condição era um caso de emergência e idade igual a ou acima de 60 anos. Indivíduos com autopercepção de emergência do seu estado de saúde possuíam 9,79 mais chances de serem classificados como não urgentes (IC95% de 6,14; 15,63). Indivíduos com idade de 60 anos ou mais apresentavam 2,66 (IC95% de 1,78; 3,97) vezes mais chance de serem classificados como não urgentes.

Tabela 4 Resultados da análise de regressão logística múltipla da associação das variáveis com o risco não urgente - Piracicaba-SP, 2016. 

Variáveis Não urgente OR* IC95% p-valor
n %
Bloco proximal
de percepção de emergência
Sim 323 59.8 9,79 6,14-15,63 <0,0001
Não 24 11.1 1
Bloco distal
Idade
18 a 44 anos 122 32.6 1
45 a 59 anos 95 50.8 1,43 0,97-2,12 0,4877
60 anos ou mais 129 66.7 2,66 1,78-3,97 <0,0001

*OR: odds ratio ajustado; IC95%: intervalo de confiança de 95%. Nenhuma variável do bloco mesial permaneceu no modelo

DISCUSSÃO

A análise do modelo multivariado e hierarquizado contendo variáveis, contextuais, do serviço e individuais para compreender o uso inapropriado dos serviços de UPAs evidenciou que as variáveis do bloco proximal (percepção de emergência) e do bloco distal (idade) permaneceram estatisticamente associadas ao desfecho no modelo final de regressão logística. Ao nosso conhecimento, este é um dos poucos estudos que investigaram associações com esse desfecho em usuários desses serviços por meio de um modelo hierárquico e baseado em referencial teórico amplamente consolidado na literatura científica, trazendo, portanto, importantes evidências para o planejamento em saúde.

Machado et al.14 investigaram associações entre variáveis sociodemográficas, clínicas e de utilização e a inadequação dos atendimentos realizados em uma UPA de Ouro Preto (MG), em 2012, e verificaram que a utilização inadequada da UPA teve mais chance de ocorrer em dia útil e quando havia procura direta (sem encaminhamento) pelos pacientes.

Corroborando nossos achados, estudos indicam que a autopercepção do indivíduo de que seu estado de saúde necessita de cuidados pelos serviços de saúde apresenta elevada associação de sua procura pelos serviços15-17. Para decidir sobre onde obter cuidados de saúde, os pacientes se baseiam em aspectos subjetivos das suas próprias experiências, as quais refletem situações pontuais. Desta forma, a percepção das necessidades dos pacientes é fundamental para entender a utilização dos serviços de emergência.

Ademais, observou-se diferença estatisticamente significativa para o uso de serviços de emergência entre os grupos etários pesquisados, fato também observado em diversos estudos que investigaram associações entre a idade e o uso inapropriado dos serviços de urgência18-24. Atualmente, o envelhecimento tem se tornado uma preocupação, em razão das limitações fisiológicas da senescência, da alta prevalência das doenças crônicas não transmissíveis e de inúmeras outras enfermidades que acarretam declínios físicos ou psíquicos, tornando o idoso cada vez mais dependente de cuidados, inclusive os de emergência22-24.

Verificou-se que mais da metade dos usuários que procuraram os serviços das UPAs foi classificada como apresentando necessidades pouco e/ou não urgentes, portanto estava contribuindo para a superlotação desses serviços. Esse fato também foi observado por Machado et al.14 em um estudo realizado em uma UPA de Ouro Preto (MG), no qual 58,9% dos atendimentos investigados foram considerados “inadequados”, segundo o Protocolo de Adequação de Urgências Hospitalar (PAUH). O sistema de saúde brasileiro é organizado pelas redes de atenção, com pontos de assistência de diferentes complexidades, seja primário, secundário e terciário. Por determinação, o atendimento às urgências precisa estar amparado em todos esses níveis de complexidade, cada uma dentro das suas limitações de resolutividade, inclusive na atenção primária à saúde1,4. Entretanto, segundo uma análise acerca da implantação e do desempenho das UPAs em todo o país, verificou-se que 36,7% dos usuários atendidos foram classificados como de perfil de baixo risco (azul). Os diagnósticos mais frequentes nesses casos constituíram-se principalmente de condições sensíveis à atenção primária25.

Com base nos achados do presente estudo, sugere-se a implementação de ações como a melhoria do vínculo das UPAs com os serviços de atenção básica via um sistema de referência e contrarreferência que reforce a integralidade do cuidado à saúde. Destaca-se, ainda, a necessidade de investimentos relacionados ao acesso, ao uso e à compreensão das informações e serviços de saúde, possibilitando um fluxo seguro e eficaz da população dentro da rede assistencial à saúde, ou seja, seus níveis de letramento em saúde26. Também, o fomento da contrarreferência de forma responsável à atenção básica pelos serviços de urgência ao encaminharem os casos mais sensíveis, a fim de que seja garantida a continuidade do cuidado em saúde27.

Entre as limitações do estudo, destaca-se a coleta de dados ter sido realizada em apenas duas UPAs, fato que pode ter influenciado as características das demandas apresentadas pelos usuários desses serviços. Sugerem-se novos estudos que contemplem outras abordagens metodológicas para captar informações que possam ampliar os conhecimentos sobre os fatores moduladores de demandas não urgentes desse tipo de serviço.

Variáveis individuais como a autopercepção de caso de urgência e idade igual ou superior a 60 anos estiveram associadas ao uso não urgente dos serviços oferecidos pelas UPAs. Estudos futuros de cunho qualitativo poderão auxiliar a compreender os motivos do uso inadequado desses serviços por tais indivíduos.

REFERÊNCIAS

1 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual instrutivo da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2013.
2 Leite IC, Valente JG, Schramm JM, Daumas RP, Rodrigues RN, Santos MF, et al. Burden of disease in Brazil and its regions, 2008. Cad Saude Publica. 2015;31(7):1551-64. . PMid:26248109.
3 Oliveira SN, Ramos BJ, Piazza M, Prado ML, Reibnitz KS, Souza AC. Unidade de Pronto Atendimento - UPA 24h: percepção da enfermagem. Texto Contexto Enferm. 2015;24(1):238-44. .
4 O’Dwyer G, Konder MT, Reciputti LP, Lopes MGM, Agostinho DF, Alves GF. O processo de implantação das unidades de pronto atendimento no Brasil. Rev Saude Publica. 2017;51:1-12. . PMid:29236876.
5 Morley C, Unwin M, Peterson GM, Stankovich J, Kinsman L. Emergency department crowding: A systematic review of causes, consequences and solutions. PLoS One. 2018;13(8):1-42.
6 Tsai MH, Xirasagar S, Carroll S, Bryan CS, Gallagher PJ, Davis K, et al. Reducing high-users’ visits to the emergency department by a primary care intervention for the uninsured: A retrospective study. Inquiry. 2018;55:1-12. . PMid:29591539.
7 Cremonesi P, di Bella E, Montefiori M, Persico L. The Robustness and effectiveness of the triage system at times of overcrowding and the extra costs due to inappropriate use of emergency departments. Appl Health Econ Health Policy. 2015;13(5):507-14. . PMid:25854901.
8 Carret MLV, Fassa AG, Paniz VMV, Soares PC. Características da demanda do serviço de saúde de emergência no Sul do Brasil. Cien Saude Colet. 2011;16(1 Suppl 1):1069-79. . PMid:21503455.
9 Costa JSM. Serviços de urgência e emergência hospitalar: atendimento não urgente nas redes de atenção às urgências, num contexto de transformações demográficas [tese]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2011.
10 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades [Internet]. 2018 [citado em 2019 jan 25]. Disponível em:
11 Mackway-Jones K, Marsden J, Windle J. Sistema Manchester de classificação de risco. Belo Horizonte: Grupo Brasileiro de Classificação de Risco; 2010.
12 Gomide MFS, Pinto IC, Gomide DMP, Zacharias FCM. Perfil de usuários em um serviço de pronto atendimento. Medicina. 2012;45(1):31-8.
13 Andersen RM. Revisiting the behavioral model and access to medical care: does it matter? J Health Soc Behav. 1995;36(1):1-10. . PMid:7738325.
14 Machado GVC, Oliveira FLP, Barbosa HAL, Giatti L, Bonolo PF. Fatores associados à utilização de um serviço de urgência/emergência, Ouro Preto, 2012. Cad Saude Colet. 2015;23(4):416-24. .
15 Abreu KP, Pelegrini AHW, Marques GQ, Lima MADS. Percepções de urgência para usuários e motivos de utilização do serviço de atendimento pré-hospitalar móvel. Rev Gaúcha Enferm. 2012;33(2):146-52. . PMid:23155593.
16 Coster JE, Turner JK, Bradbury D, Cantrell A. Why do people choose emergency and urgent care services? A rapid review utilizing a systematic literature search and narrative synthesis. Acad Emerg Med. 2017;24(9):1137-49. . PMid:28493626.
17 Burns TR. Contributing factors of frequent use of the emergency department: A synthesis. Int Emerg Nurs. 2017;35:51-5. . PMid:28676296.
18 Andrews H, Kass L. Non-urgent use of emergency departments: populations most likely to overestimate illness severity. Intern Emerg Med. 2018;13(6):893-900. . PMid:29380133.
19 Veras RP, Oliveira M. Envelhecer no Brasil: a construção de um modelo de cuidado. Cien Saude Colet. 2018;23(6):1929-36. . PMid:29972500.
20 Gomide MFS, Pinto IC, Gomide DMP, Zacharias FCM. Perfil de usuários em um serviço de pronto atendimento. Medicina. 2012;45(1):31-8.
21 Acosta AM, Lima MADS. Frequent users of emergency services: associated factors and reasons for seeking care. Rev Latino-Am Enfermagem. 2015;23(2):337-44. . PMid:26039306.
22 Chiavegatto Filho ADP, Wang YP, Malik AM, Takaoka J, Viana MC, Andrade LH. Determinantes do uso de serviços de saúde: análise multinível da Região Metropolitana de São Paulo. Rev Saude Publica. 2015;49:1-11. . PMid:25741652.
23 Gruneir A, Silver MJ, Rochon PA. Emergency department use by older adults: A literature review on trends, appropriateness, and consequences of unmet health care needs. Med Care Res Rev. 2011;68(2):131-55. . PMid:20829235.
24 Faulkner D, Law J. The ‘unnecessary’ use of emergency departments by older people: findings from hospital data, hospital staff and older people. Aust Health Rev. 2015;39(5):544-51. . PMid:25913422.
25 Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Rede de Atenção às Urgências e Emergências: Avaliação da implantação e do desempenho das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). Brasília: CONASS; 2015.
26 Mialhe FL, Moraes KL, Brasil VV, Sampaio HAC. Letramento em saúde e promoção da saúde. In: Pelicioni MCF, Mialhe FL. Educação e Promoção da Saúde: Teoria e prática. São Paulo: Santos; 2019.
27 Stein AT, Harzheim E, Costa M, Busnello E, Rodrigues LC. The relevance of continuity of care: a solution for the chaos in the emergency services. Fam Pract. 2002;19(2):207-10. . PMid:11906990.