versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.1 Rio de Janeiro jan. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018231.26262015
A atenção secundária compreende unidades de saúde que ofertam serviços especializados de referência, tanto para os municípios com os quais mantêm pactuação como para o próprio município à partir da Atenção Primária à Saúde (APS)1-3. A Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), lançada em 2004, entre outras iniciativas, promoveu o estímulo na oferta de procedimentos especializados com a implantação dos Centros de Especialidades Odontológicas (CEO)1, por meio de parcerias entre estados, municípios e governo federal1. A atenção secundária odontológica no Brasil é uma discussão recente na literatura científica e constitui um grande desafio para a gestão do sistema de atenção em saúde bucal4-6.
A partir da Portaria Ministerial n° 718/SAS, de 2010, foi facultado aos CEO a inclusão de atendimentos especializados em aparelho ortodôntico/ortopédico2. O Ceará, seguindo a sua política de regionalização da atenção secundaria, implantou os Centros de Especialidades Odontológicas Regionais (CEO-R), desde 2009, com o objetivo de ampliar a oferta e oferecer mais especialidades ao interior do estado7. Essa organização adotou o modelo de consórcio público de saúde, como forma de gestão, congregando como entes consorciados o estado e os municípios de cada região de saúde8,9. Deu-se início, assim, à regionalização desse atendimento especializado e os tratamentos ortodôntico/ortopédicos passaram a ser ofertados no interior do estado10,11.
Estudos que analisam faltas a tratamentos especializados de referência, em saúde bucal, têm mostrado que as principais causas para a baixa taxa de aproveitamento de consultas, ou seja, a falta ao tratamento está relacionada à distância entre o município de origem e o alto custo de transporte4. Outros estudos relatam que os prováveis motivos para faltas dos usuários em consultas especializadas são: não ter conseguido identificar o local da consulta, não possuir recursos financeiros suficientes para realizar o deslocamento e o tempo deste4,12-14.
Não são claras as razões que levam os usuários a faltarem às consultas especializadas de ortodontia, mas esse fato pressupõe a necessidade de uma supervisão continuada e uma estrutura operacional adequada associada à resolutividade e integralidade do cuidado, além de acarretarem custos desnecessários ao sistema e dificultar o acesso de novos usuários ao tratamento especializado, consequentemente, gerando fila4,14,15.
Dessa forma, o objetivo deste estudo foi identificar os fatores associados ao não comparecimento dos usuários ao tratamento ortodôntico, em três Centros de Especialidades Odontológicas Regionais (CEO-R) localizados no estado do Ceará.
Trata-se de um estudo epidemiológico, observacional, transversal, com fonte de dados extraídos de prontuários de pacientes que concluíram tratamentos ortodônticos em três CEO-R do estado do Ceará: Baturité, Russas e Ubajara. Este estudo foi submetido ao comitê de ética em pesquisa e aprovado.
No início de 2014, o estado do Ceará apresentava 18 CEOs-R, sendo que, para a seleção dos avaliados no estudo, foi adotado como critérios de inclusão o tempo mínimo de três anos de implantação, além de apresentarem o mesmo tipo de gestão, infraestrutura física e tipo de tratamento (ortodôntico). Foi realizado um estudo piloto anterior no CEO-R Russas para corrigir possíveis falhas metodológicas. A coleta de dados nos prontuários foi padronizada por um questionário eletrônico, ordenado de forma sequencial de cada unidade pesquisada e alimentado conforme a leitura dos mesmos, de modo a permitir uma revisão dos dados se necessário.
A referência para o tratamento ortodôntico é estabelecida através de uma Programação Pactuada Consorciada (PPC) entre os entes consorciados (constituídos pelo estado e os municípios que compõem a regional) e a unidade de saúde CEO-R da seguinte forma: cada município tem direito a um número específico de vagas para a especialidade que levam em consideração sua população e os recursos humanos existentes para a mesma.
Todos os usuários são marcados pelas centrais de regulação municipais, através de referências externas emitidas pela atenção primária, para primeira consulta. As consultas de retorno são marcadas no próprio CEO ou pela central de regulação municipal. O sistema utilizado para a marcação foi o Sistema de Regulação (SISREG), que é o sistema de informação on-line, disponibilizado pelo DATASUS, para o gerenciamento e a operação das Centrais de Regulação.
A análise dos fatores associados ao não comparecimento dos usuários ao tratamento ortodôntico foi realizada da seguinte forma: primeiro, foi calculada a taxa de faltas para cada município através do cálculo: número total de faltas de cada município dividido pelo número total de consultas de cada município e, em seguida, multiplicado por cem. A fim de descrever o padrão geográfico da ocorrência, foram construídos mapas temáticos baseados nas distribuições16,17. Os mapas foram construídos por municípios e por CEO-R em programa computacional específico com padronização da legenda em cinco estratos16,17. Também foram traçados dois raios, um de 25 quilômetros e outro de 50 quilómetros, a partir da localização geográfica do endereço da sede dos CEO-R18. Para a construção dos mapas foi utilizada uma base cartográfica eletrónica disponibilizada pelo IBGE e programa computacional específico19,20.
Para avaliar as associações entre a variável desfecho (falta ao tratamento) e as variáveis independentes (sexo, idade, quebra de aparelho, mudança de profissional, renda e local de residência do usuário) utilizou-se a análise de regressão logística múltipla com p ≤ 0,05. As análises foram realizadas no programa estatístico SAS (SAS Institute Inc., Cary, NC, USA, Release 9.2, 2008).
No período estudado, foram examinados 237 prontuários de tratamentos ortodônticos concluídos em 20 municípios. Nesse período, ocorreram 8. 283 consultas e um total de 2.665 (32,17%) de faltas. A Tabela 1 mostra o número de consultas, faltas por município, a porcentagem relativa e a taxa de faltas de cada município em relação ao número de consultas. Os municípios de Russas (sede de um CEO-R) e de Morada Nova foram os que realizaram o maior número de consultas e obtiveram baixas taxas de faltas em relação aos demais. O município de Carnaubal não encaminhou pacientes para o tratamento ortodôntico.
Tabela 1 Frequências e taxa de faltas dos municípios pertencentes ao estudo, Ceará, 2015.
Município | Faltas | ||||
---|---|---|---|---|---|
Consultas | n | % | Taxa | Distância** | |
Araçoiaba | 644 | 249 | 9.34 | 38.66 | 16 |
Aratuba | 237 | 86 | 3.23 | 36.30 | 37 |
Baturité* | 470 | 180 | 6.75 | 38.30 | – |
Capistrano | 286 | 93 | 3.49 | 32.51 | 23 |
Carnaubal | – | – | – | – | 44 |
Croatá | 100 | 46 | 1.73 | 46.00 | 85 |
Guaraciaba Do Norte | 129 | 46 | 1.73 | 35.65 | 47 |
Guaramiranga | 37 | 25 | 0.94 | 67.56 | 14 |
Ibiapina | 171 | 57 | 2.14 | 33.30 | 8 |
Itapiúna | 446 | 155 | 5.82 | 34.75 | 34 |
Jaguaretama | 205 | 85 | 3.19 | 41.50 | 132 |
Jaguaruana | 586 | 114 | 4.28 | 19.45 | 28 |
Morada Nova | 1.260 | 330 | 12.38 | 26.20 | 54 |
Mulungu | 91 | 24 | 0.9 | 26.37 | 20 |
Pacoti | 127 | 66 | 2.48 | 52.00 | 20 |
Palhano | 193 | 51 | 1.91 | 26.42 | 33 |
Russas* | 1.978 | 472 | 17.71 | 23.86 | – |
São Benedito | 232 | 110 | 4.13 | 47.40 | 23 |
Tianguá | 374 | 154 | 5.78 | 41.17 | 16 |
Ubajara* | 464 | 228 | 8.56 | 49.13 | – |
Viçosa do Ceará | 253 | 94 | 3.53 | 37.15 | 46 |
Total | 8.283 | 2.665 | 100 | 32.17 | – |
*Municípios sede dos CEO-R.
**Distância aproximada do município à sede do CEO-R em Quilómetros,
As prevalências foram elevadas tanto para os municípios sede quanto para os não sede. A distribuição da taxa de faltas entre os CEO-R e entre os municípios foram heterogêneas e também apresentaram valores significativos, tanto para municípios sede, quanto para os de fora. Em relação aos municípios sede, o de Ubajara foi o que apresentou a maior taxa de faltas. A taxa de faltas ponderada pelo número de consultas permitiu identificar municípios com frequências menores de faltas e que obtiveram elevadas taxas se comparados a municípios com altas frequências de faltas. Ademais, os Municípios de Pacoti e Guaramiranga apresentaram as mais altas taxas de faltas e estão localizados a baixas distâncias do município sede do CEO-R (Baturité). Em contrapartida, o Município de Jaguaruana apresentou a menor taxa de falta entre os municípios e faz o encaminhamento para o CEO-R Russas (Tabela 1).
A Figura 1 mostra que os municípios sede de CEO-R de Baturité e Ubajara também apresentaram altas taxas de faltas. Os CEO-R de Ubajara e Russas possuem, em suas áreas de abrangência, municípios localizados a mais de 50 quilômetros da sede. O CEO-R de Russas possui a maior extensão territorial, enquanto que o CEO-R de Baturité possui a menor extensão territorial. O município de Jaguaretama possui a maior distância em relação à sede (Russas) a que pertence, com 132 quilômetros. Entretanto, os municípios de Mulungu e Pacoti, que estão localizados aproximadamente a vinte quilômetros do CEO-R sede (Baturité), apresentaram taxas de faltas de 26.37 e 52, respectivamente (Figura 1).
Figura 1 Distribuição espacial da taxa de faltas e raios de abrangência territorial a partir da sede do CEO-R, Ceará, 2015.
Pela regressão foi possível associar a mudança de profissional ao maior número de faltas. Ou seja, quando ocorre a mudança de profissional existe a chance (odds ratio) em torno de duas vezes maior de haver falta (Tabela 2).
Tabela 2 Associação entre o número de faltas dos usuários ao tratamento ortodôntico em CEO-R e fatores contextuais, Ceará, Brasil, 2015.
Variáveis | Coeficiente | Erro padrão | Z | p-valor | odds ratio | IC 95% | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Intercepto | -0.5121 | 0.4467 | - | - | - | - | ||
Sexo | ||||||||
Masculino | – | – | – | – | 1 | – | ||
Feminino | -0.3672 | 0.2860 | -1.2843 | 0.1990 | 0.6926 | 0.40-1.21 | ||
Idade | ||||||||
< 14 | 0.4202 | 0.3600 | 1.1671 | 0.2432 | 1.5222 | 0.75-3.08 | ||
> 14 | – | – | – | – | 1 | – | ||
Mudança Profissional | ||||||||
Não | – | – | – | – | 1 | – | ||
Sim | 0.6841 | 0.3006 | 2.2757 | 0.0229* | 1.9820 | 1.10-3.57 | ||
Quebra Aparelho | ||||||||
Não | – | – | – | – | 1 | – | ||
Sim | -0.4539 | 0.3440 | -1.3194 | 0.1870 | 0.6351 | 0.32-1.25 | ||
Renda | ||||||||
< 1 Salário Mínimo | -0.1110 | 0.2911 | -0.3813 | 0.7029 | 0.8949 | 0.51-1.58 | ||
> 1 Salário Mínimo | – | – | – | – | 1 | – | ||
Cidade | ||||||||
Sede | – | – | – | – | 1 | – | ||
Não Sede | 0.1024 | 0.2855 | 0.3585 | 0.7200 | 1.1078 | 0.63-1.94 |
*Significância estatística inferior a 0,05.
A mudança de profissional contribui de forma significativa para um prolongamento do tempo de tratamento ortodôntico com aparelho fixo21. Pacientes, que por algum motivo são tratados por mais de um profissional, estão comprometidos com respeito à duração do tratamento21. É provável que a mudança de profissional tenha desmotivado a continuidade do tratamento e aumentado as faltas. Em outra direção, estudo demonstrou que a falta de motivação está associada, significativamente, com a descontinuação do tratamento ortodôntico e que o papel dos pais é fundamental para a motivação, no percurso do tratamento ortodôntico, em crianças e adolescentes22.
A mudança de profissional foi um fator estatisticamente significativo. Nesse sentido é uma variável importante a ser considerada, pois quando isso ocorre é necessário um reestudo do caso porque muitas vezes os profissionais se utilizam de mecânicas e aparelhos diferentes para se chegar a um mesmo fim21. A construção do vínculo entre paciente e profissional é muito importante e sua manutenção deve ser preservada para a assistência odontológica21,22. A troca de profissional pode interromper o vínculo paciente/profissional, podendo ocasionar problemas no âmbito da responsabilização civil, no preenchimento dos prontuários dos pacientes, reinício do tratamento e abandono de tratamento21-26. Para Rodrigues et al.25 a escuta e a comunicação com o paciente e/ou responsável devem perpassar todas as fases de produção da saúde e são fatores de sucesso na prática odontológica.
A ausência de prontuários corretamente preenchidos faz com que seja difícil a condução do mesmo por outro profissional23. Esse achado concorda com o encontrado por Vasquez et al.5 que observaram que a precariedade dos prontuários dificulta o correto planejamento dos serviços. A falta de padronização em prontuários pode dificultar não somente a análise de dados epidemiológicos para o melhor funcionamento do sistema, como também, podem causar transtornos se forem requisitados em auditorias ou processos civis e criminais23,27. Em nenhum prontuário examinado constavam as informações sobre escolaridade materna ou familiar. A ausência dessa informação pode ser apontada como limitação para futuros estudos epidemiológicos que utilizem como fonte de dados prontuários de pacientes atendidos pelos CEO-R do Ceará.
A análise da questão “falta” a um tratamento público especializado é complexa quando comparada com estudos internacionais, em razão dos diferentes desenhos de estudo, metodologias adotadas, tipos de análise estatística e o ambiente que a pesquisa foi desenvolvida (público/privados)28-30. Estudo realizado nos Emirados Àrabes Unidos apontou que os principais fatores relacinados com a falta a tratamentos odontológicos foram idade do paciente, renda e educação15. Nesta direção os autores afirmam que o maior prejudicado com a falta acaba sendo o próprio paciente com o aumento do tempo de tratamento, redução na eficiência e diminuição da visualização do benefício em tratamento15. A relação custo-eficácia é um conceito importante em cuidados de saúde modernos e prolongado tempo de tratamento pode ser prejudicial para a “rentabilidade” de uma prática ou para o sistema de saúde de um país22. Estudo de Beckwith et al.29 mostrou que a falta possui 17,6 por cento da variação na duração do tratamento ortodôntico e que cada falta foi associada a um pouco mais de 1 mês de tempo adicional de tratamento. Estudo no Brasil30 correlacionou significativamente o tempo de tratamento ortodôntico ao número de faltas e representou 4,14% sobre o tempo total de tratamento em adultos.
A descentralização e regionalização são pressupostos que regem a reorientação do modelo de atenção em saúde bucal1. Porém, grandes lacunas ainda são observáveis, principalmente, em aglomerados urbanos em razão dos problemas de integração dos equipamentos e serviços31. Em Florianópolis, a distribuição dos CEO obedeceu a critérios geodemográficos, mas esbarrou em questões como insuficiência de vagas oferecidas, decisões com base política e não técnica, falta de protocolos de trabalho, logística/transporte, práticas e/ou condutas distintas entre os CEO31. Neste estudo foi identificada variação na área de abrangência dos CEO-R, sendo que, dois CEO-R possuem municípios com raio de abrangência maior que cinquenta quilômetros. Este fato pode explicar as prevalências e taxas de faltas a tratamentos ortodônticos. Onde existe uma tendência de implantação de serviços em municípios mais populosos e, consequentemente, com maior facilidade para a referência dos usuários aos serviços especializados. Uma alternativa pode ser o desmembramento dos CEO-R com grandes extensões territoriais em microrregiões. Por se tratar de um estudo epidemiológico transversal, cabe ressaltar que a relação de causalidade entre a variável dependente e as independentes, bem como a utilização de dados secundários são pontos de limitação. Ademais, o não comparecimento à consulta especializada oferecida pelos CEO-R pode se constituir em evento multifatorial.
O maior número de faltas foi associado à mudança de profissional. Dada a complexidade para o setor público, seria importante a incorporação da escuta qualificada de gestores, trabalhadores e usuários para o planejamento e a implementação de ações de enfrentamento ao problema, a fim de melhorar a resolutividade do tratamento público ortodôntico.