versão impressa ISSN 1413-8123
Ciênc. saúde coletiva vol.19 no.2 Rio de Janeiro fev. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014192.20752012
The scope of this study was to estimate the prevalence of tooth loss and associated factors among Brazilian adults aged 20 to 59 years in rural areas in the state Pernambuco, Brazil. A cross-sectional study was conducted on a random sample of 568 participants. The number of lost teeth (d" 12 and > 12) was the outcome investigated. The independent variables were as follows: sociodemographic characteristics, subjective oral health conditions, impact of oral health on quality of life using the short version of the Oral Health Impact Profile (OHIP-14), and the use of dental services. Crude and adjusted prevalence ratios were estimated using a Poisson regression model. The prevalence of subjects with at least one tooth lost was 91.4%. Tooth loss was strongly associated with age group, self-perceived oral health and oral health impact on quality of life. The high prevalence of tooth loss among Brazilian adults in rural areas shows a need for a reorientation of public dental services aimed at this population group.
Key words: Oral health; Tooth loss; Adult; Rural population; Quality of life; Cross-sectional studies
A perda dos elementos dentários interfere diretamente na vida diária dos indivíduos, gerando uma desestabilização do sistema estomatognático em termos de redução da capacidade mastigatória e fonação, além de dificultar e limitar o consumo de diversos alimentos1. No Brasil, a alta proporção de indivíduos com perda dentária, bem como a possibilidade de controle desse agravo e seu impacto na vida diária das pessoas afetadas, ainda representa um desafio para a saúde pública2.
Em se tratando das condições de saúde bucal na população adulta rural brasileira, evidencia-se a realização de poucos estudos2 - 4 com o objetivo de traçar o perfil epidemiológico dessa população. Sabe-se, no entanto, que o seu acesso aos serviços públicos de forma geral, hospitais e unidades de saúde, pode ser difícil em razão da distância das propriedades e da precariedade dos serviços de transporte5. Além disso, as áreas rurais brasileiras muitas vezes apresentam piores indicadores de renda, saneamento básico e níveis de escolaridade que as respectivas áreas urbanas, tornando-as importantes polos de concentração para os agravos à saúde bucal6.
Embora a perda dentária não seja o indicador mais utilizado na pesquisa odontológica, alguns autores advogam a utilização desta "anomalia" como um importante desfecho clínico, indicador de saúde bucal7. No entanto, a simples avaliação das condições de saúde bucal por meio de critérios clínicos normativos pode não ser suficiente para elucidar a percepção do indivíduo acerca dessa sua condição, bem como da interferência desta na sua vida diária8. Nesse sentido, diversos indicadores sociodentais foram desenvolvidos para avaliar o impacto subjetivo das condições de saúde bucal na qualidade de vida de indivíduos e populações9 , 10. Entre esses indicadores está o Oral Health Impact Profile(OHIP-49)11, que é bastante difundido e empregado por sua facilidade de uso, principalmente na sua versão reduzida (OHIP-14)12. Esse instrumento foi traduzido, adaptado transculturalmente e validado para populações de adultos e idosos em diversas línguas, inclusive para o português, tanto em populações urbanas13 como em rurais14.
Em populações social e economicamente desfavorecidas, a prevalência de doenças passíveis de prevenção geralmente se apresenta mais elevada quando comparada a localidades mais desenvolvidas. Nesse sentido, populações rurais, vivendo isoladas dos centros urbanos e com limitado acesso aos serviços de saúde bucal, podem perceber os impactos da perda dentária na vida diária de forma diferenciada15.
O objetivo deste estudo foi estimar a prevalência de perdas dentárias em indivíduos adultos residentes em áreas de assentamento rural no Estado de Pernambuco, bem como investigar associações desse agravo a condições sociodemográficas, à autopercepção, ao impacto na qualidade de vida e à utilização de serviços odontológicos.
Trata-se de um estudo transversal, constituído por uma população de referência de 4.235 indivíduos na faixa etária de 20 a 59 anos, residentes em 48 áreas de assentamento rural, realizado entre outubro de 2010 e janeiro de 2011. As 48 áreas envolvidas no estudo compõem o Assentamento Rural Governador Miguel Arraes, que abrange os municípios de Água Preta, Catende, Jaqueira, Palmares e Xexéu, pertencentes à III GERES (Gerência Regional de Saúde) - Palmares (PE), localizados na mesorregião da zona da mata do Estado de Pernambuco, com uma população geral de aproximadamente 24.000 habitantes.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Pernambuco - CEP/UPE, com registro no Sisnep (Sistema Nacional de Informação sobre Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos). O estudo foi conduzido de acordo com os princípios da Declaração de Helsinki, tendo os participantes assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A amostra, do tipo probabilística, foi calculada com base nos seguintes parâmetros: prevalência de perdas dentárias entre indivíduos adultos de 50,0%, poder de 80,0% para detectar uma diferença mínima de 20,0% entre grupos, erro-padrão de 5,0% e intervalo de confiança de 95,0% (IC95%). A amostra final, acrescida de um fator de correção (efeito de agregação) de 1,2 e de 20,0% de perdas, correspondeu a 691 indivíduos.
Adotou-se a amostragem por conglomerado em duplo estágio. Primeiramente, as famílias foram sorteadas por meio de listas fornecidas pelo sistema de informações de projetos de reforma agrária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) - Regional Pernambuco. Posteriormente realizou-se o sorteio dos indivíduos que participaram do estudo.
Os critérios de inclusão foram: ter idade igual ou superior a 20 anos; ser morador das áreas do Assentamento Rural Miguel Arraes; e estar presente na residência nos dias pré-agendados para a realização do estudo. Foram excluídos da amostra os indivíduos que apresentavam algum impedimento físico e/ou mental para responder às perguntas da entrevista e/ou participar do exame físico.
O procedimento de calibração interexaminador foi realizado através do exame de duas sequências de 12 pacientes cada, os quais apresentavam as mais variadas condições clínicas, a fim de contemplar todas as condições dos critérios de diagnóstico preconizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS)16. A concordância verificada pelo teste kappa (k) indicou k = 0,82 (interexaminador). Durante a coleta de dados propriamente dita, cerca de 10,0% da amostra foi reexaminada (um a cada 10 examinados era sorteado), conferindo uma concordância intraexaminador k = 0,91.
Previamente à coleta de dados, realizou-se um estudo piloto envolvendo 30 indivíduos randomicamente selecionados, os quais não fizeram parte da pesquisa principal. Nesse estudo piloto foram testados o questionário padronizado e o formulário específico para a realização do exame físico.
As entrevistas e os exames físicos foram realizados nos domicílios dos participantes por uma equipe de campo (uma cirurgiã-dentista e uma anotadora), sob luz natural e por intermédio de inspeção visual e tátil, com o auxílio de espelhos bucais planos e sondas periodontais do tipo ball-point, ambos esterilizados. A equipe estava devidamente paramentada de acordo com as normas de controle de infecção (utilização de gorros, luvas e máscaras descartáveis).
As variáveis independentes exploradas no presente estudo foram agrupadas em três blocos. No bloco 1 foram incluídas as variáveis sociodemográficas (sexo, faixa etária, cor da pele, escolaridade e renda familiar). A variável sexo foi categorizada em masculino e feminino e a faixa etária em 20-29, 30-39, 40-49 e 50-59 anos. A cor da pele foi coletada segundo as categorias autorreferidas utilizadas nos recenseamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): brancos; negros; pardos; amarelos; indígenas. A escolaridade foi categorizada por anos de estudos em 0 anos (analfabeto), 1-8 anos e 9 ou mais anos. A renda familiar em salários mínimos, cujo valor de referência era de R$ 510,00, foi dicotomizada em inferior a um salário mínimo e igual ou superior a um salário mínimo. As variáveis do bloco 2 foram as seguintes: autopercepção da saúde bucal (ótima/boa; regular; ruim/péssima); autopercepção da dor de origem dental nos últimos seis meses (nenhuma dor; pouca dor; média/muita dor); autopercepção da necessidade de tratamento odontológico (sim; não); e o impacto da saúde bucal na qualidade de vida, mensurada por meio do OHIP-1412, na sua forma simplificada. O questionário constitui-se de 14 perguntas, duas para cada uma das sete dimensões do instrumento: limitação funcional, dor física, desconforto psicológico, incapacidade física, incapacidade psicológica, incapacidade social e desvantagem. Utilizou-se como padrão de resposta às perguntas uma escala de Likert com os seguintes padrões: nunca; raramente; às vezes; repetidamente; sempre. Dessa forma, para fins de análise, os padrões de respostas para os sete domínios do questionário supracitado foram dicotomizados em: com impacto (repetidamente/sempre) e sem impacto (nunca/raramente/às vezes). O bloco 3 foi constituído por variáveis relacionadas à utilização de serviços odontológicos: tipo de serviço utilizado (público; privado); tempo decorrido após a última visita ao dentista, em anos (< 1; 1-2; > 3); motivo da visita ao dentista (consulta de rotina; dor; problemas odontológicos); avaliação do atendimento odontológico (positiva; negativa); e se recebeu informações sobre como evitar problemas bucais (sim; não).
A variável dependente estudada foi a ocorrência de perdas dentárias, obtida a partir dos códigos 4 (perda dentária decorrente de cárie) e 5 (perda dentária decorrente de outras razões) do índice CPO-D (número de dentes cariados, perdidos e restaurados) para o diagnóstico da coroa de cada um dos 32 espaços dentários examinados por indivíduo, conforme os critérios de diagnóstico da OMS16. Posteriormente, para fins de análise, essa variável foi dicotomizada com base na média de dentes perdidos entre os indivíduos da amostra, resultando no ponto de corte de perda de até 12 dentes (< 12) e perda superior a 12 dentes (> 12).
No modelo teórico hierárquico de determinação das perdas dentárias adotado neste estudo, as variáveis sociodemográficas (bloco 1) foram situadas na posição mais distal em relação ao desfecho. Admite-se que essas variáveis influenciam as condições subjetivas relacionadas à saúde bucal (bloco 2), bem como o padrão e a utilização de serviços odontológicos (bloco 3). As variáveis dos blocos 2 e 3, por sua vez, guardam entre si uma relação direta e de reciprocidade, influenciando sobremaneira a variável dependente da presente pesquisa.
Para avaliar a existência de associação entre o desfecho e as demais variáveis independentes, foi realizada análise bivariada através do teste qui-quadrado, adotando-se um nível de significância de 5% (p < 0,05) e IC95%.
Posteriormente, para estimar as razões de prevalência bruta e ajustada e seus respectivos IC95% e valor de p (através do teste de Wald), foi realizada a regressão de Poisson com estimação de variância robusta para as variáveis que obtiveram p < 0,250 na análise bivariada. Dessa forma, a modelagem estatística seguiu o modelo teórico hierárquico de determinação das perdas dentárias supracitado. As variáveis do bloco 1 (sociodemográficas) foram ajustadas entre si. As variáveis relacionadas às condições subjetivas em saúde bucal (bloco 2) foram ajustadas entre si e pelas variáveis do bloco 1. Posteriormente, as variáveis relativas à utilização de serviços odontológicos (bloco 3) foram ajustadas entre si e pelas variáveis dos níveis superiores (blocos 1 e 2).
Os dados do presente estudo foram duplamente digitados e validados utilizando-se o software Epi Info 6.04 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos). Para a análise estatística utilizou-se o software SPSS 13.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos), bem como o software Stata/SE 10.0 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos).
A amostra total (n = 568), que correspondeu a uma taxa de seguimento de 82,2%, foi composta por 72,1% de mulheres (n = 410) e 27,8% (n = 158) de homens. A média de idade na amostra foi de 32,8 anos (mediana = 31,0 e desvio padrão = 10,7). Em relação à cor da pele, 90,5% (n = 514) dos indivíduos autodeclararam-se negros ou pardos. Não houve referência às categorias amarelo ou indígena.
Observou-se que 96,6% (n = 549) dos indivíduos entrevistados tinham renda familiar igual ou superior a um salário mínimo. Quanto ao grau de instrução, 73,2% (n = 416) dos indivíduos tinham entre 1 e 8 anos de estudo, e 18,5% (n = 105) informaram ser analfabetos.
O CPO-D médio entre os indivíduos foi de 15,9 (mediana = 15,0 e desvio padrão = 8,8), com uma média de dentes perdidos de 11,7 (mediana = 10,0 e desvio padrão = 9,3). Com base nessa média foi determinado o valor do ponto de corte para perdas dentárias em < 12 ou > 12 dentes perdidos. A prevalência de pelo menos uma perda dentária entre os indivíduos da amostra foi de 91,4%.
Na Tabela 1, pode-se verificar a associação entre a perda dentária e as variáveis sociodemográficas (bloco 1). Observa-se que a faixa etária foi a variável que apresentou maior razão de prevalência (RP), ou seja, as pessoas com idade entre 50 e 59 anos apresentavam aproximadamente 10 vezes maior prevalência de perda dentária superior a 12 dentes, quando comparadas àquelas que estavam na faixa etária de 20 a 29 anos. A escolaridade foi outra variável fortemente associada à perda dentária. As pessoas analfabetas apresentaram 4,6 vezes maior prevalência de perda dentária superior a 12 dentes, quando comparadas àquelas com escolaridade igual ou superior a nove anos de estudo.
Tabela 1 Associação entre perdas dentárias e variáveis sociodemográficas, autopercepção e impacto da saúde bucal e de utilização de serviços odontológicos entre adultos em áreas rurais. Pernambuco, Brasil, 2010/ 2011.
Número de dentes perdidos | ||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Variável | > 12 | ≤ 12 | Total | RP (IC95%) | Valor | |||||
n (%) | n (%) | n (%) | de p* | |||||||
Bloco 1 | ||||||||||
Sexo | ||||||||||
Masculino | 61 | (38,6) | 97 | (61,4) | 158 | (27,8) | 1,00 | 0,644 | ||
Feminino | 167 | (40,7) | 243 | (59,3) | 410 | (72,1) | 1,06 | (0,84-1,33) | ||
Faixa etária (anos) | ||||||||||
20-29 | 23 | (8,9) | 235 | (91,1) | 258 | (45,4) | 1,00 | < 0,001 | ||
30-39 | 80 | (50,6) | 78 | (49,4) | 158 | (27,8) | 5,68 | (3,73-8,64) | ||
40-49 | 76 | (78,4) | 21 | (21,6) | 97 (17,1) | 8,79 (5,87-13,16) | ||||
50-59 | 49 | (89,1) | 6 (10,9) | 55 | (9,7) | 9,99 (6,69-14,92) | ||||
Cor/Raça | ||||||||||
Branco | 14 | (25,9) | 40 | (74,1) | 54 | (9,5) | 1,00 | 0,025 | ||
Negro/pardo | 214 | (41,6) | 300 | (58,4) | 514 | (90,5) | 1,61 | (1,01-2,55) | ||
Escolaridade (anos) | ||||||||||
≥ 9 | 7 (14,9) | 40 | (85,1) | 47 | (8,3) | 1,00 | < 0,001 | |||
1-8 | 148 | (35,6) | 268 | (64,4) | 416 | (73,2) | 2,39 | (1,19-4,79) | ||
0 (analfabeto) | 73 | (69,5) | 32 | (30,5) | 105 | (18,5) | 4,67 | (2,33-9,35) | ||
Renda familiar** | ||||||||||
≥ 1 salário mínimo | 221 | (40,3) | 328 | (59,7) | 549 | (96,6) | 1,00 | 0,765 | ||
< 1 salário mínimo | 7 (36,8) | 12 | (63,2) | 19 | (3,4) | 0,92 | (0,50-1,66) | |||
Bloco 2 | ||||||||||
Autopercepção da saúde | ||||||||||
bucal | ||||||||||
Ótima/boa | 70 | (42,7) | 94 | (57,3) | 164 | (29,5) | 1,00 | < 0,001 | ||
Regular | 51 | (27,9) | 132 | (72,1) | 183 | (32,8) | 0,65 | (0,49-0,88) | ||
Ruim/péssima | 102 | (48,6) | 108 | (51,4) | 210 | (37,7) | 1,14 | (0,91-1,43) | ||
Autopercepção da dor de | ||||||||||
dente | ||||||||||
Nenhuma dor | 141 | (42,2) | 193 | (57,8) | 334 | (59,3) | 1,00 | 0,054 | ||
Pouca dor | 23 | (28,0) | 59 | (72,0) | 82 (14,6) | 0,66 | (0,46-0,96) | |||
Média/muita dor | 62 | (42,2) | 85 | (57,8) | 147 | (26,1) | 1,00 | (0,80-1,25) | ||
Autopercepção da | ||||||||||
necessidade de tratamento | ||||||||||
Sim | 178 | (37,6) | 295 | (62,4) | 473 (86,30) | 1,00 | < 0,001 | |||
Não | 45 | (60,0) | 30 | (40,0) | 75 (13,7) | 1,59 | (1,28-1,98) | |||
OHIP - 14 | ||||||||||
Sem impacto | 50 | (29,6) | 119 | (70,4) | 169 | (29,7) | 1,00 | < 0,001 | ||
Com impacto | 178 | (44,6) | 221 | (55,4) | 399 | (70,3) | 1,51 | (1,17-1,95) |
Número de dentes perdidos | ||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Variável | > 12 | ≤12 | Total | RP (IC95%) | Valor | |||||
n (%) | n (%) | n (%) | de p* | |||||||
Bloco 3 | ||||||||||
Tipo de serviço odontológico | ||||||||||
Privado | 38 | (38,8) | 60 (61,2) | 98 (19,6) | 1,00 | 0,959 | ||||
Público | 157 (39,1) | 245 | (60,9) | 402 | (80,4) | 1,01 | (0,76-1,33) | |||
Tempo decorrido após a | ||||||||||
última visita ao dentista | ||||||||||
(anos) | ||||||||||
< 1 | 77 | (30,9) | 172 | (69,1) | 249 | (45,0) | 1,00 | < 0,001 | ||
1-2 | 57 | (49,6) | 58 (50,4) | 115 | (20,8) | 1,60 | (1,23-2,08) | |||
≥ 3 | 92 | (48,7) | 97 (51,3) | 189 | (34,2) | 1,57 | (1,24-1,99) | |||
Motivo da visita ao dentista | ||||||||||
Consulta de rotina | 14 | (43,8) | 18 (56,2) | 32 | (5,8) | 1,00 | 0,359 | |||
Dor | 139 (43,0) | 184 | (57,0) | 323 | (58,4) | 0,98 | (0,65-1,49) | |||
Problemas odontológicos | 73 | (36,9) | 125 | (63,1) | 198 | (35,8) | 0,84 | (0,55-1,30) | ||
Avaliação do atendimento | ||||||||||
odontológico | ||||||||||
Positiva | 166 (40,7) | 242 | (59,3) | 408 | (83,6) | 1,00 | 0,027 | |||
Negativa | 22 | (27,5) | 58 (72,5) | 80 (16,4) | 0,68 | (0,46-0,98) | ||||
Recebeu informações sobre | ||||||||||
como evitar problemas | ||||||||||
bucais | 90 | (36,9) | 154 | (63,1) | 244 | (49,9) | 1,00 | 0,424 | ||
Sim | 99 | (40,4) | 146 | (59,6) | 245 | (50,1) | 1,10 | (0,88-1,37) | ||
Não |
IC95% = intervalo de confiança de 95%;
OHIP-14 = Oral Health Impact Profile, na sua versão reduzida contendo 14 perguntas
RP = razão de prevalência
* Teste qui-quadrado
** Valor de referência do salário mínimo foi de R$ 510,00.
As condições subjetivas relacionadas à saúde bucal mostraram-se associadas ao número de dentes perdidos, conforme Tabela 1. As pessoas que autoavaliaram sua saúde bucal como ruim ou péssima apresentaram 1,14 vezes maior prevalência de perda dentária em relação àquelas que consideraram sua saúde bucal como ótima ou boa. Observou-se, ainda, que o impacto da perda dentária foi 51% maior nas pessoas com perda superior a 12 dentes do que naquelas com perda de até 12 dentes.
No que diz respeito às variáveis relacionadas à utilização de serviços odontológicos, verificou-se que os adultos que relataram um tempo decorrido após a sua última consulta com o dentista de 1 a 2 anos ou igual ou superior a três anos apresentavam maior prevalência de perda dentária, como pode ser observado na Tabela 1.
A Tabela 2 apresenta os modelos de análise multivariada seguindo o modelo teórico de determinação. Após terem sido realizados os devidos ajustes, a perda dentária manteve-se fortemente associada à faixa etária, à autopercepção da saúde bucal e ao impacto na qualidade de vida relacionado à saúde bucal.
Tabela 2 Análise multivariada da associação entre perdas dentárias e variáveis sociodemográficas, autopercepção e impacto da saúde bucal e utilização de serviços odontológicos entre adultos em áreas rurais. Pernambuco, Brasil, 2010/2011.
Variável | Modelo 1 | Modelo 2 | Modelo 3 | ||
---|---|---|---|---|---|
RP (IC95%) | RP (IC95%) | RP (IC95%) | |||
Bloco 1 | |||||
Faixa etária (anos) | |||||
20-29 | 1,00 | 1,00 | |||
30-39 | 5,68 | (3,73-8,64) | 5,37 | (3,46-8,34) | |
40-49 | 8,79 (5,87-13,16) | 7,41 (4,77-11,53) | |||
50-59 | 9,99 (6,69-14,92) | 8,39 (5,32-13,23) | |||
Valor de p* | < 0,001 | < 0,001 | |||
Cor/Raça | |||||
Branco | 1,00 | 1,00 | |||
Negro/pardo | 1,61 | (1,01-2,55) | 0,98 | (0,66-1,48) | |
Valor de p* | 0,025 | 0,944 | |||
Escolaridade (anos) | |||||
≥ 9 | 1,00 | 1,00 | |||
1-8 | 2,39 | (1,19-4,79) | 1,40 | (0,74-2,65) | |
0 (analfabeto) | 4,67 | (2,33-9,35) | 1,41 | (0,76-2,63) | |
Valor de p* | < 0,001 | 0,552 | |||
Bloco 2 | |||||
Autopercepção da saúde bucal | |||||
Ótima/boa | 1,00 | 1,00 | |||
Regular | 0,65 | (0,49-0,88) | 0,83 | (0,63-1,10) | |
Ruim/péssima | 1,14 | (0,91-1,43) | 1,21 | (0,96-1,51) | |
Valor de p* | < 0,001 | < 0,01 | |||
Autopercepção da dor de dente | |||||
Nenhuma dor | 1,00 | 1,00 | |||
Pouca dor | 0,66 | (0,46-0,96) | 0,74 | (0,51-1,09) | |
Média/muita dor | 1,00 | (0,80-1,25) | 0,97 | (0,81-1,18) | |
Valor de p* | 0,054 | 0,324 | |||
Autopercepção da necessidade de | |||||
tratamento | |||||
Sim | 1,00 | 1,00 | |||
Não | 1,59 | (1,28-1,98) | 1,20 | (0,93-1,55) | |
Valor de p* | < 0,001 | 0,157 | |||
OHIP - 14 | |||||
Sem impacto | 1,00 | 1,00 | |||
Com impacto | 1,51 | (1,17-1,95) | 1.43 | (1,09-1,88) | |
Valor de p* | < 0,001 | < 0,001 | |||
Bloco 3 | |||||
Tempo decorrido após a última visita ao | |||||
dentista (anos) | |||||
< 1 | 1,00 | 1,00 | |||
1-2 | 1,60 | (1,23-2,08) | 1,02 (0,82-1,26) | ||
≥ 3 | 1,57 | (1,24-1,99) | 0,87 (0,69-1,10) | ||
Valor de p* | < 0,001 | 0,369 | |||
Avaliação do atendimento odontológico | |||||
Positiva | 1,00 | 1,00 | |||
Negativa | 0,68 | (0,46-0,98) | 1,43 (1,09-1,88) | ||
Valor de p* | 0,027 | 0,244 |
IC95% = intervalo de confiança de 95%
OHIP-14 = Oral Health Impact Profile, na sua versão reduzida contendo 14 perguntas
RP = razão de prevalência
Modelo 1: valores brutos
Modelo 2: variáveis do bloco 1 ajustadas entre si e variáveis do bloco 2 ajustadas entre si e pelo bloco 1
Modelo 3: variáveis do bloco 3 ajustadas entre si e pelas variáveis dos blocos 1 e 2
* Teste de heterogeneidade de Wald.
Estudar as populações de uma área rural brasileira evidenciou informações importantes no tocante ao conhecimento da sua saúde bucal, tanto pela falta de dados existentes como pelas características da localização estudada. São áreas remotas, de difícil acesso e que se encontram dispersas, sendo escasso o transporte, a água de abastecimento, o saneamento básico e os serviços públicos, apresentando, dessa forma, elevado grau de necessidade de saúde.
Além do exposto, é relevante o estudo pelo fato de se tratar de uma pesquisa realizada em domicílios com uma amostra aleatória de adultos residentes em áreas de assentamento rural do nordeste brasileiro, localizadas no estado de Pernambuco. Observou-se uma alta prevalência de perda de pelo menos um elemento dentário entre os indivíduos da amostra, estando ela fortemente associada às faixas etárias maiores, a uma autopercepção negativa e a um impacto negativo da saúde bucal na qualidade de vida dessas pessoas.
No Brasil o contingente populacional rural representa 15,6% (aproximadamente 30 milhões de pessoas) da população brasileira, segundo o censo do IBGE de 201017. No entanto, estabelecer comparações acerca das condições de saúde bucal na população rural brasileira torna-se difícil em virtude da grande ênfase dos estudos em populações urbanas. De uma maneira geral, na população rural investigada nesta pesquisa, as mulheres foram as que apresentaram maior número de perdas dentárias, seguidas dos indivíduos que tinham mais idade, daqueles que se autodeclararam pardos ou negros e dos que tinham renda familiar igual ou superior a um salário mínimo.
Sabe-se que as condições sociais dos indivíduos e a prática odontológica hegemônica, que considera a extração dos elementos dentários a solução para o alívio da dor em populações de baixo nível socioeconômico, exercem um importante papel na prevalência da perda dentária18. Em estudo proposto por Silva et al.15 e corroborado por Vargas e Paixão18, por meio de entrevistas abertas e semiestruturadas com pacientes adultos de um Centro de Saúde em Belo Horizonte, Minas Gerais, as causas das perdas dentárias mais comuns apontadas pelos pacientes foram a falta de informação e de condições financeiras para o tratamento. Em se tratando de populações rurais, além das causas sociais e econômicas, o acesso aos serviços de saúde geral e bucal2, em virtude da distância geográfica, constitui um condicionante a mais para a perpetuação dessa prática de solução imediata aos problemas de saúde bucal.
Apesar da alta prevalência observada de dentes perdidos entre os indivíduos desta amostra, a média foi de 11,7 dentes, sendo este o critério utilizado para o ponto de corte estabelecido na variável dependente. Ressalta-se que nesse cálculo não existem garantias de mastigação e/ou estéticas suficientes, evidenciando, assim, uma possível limitação deste estudo. Ademais, a média supracitada foi superior à encontrada por Saliba et al.5, que ao avaliarem uma amostra de 473 indivíduos residentes na zona rural do município de Gabriel Monteiro, São Paulo, encontram uma média de 8,2 perdas dentárias. Em estudo conduzido por Barbato et al.2, a partir de dados secundários oriundos do Estudo Epidemiológico Nacional (Projeto SB Brasil 2002-2003), foi encontrada uma mediana de 13 dentes perdidos entre adultos brasileiros residentes de áreas rurais, parâmetro superior ao encontrado nesta pesquisa, que foi de 10 dentes perdidos.
Nesse sentido, os autores acima referidos justificam que a perda dentária pode ser decorrente da infraestrutura dos serviços de saúde no meio rural, que seria inferior à oferecida nas zonas urbanas, normalmente dispondo de menor acesso às tecnologias e à qualificação profissional, com consequente restrição dos procedimentos odontológicos àqueles mutiladores. Em consonância com esse pensamento, Al Shammery et al.19, em estudo realizado na Arábia Saudita, observaram que a média de dentes perdidos era de 3,5 em zonas rurais e 4,2 em zonas urbanas, índices considerados baixos em decorrência da moderna infraestrutura dos serviços de saúde disponibilizados naquele país. Esses resultados, de uma maneira geral, evidenciam que uma melhor estruturação dos serviços de saúde tornaria possível dinamizar o atendimento às populações que vivem em zonas rurais.
Os resultados do presente estudo reafirmam o modelo de estudo proposto por Barbato et al.2, no qual o meio rural condiciona menores níveis de escolaridade, estando a baixa escolaridade associada a maiores perdas dentárias. No entanto, após os ajustes para os fatores de confusão, a baixa escolaridade não permaneceu significativamente associada à perda dentária.
As pesquisas de Matos et al.20, corroboradas por Skudutyte et al.21, mostraram que indivíduos com mais anos de estudo tinham mais chance de receber tratamento restaurador ou preventivo quando comparados aos de menor escolaridade, inferindo que o maior nível de instrução acarretaria mais informação, conhecimento e acesso aos serviços de saúde. Para esses autores a perda dentária estigmatiza a população pobre, reforçando as desigualdades entre as classes sociais.
Ainda neste estudo, os resultados evidenciados quanto à variável cor da pele mostraram que os indivíduos autodeclarados negros ou pardos apresentaram mais perdas dentárias quando comparados aos autodeclarados brancos. Porém, da mesma forma como o ocorrido com a variável escolaridade, ao serem realizados os ajustes, essa associação deixou de existir, contrariamente ao que ocorreu nos estudos de Guiotoku et al.22, Gilbert et al.23, Barbato et al.2 e Sabbah et al.24, nos quais a perda dentária esteve associada à cor da pele mesmo após o ajuste de possíveis variáveis de confusão.
O mesmo também foi demonstrado nos estudos de Chor e Lima25 e Sabbah et al.24, os quais indicam que as evidências de piores indicadores de saúde entre negros e pardos constituem-se disparidades étnico-raciais no Brasil e podem estar associadas à genética, a fatores culturais, a fatores relacionados à discriminação e a aspectos multidimensionais. Diante dos achados desses estudos, essas questões levam a crer que, apesar da presente pesquisa não ter encontrado essa associação, esta população encontra-se em desvantagem social comparada a outras. É possível que fatores relacionados ao perfil de desenvolvimento humano, como os raciais, e outros como os anos de estudo tenham papel essencial na caracterização da vulnerabilidade de grupos populacionais a agravos em saúde bucal, podendo afetar as chances de ascensão e constituindo um aspecto importante na investigação de fatores sociais capazes de afetar a saúde. Contudo, nesta população esses fatores parecem não ter sido por si só os responsáveis pelas perdas ocorridas.
É provável que, da mesma forma como constatado nos dados do Projeto SB Brasil 2002-200326, na área onde foi realizado o presente estudo, mesmo com a expansão dos serviços de saúde no Brasil, a extração dentária continue a ser o procedimento disponível para os indivíduos adultos. Isso pode estar ocorrendo por se tratar de municípios localizados em áreas rurais, com porte populacional menor e em condições mais desfavoráveis. Desse modo, embora os serviços de saúde estejam disponibilizando procedimentos de atenção básica, existe uma necessidade em relação à atenção secundária, como os tratamentos endodônticos e, na ausência destes, a exodontia tem sido utilizada como a primeira opção para o alívio da dor. Em virtude disso, a qualidade dos cuidados de saúde dispensados aos indivíduos participantes da pesquisa ainda é questionável, sobretudo em relação aos indivíduos com maior faixa etária.
Assim, é possível destacar que as perdas dentárias na população estudada podem ser entendidas como sequelas não só das doenças bucais, mas também do processo de exclusão social sofrido por esses indivíduos no decorrer da vida, as quais somente poderão ser minimizadas através de políticas sociais e econômicas capazes de reduzir o risco de doenças e de promover o acesso igualitário aos serviços de saúde.
Em relação às condições subjetivas relacionadas à saúde bucal, observou-se que os indivíduos que autoavaliaram a sua saúde bucal como ruim ou péssima, os que não tinham sentido dor dente nos últimos seis meses e aqueles que perceberam a necessidade de tratamento odontológico apresentavam, em sua maioria, um maior número de dentes perdidos. Nesse sentido, Bezerra et al.27 afirmam que a percepção precária da própria saúde pode ser vista como resultado de sentimentos provocados pelo mal-estar, dor ou desconforto, em interação com fatores sociais, culturais, psicológicos e ambientais que modificam a maneira como a vida da pessoa é afetada pelo problema experimentado. Sendo assim, essa percepção deve ser analisada sob uma ótica multidimensional, levando em consideração os diferentes entendimentos individuais da saúde diante do contexto cultural e psicossocial existente.
Em se tratando de estudo transversal, considera-se a possibilidade de ocorrência do viés de causalidade reversa, que ocorre quando a aparente exposição é consequência do desfecho. Esse fato pode ter ocorrido quando avaliamos tais condições subjetivas em relação às perdas dentárias.
Dentro desse contexto está inserido o impacto da saúde bucal na qualidade de vida, aferido neste estudo por meio do indicador OHIP-14. De fato, entre as pessoas que apresentavam um maior número de dentes perdidos, a maioria manifestou interferência da saúde bucal na vida diária. No entanto, essa expressividade do impacto pode ter sido gerada em função do maior número de dentes perdidos (> 12 perdas), com repercussão direta nas dimensões avaliadas por tal indicador. Sendo assim, a perda dentária poder ser considerada como uma saída para o fracasso de um tratamento conservador anteriormente realizado28, e pode ser referenciada como um forte preditor de impacto que, além de causar danos funcionais, é capaz de desequilibrar a organização psíquica e social dos indivíduos29. Vale ressaltar uma limitação relacionada ao construto da análise no que se refere à categorização do OHIP, que considera como sem impacto "às vezes", do mesmo modo que "nunca" e "raramente". Isso pode ter comprometido os resultados apontados nesta pesquisa.
Em se tratando da utilização de serviços odontológicos, os usuários de serviços públicos que decorreram um intervalo de tempo igual ou superior a três anos desde a última consulta odontológica, que tiveram como principal motivo a dor de origem dental, que avaliaram de maneira positiva o atendimento odontológico e que relataram não ter recebido informações sobre prevenção em saúde bucal apresentaram maior número de dentes perdidos. Diante dessa configuração, algumas hipóteses emergem na tentativa de explicar tais situações: a carga da doença é muito grande e o serviço ofertado não está capacitado para absorver a demanda ou, na contramão do paradigma da promoção de saúde, o serviço de saúde extrai mais em função da sua baixa resolutividade e a única alternativa, em muitos casos, é o tratamento mutilador. Essas são lacunas que ainda precisam ser preenchidas, aprofundando o conhecimento acerca dos serviços de saúde prestados às populações rurais brasileiras.
É alta a prevalência de perdas dentárias entre adultos residentes em áreas de assentamento rural, o que pode estar reforçando as desigualdades entre as classes sociais. O número de dentes perdidos esteve associado, por meio da análise bruta, à faixa etária, à cor da pele, à escolaridade, à autopercepção da saúde bucal e da necessidade de tratamento e ao impacto da saúde bucal na qualidade de vida, bem como ao tempo decorrido após a última consulta odontológica e à avaliação do atendimento. No entanto, após terem sido realizados os devidos ajustes, seguindo o modelo hierárquico de determinação proposto pelo estudo, permaneceram no modelo final as associações às variáveis: faixa etária, autopercepção da saúde bucal e impacto na qualidade de vida relacionada à saúde bucal. Evidências científicas acerca do conhecimento das condições de saúde bucal da população rural brasileira precisam ser geradas a fim de subsidiar a reorientação dos serviços públicos odontológicos voltados para esse contingente populacional.