versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.7 Rio de Janeiro jul. 2019 Epub 22-Jul-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018247.14172017
A dor lombar (DL) é a principal causa de incapacidade física1, entre adultos de todas as idades. De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), as morbidades musculoesqueléticas são as condições com maior carga incapacitante2,3. Dentre 209 condições de saúde, a DL é a morbidade que mais contribui para incapacidade global e ocupa a sexta colocação em termos da carga global das doenças mensurada pelos Disability-Adjusted Life Year (DALYs)1. Os pacientes com DL aguda apresentam maior gravidade em relação aos sintomas de dor e incapacidade, quando comparados com pessoas acometidas pela DL crônica4. Nesta lógica, é importante diferenciar os pacientes com queixas agudas e crônicas nas pesquisas e investigações sobre DL5.
A prevalência da DL de maior gravidade aumenta com o envelhecimento6,7, contribuindo de forma significativa para incapacidades e piora das condições de saúde já presentes na população idosa8. Idosos com incapacidades não conseguem manter as atividades no dia-a-dia e tendem a se afastar do convívio social, impactando negativamente o seu estado de saúde9. A DL compromete a funcionalidade, autonomia e independência dos idosos10 e constitui uma das razões mais comuns para procura dos cuidados primários de saúde11. Cayea et al.11 relataram que 36% dos idosos comunitários com 65 anos ou mais foram acometidos por um episódio de DL ao ano e destes 21% procuram os cuidados de saúde. Além do mais, os custos sociais e econômicos relacionados às incapacidades decorrentes da DL são enormes, onerando ainda mais os sistema de saúde e previdência social12.
A definição de incapacidade proposta pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da OMS, postula que incapacidades relacionadas às condições de saúde são influenciadas por múltiplos fatores. Na CIF, as incapacidades decorrem da interação entre disfunções na estrutura e função do corpo, limitação da atividade e restrição na participação social, sendo também influenciada por aspectos pessoais e ambientais13. Waddell e colaboradores, em 1992, analisaram a DL sob a ótica do modelo biopsicossocial14, e desde então essa abordagem vem sendo difundida e aprimorada15,16. Segundo o modelo biopsicossocial, a incapacidade em indivíduos com DL pode ser influenciada por aspectos biológicos, psicológicos e socioambientais, devendo ser analisada neste contexto amplo e integrativo14.
A literatura dispõe de evidências que demostram a importância do modelo biopsicossocial na abordagem da DL na população geral17-20. No entanto, publicações especificas sobre a associação de fatores biopsicossociais com incapacidade em pacientes com DL ainda são limitadas. Os poucos dados disponíveis apontam para influência de fatores físicos, psicológicos e socioambientais na incapacidade auto relatada em adultos com DL aguda19. Em idosos, o único estudo disponível sobre modelo biopsicossocial e DL, demostrou associação de aspectos biopsicossociais negativos com piores resultados funcionais e recomendou o uso da abordagem biopsicossocial em pesquisas futuras sobre DL em idosos18.
No entanto, ainda são escassos os estudos sobre DL e incapacidades na população idosa, principalmente sob a ótica biopsicossocial. Nesse sentido, torna-se necessário a realização de pesquisas que investiguem a associação de fatores biopsicossociais com DL e suas consequências entre os idosos. Assim, o objetivo do presente estudo foi identificar os principais fatores biopsicossociais associados com a incapacidade em idosos acometidos por um novo episódio de DL aguda.
O presente estudo faz parte do consórcio internacional de estudos epidemiológicos Back Complaints in the Elders – BACE, que inclui pesquisadores da Austrália, Brasil e Holanda. O objetivo do consórcio é estudar o perfil clínico, funcional, sócio demográfico, bem como investigar o curso da DL em idosos dos serviços de atenção à saúde nos países envolvidos, detalhes do protocolo já foram previamente publicados21. O projeto BACE-Brasil (BACE-B) é um estudo de coorte prospectivo com coleta de dados realizada no período entre outubro de 2011 e setembro de 2015. O recrutamento do BACE-B permitiu a construção de uma grande base de dados, possibilitando a realização tanto de trabalhos transversais como longitudinais (prospectivos). O presente estudo é do tipo transversal observacional e utilizou dados da avaliação de baseline da coorte BACE-B.
O estudo BACE-B foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, e recrutou uma amostra consecutiva de idosos com queixas agudas DL e residentes na comunidade da região metropolitana de Belo Horizonte. Os idosos com sintomas de dores na coluna foram identificados por profissionais de saúde (médicos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, entre outros) do serviço público e/ou privado e, foram direcionados para equipe de pesquisa BACE-B. Aqueles que procuraram a equipe treinada de pesquisadores do BACE-B, foram triados e convidados a participar do estudo.
O estudo BACE-B incluiu idosos com um novo episódio de DL aguda. A DL foi definida como queixas de dor, tensão ou rigidez localizada na região compreendida entre as últimas costelas e a linha glútea, com ou sem irradiação da dor para os membros inferiores (MMII)22. Um novo episódio de DL foi definido como aquele no qual o idoso não tivesse procurado tratamento para DL nos seis meses anteriores às queixas de dores atuais21. Por sua vez, os sintomas agudos foram definidos como crise de DL no período máximo de seis semanas antes da avaliação de baseline23. Apenas os idosos com esses critérios foram incluídos no estudo BACE-B.
Foram excluídos os participantes que apresentaram deficiência visual, motora e auditiva, ou disfunções cognitivas24 que pudessem influenciar os idosos responderem os questionários ou realizarem os testes físicos e funcionais adequadamente.
A amostra do presente estudo foi constituída por participantes do baseline do BACE-B com idade ≥ 65 anos. A escolha deste recorte amostral levou em consideração três aspectos: (1) o marco cronológico proposto pela OMS que considera idosos as pessoas com idade igual ou superior a 65 anos; (2) a facilidade de comparações com dados internacionais; (3) a menor variabilidade da amostra por sua maior homogeneidade em relação a idade.
Os participantes avaliados quanto aos critérios de inclusão/exclusão que concordaram em participar do estudo, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e foram incluídos no estudo.
Todos foram submetidos a um questionário padronizado, estruturado e multidimensional, para caracterização da amostra e avaliação das queixas de DL. Também realizaram exame físico e funcional, de acordo com as diretrizes do consórcio BACE. Todos os procedimentos detalhados foram descritos e publicados anteriormente no protocolo do consórcio BACE21.
A medida de desfecho do presente estudo foi incapacidade relacionada à DL, avaliada por meio do Questionário de Incapacidade Roland Morris (RMDQ). O RMDQ consiste em 24 itens relativos à influência das dores na coluna durante atividades do cotidiano e mensura o nível de incapacidade associada a DL. O escore do RMDQ varia de 0-24, sendo que os maiores escores indicam um pior nível de incapacidade. Este questionário apresenta boa confiabilidade teste-reteste e entre examinadores (r = 0,88 e 0,86; respectivamente)25,26.
Os fatores biopsicossociais potencialmente elegíveis para associação com a incapacidade foram selecionados da avalição de baseline segundo relevância clínica e/ou teórica. Seguindo a lógica da abordagem biopsicossocial para DL estes fatores foram categorizados da seguinte forma: fatores biológicos, fatores psicológicos e fatores sócio demográficos/estilo de vida14.
(1) Intensidade da DL na última semana, avaliada pela Numeric Rating Scale (NRS), com escore variando de 0 (sem dor) a 10 (dor máxima); (2) queixas de irradiação das dores para os MMII (sim/não); (3) relato de dor durante os movimentos ativos do tronco - flexão anterior, flexão lateral e rotação do tronco (sim/não); (4) dificuldade de dormir por causa da dor lombar (sim/não); (5) flexibilidade anterior do tronco, avaliada pelo teste distância dedo-chão (TDC), que mensura a distância em cm do terceiro dedo de uma das mãos até o chão durante o movimento de flexão anterior máxima do tronco; (6) positividade no teste de Lasègue (sim/não); (7) relato de rigidez matinal na coluna lombar (sim/não); (8) mobilidade funcional, avaliada pelo Timed up and Go (TUG), que mensura o tempo em segundos para o idoso realizar a tarefa de levantar a partir da posição sentada, deambular três metros, girar, retornar para a cadeira e sentar-se novamente. Tempos superiores a 12-14 segundos são associados com maior risco de quedas em idosos27; (9) número de comorbidades, avaliado por meio do self-administered comorbidity questionnaire (SCQ), sendo considerado as seguintes morbidades: doença cardíaca, hipertensão arterial sistêmica, doença pulmonar, diabetes, doença no estômago, doença renal, doença hepática, doenças do sangue, câncer, depressão, osteoartrite (quadril, joelho ou mão), artrite reumatoide, queixas de dor nos ombros e coluna cervical28; (10) saúde física, avaliada pelo domínio físico do Short Form Health Status Questionnaire - 36 (SF-36), composto por questões genéricas do estado de saúde física, com escore variando de 0 a 100, sendo que os menores valores representam piores resultados29; (11) história prévia de DL (sim/não); (12) índice de massa corporal (IMC); (13) relato do uso de medicação para DL nas últimas 6 semanas (sim/não); (14) consulta com médico especialista por causa da DL nas últimas 6 semanas (sim/não); (15) realização de exames de imagem para coluna lombar nas últimas 6 semanas (sim/não).
(1) Cinesiofobia, avaliada pelo Fear Avoidance Beliefs Questionnaire, que mensura o medo, as crenças e os comportamentos de evitação do movimento em pessoas com DL. A subescala atividade física, utilizada nesta investigação, é composta por 4 itens, com escore de 0 a 24, sendo os maiores valores representando os piores resultados30,31, (2) sintomas depressivos, avaliados pela Depression scale Center for Epidemiological Studies (CES-D) que aborda questões sobre o humor, sintomas somáticos, interações, e funcionamento motor. Esta escala considera os sintomas vivenciados na última semana e o escore final varia de 0 a 60 pontos, sendo o ponto de corte >11 positivo para sintomas depressivos na população brasileira32; (3) saúde mental, avaliada pelo domínio mental do Short Form Health Status Questionnaire -36 (SF-36), composto por questões genéricas do estado de saúde mental, com escore variando de 0 a 100, sendo que os menores valores representam piores resultados29; e (4) autoeficácia em quedas, avaliada por meio do questionário Falls Efficacy Scale - International (FES-I), que registra a preocupação do idoso em cair durante o desempenho de 16 atividades, possui escores variando de 16 a 64, sendo que a maior pontuação representa menor senso de auto eficácia em quedas33.
(1) Idade em anos; (2) sexo (masculino/feminino); (3) estado civil (categorias: casado/mora junto, solteiro/divorciado; viúvo); (4) nível de escolaridade (categorias: baixa, média e alta); (5) renda (categorias: baixa – até 2 salários, média – de 2 a 5 salários e alta – 5 ou mais salários); (6) uso de álcool (sim/não); (7) tabagismo (sim/não), (8) trabalho remunerado (sim/não) e (9) nível de atividade física na última semana, utilizando o International Physical Activity Questionnaire (IPAQ), que avalia o nível de atividade física das populações em diversas atividades, inclusive aquelas realizadas no tempo de lazer, como deslocamento de um lugar ao outro, serviços domésticos e atividades ocupacionais, sendo os indivíduos categorizados em três níveis de atividade: inativos, moderadamente ativos e ativos (IPAQ)34.
Estatística descritiva foi utilizada para reportar os dados de caracterização da amostra, considerando medidas de tendência central e de frequência dos desfechos.
Um modelo de regressão linear multivariada foi construído para analisar os fatores associados com a incapacidade pela DL. Inicialmente, foi realizada análise bivariada, para examinar a existência de relações das variáveis independentes (contínuas e dicotômicas) com a variável incapacidade (outcome). Depois disso, vários modelos de regressão linear múltipla do tipo stepwise foram empregados para definir a melhor combinação das variáveis no modelo final. As potenciais variáveis explicativas foram selecionadas segundo critérios teóricos e incluídas nos modelos de regressão conforme critérios estatísticos. Todas variáveis com significância estatística (p ≤ 0,2) na análise bivariada foram inseridas no modelo de regressão, com exceção das variáveis idade, sexo, escolaridade, que foram incluídas no modelo de regressão independentemente da existência de correlação significativa na análise bivariada.
O modelo de regressão final foi definido após verificados e respeitados os seguintes pressupostos: presença de relação linear das variáveis independentes com a variável dependente, independência das variáveis explicativas (fatores associados); ausência de multicolinearidade, verificada por meio da tolerância e do fator de inflação da variância (VIF); variância constante dos erros (homocedasticidade dos erros); distribuição independente dos erros (teste Durbin-Watson) e normalidade dos resíduos (análise gráfica e teste de normalidade Kolmogorov-Smirnov).
Para fins de cálculo amostral utilizamos como referência a seguinte fórmula: n = 10 x (K + 1), onde K é o número de variáveis explicativas incluídas no modelo de regressão múltipla e n é o tamanho da amostra do estudo. Assim, foi necessária uma amostra mínima de 300 participantes para realização das análises de regressão linear múltipla com até 30 variáveis explicativas.
Todas as análises foram realizadas pelo programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) para Windows (Versão 22.0), e o nível de significância adotado foi de 5%.
Participaram desta investigação idosos provenientes da linha de base da coorte BACE-B, a Figura 1 ilustra o processo de seleção dos participantes para o presente estudo. A amostra foi composta por 386 idosos, com média de idade de 71,6 ± 4,2 anos, sendo a maioria do sexo feminino (84,5%), com baixos níveis de escolaridade (67,6%) e renda (71%). Em relação as características relacionadas a queixa, os idosos apresentaram incapacidade média de 13,7(± 5,7) ao RMDQ, intensidade média da dor de 7,1(± 2,6) à NRS e duração média do novo episódio de DL de 18,9 (± 12,5) dias. As características descritivas da amostra são apresentadas nas Tabelas 1 e 2.
Tabela 1 Características sóciodemográficas e estilo de vida dos participantes do BACE-B, 2016, n=386.
Variáveis | Continuas | Categóricas |
---|---|---|
| ||
média (DP) | n (%) | |
Fatores sóciodemográficos e estilo de vida | ||
Idade | 71,6 (±4,2) | - |
Sexo | ||
Masculino | - | 60 (15.5) |
Feminino | - | 326 (84,5) |
Nível educacional* | ||
Baixo | - | 261 (67,6) |
Médio | - | 74 (19,2) |
Alto | - | 50 (13,0) |
Renda* | ||
Até 2 salários (baixa) | - | 274 (71,0) |
De 2 a 5 salários (média) | - | 59 (15,3) |
5 ou mais salários (alta) | - | 48 (12,4) |
Estado civil | ||
Casado/mora junto | - | 158 (41,0) |
Solteiro/divorciado | - | 108 (28,0) |
Viúvo | - | 120 (31,1) |
Nível de atividade física - IPAQ | ||
Inativo | - | 252 (65,3) |
Moderadamente ativo | - | 109 (28,2) |
Ativo | - | 25 (6,5) |
Tabagismo | ||
Sim | - | 120 (31,1) |
Não | - | 266 (68,9) |
Trabalho remunerado | ||
Sim | - | 71(18,4) |
Não | - | 315(81,6) |
Uso de bebida alcoólica* | ||
Sim | - | 136 (35,2) |
Não | - | 248 (64,2) |
DP= desvio padrão; IPAQ= International Physical Activity Questionnaire; *= o percentual de perda foi inferior a 5% em todas as variáveis consideradas nesta investigação, sendo de 0,5% para uso de bebida alcoólica, 1,3% para renda e 0,3% para nível educacional.
Tabela 2 Características da dor lombar, funcionalidade, incapacidade e saúde dos participantes do BACE-B, 2016, n=386.
Variáveis | contínuas | categóricas |
---|---|---|
| ||
média (DP) | n (%) | |
Fatores biológicos | ||
Incapacidade – RMDQ (0 a 24) | 13,7 (±5,7) | - |
Intensidade de dor - NRS (0 a 10) | 7,1 (±2,6) | - |
Duração do novo episódio de dor (0 a 45 dias) | 18,9 (±12,5) | - |
Irradiação de dor para MMII | - | 236 (61,5) |
Flexibilidade anterior tronco -TDC (centímetros) | 16,8 (±12,9) | - |
Dor aos movimentos ativos do tronco | - | 278 (72,0) |
Dificuldade para dormir por causa dor | - | 168 (43,5) |
Rigidez matinal na coluna lombar | - | 191 (35,2) |
Positividade no teste de Lasègue | - | 158 (41,1) |
Mobilidade Funcional – TUG (segundos) | 11,6 (±3,9) | - |
Número de comorbidades (0 a 13) | 4,32 (±2,4) | - |
Saúde física (SF-36) (0 a 100) | 43,3 (±13,3) | - |
História de dor lombar prévia | 311 (80,6) | |
Índice de massa corporal | 28,8 (±5,1) | - |
Uso de medicação para dor lombar | - | 282 (73,1) |
Realização de exames de imagem | - | 49 (12,2) |
Consulta a médico especialista | - | 75 (19,4) |
Fatores psicológicos | ||
Saúde mental (SF-36) (0 a 100) | 42,2 (±8,2) | - |
Cinesiofobia – FABQ-Phys (0 a 24) | 15,7 (±6,2) | - |
Sintomas depressivos - CESD (0 a 60) | 18,5 (±11,9) | - |
Auto eficácia em quedas - FESI (16 a 24) | 31,1 (±9,1) | - |
DP = desvio padrão; RMDQ = Roland Morris Disability Questionnaire; NRS = Numeric Rating Scale; MMII = membros inferiores; TDC = teste distância dedo-chão em cm; TUG = Timed up and Go; FESI = Falls Efficacy Scale - International; SF-36 = Short Form Health Status Questionnaire -36; FABQ-Phys = Fear Avoidance Beliefs Questionnaire - subscale physical activities; CESD = Depression scale Center for Epidemiological Studies; IPAQ= International Physical Activity Questionnaire
O modelo de regressão linear múltipla calculado possibilita a predição dos níveis de incapacidade baseado na interação de múltiplas variáveis explicativas. A equação de regressão encontrada no modelo final foi [F (10, 366) = 48,813, p < 0,000], com um R2 de 0,622. Assim, aproximadamente 62% da variabilidade da incapacidade foi explicada pelos 10 preditores do modelo de regressão. Os fatores preditivos maior intensidade de dor (0,7%), dificuldade para dormir por causa da DL (2,8%) ocorrência de rigidez matinal na coluna lombar (3,4%) pior mobilidade funcional (2,5%), pior saúde física (13,9%), maiores níveis de IMC (1,9%), cinesiofobia (0,8%), baixa auto eficácia em quedas (0,6%), pior saúde mental (35%) e sexo feminino (0,6%), influenciaram significativamente a incapacidade na amostra investigada. O aumento dos níveis de incapacidade esteve associado com pior desempenho nos escores das medidas biopsicossociais de saúde no modelo final de regressão linear múltipla (Tabela 3).
Tabela 3 Análise de regressão linear multivariada entre a incapacidade e fatores biopsicossociais dos participantes do baseline BACE-B, 2016, n=366
Variável | Incapacidade | ||||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
Regressão linear multivariada (R2=0,622; F = 48,813; df = 10 de 22; p< 0,001) | |||||
| |||||
B(±SE) | β | t | p | R2 | |
Fatores biológicos (6)‡ | |||||
Intensidade de dor última semana | 0,217(0,09) | 0,100 | 2,485 | 0,014 | 0,007 |
Dificuldade para dormir devido à dor | 1,793(0,47) | 0,155 | 3,806 | 0,000 | 0,028 |
Rigidez matinal na coluna lombar | 1,845(0,47) | 0,158 | 4,098 | 0,000 | 0,034 |
Mobilidade Funcional – TUG | 0,233(0,06) | 0,147 | 3,778 | 0,004 | 0,025 |
Saúde física SF-36 | -0,088(0,02) | -0,199 | -4,783 | 0,000 | 0,139 |
Índice de massa corporal | 0,159(0,04) | 0,142 | 3,837 | 0,000 | 0,019 |
Fatores psicológicos (3)‡ | |||||
Saúde mental SF-36 | -0,237(0,03) | -0,334 | -6,963 | 0,000 | 0,350 |
Cinesiofobia – FABQ - Phys | 0,081(0,04) | 0,090 | 2,239 | 0,026 | 0,008 |
Auto eficácia em quedas - FESI | 0,077(0,03) | 0,124 | 2,720 | 0,007 | 0,006 |
Fatores sócio demográficos (1)‡ | |||||
Sexo feminino | 1,507(0,61) | 0,096 | 2,502 | 0,013 | 0,006 |
R2 = coeficiente de determinação ajustado; F = estatística F; df = graus de liberdade; B = coeficientes unstandardized; SE = erro padrão; β = coeficientes standardized; t = estatística t; p = valor de p, com significância de 0.05; TUG = Timed up and Go; SF-36=Short Form Health Status Questionnaire -36; FABQ-Phys = Fear Avoidance Beliefs Questionnaire - subscale physical activities; FESI = Falls Efficacy Scale – International. ‡= quantidade de variáveis na categoria.
Este estudo transversal analisou a associação de fatores biopsicossociais com a incapacidade em idosos com um novo episódio de DL aguda. Múltiplos fatores preditivos foram associados com a incapacidade na amostra investigada. O modelo de regressão múltipla identificou dez fatores preditivos que, em conjunto, explicaram 62,2% da variabilidade da incapacidade. Esses dados evidenciam a característica multifatorial da incapacidade em idosos com DL e corrobora com dados de estudos prévios sobre incapacidade na população geral com indivíduos acometidos por DL35,36.
Recentemente, um estudo realizado pela OMS – Study on Global AGEing and Adult Health (SAGE), avaliou fatores de risco para incapacidade em adultos e idosos com DL. Os autores incluíram mais de 30 mil participantes (50,2% com idade entre 50-59 anos e 49,8% com 60 anos ou mais) com relato de DL nos últimos 30 dias. Os fatores de risco para incapacidade identificados foram ser do sexo feminino, ter baixa escolaridade, maior número de comorbidades, maior intensidade da dor, aumento da idade e baixo nível de atividade física36. Esses dados corroboram com os resultados do presente estudo em relação multidimensionalidade da incapacidade. No entanto, diferenças entre os tipos de fatores associados com a incapacidade divergem entre os estudos. No presente estudo não houve associação da incapacidade com escolaridade, comorbidades, idade e nível de atividade física. Diferenças no perfil da amostra e no questionário utilizado para mensurar a incapacidade podem justificar essas diferenças. Sewart et al. utilizaram um questionário genérico proposto pela OMS (WHO Disability Assessment Schedule - WHODAS) para avaliação da incapacidade numa população mista (adultos e idosos) com DL crônica e aguda36, enquanto no presente estudo foi usado um questionário específico para mensurar incapacidades exclusivamente em idosos (65 anos ou mais) com DL aguda25,26.
Nossos resultados mostraram que os maiores níveis de incapacidade foram associados com maior intensidade de dor à NRS, corroborando resultados semelhantes de outros estudos19,36,37. Idosos com DL de maior gravidade, possivelmente, experimentam maior intensidade de dor e consequentemente maiores níveis de incapacidade. Esta hipótese é corroborada pelo estudo de Weiner et al.37 que encontraram correlação da incapacidade com maior intensidade (r = 0,370, p = 0,001) e duração da dor (r = -360, p = 003) ao avaliar 100 idosos (média de idade 74,3 anos) da comunidade com DL crônica.
Na amostra do presente estudo os valores médios de incapacidade (13,7 ± 5,7) e dor (7,1 ± 2,6) foram superiores a outros estudos sobre DL com população específica de idosos. Jarvik et al.38 encontraram intensidade média da DL de 5,0 (± 2,8) à NRS e incapacidade média de 9,5 (± 6,4) ao RMDQ numa investigação com 5.239 idosos (média de idade 73,8 ± 6,9 anos) americanos com DL. Já Scheele et al.39 encontraram intensidade média da DL de 4,0(± 2,8) à NRS e incapacidade média de 9,8 (± 5,8) ao RMDQ em um estudo com 675 idosos holandeses (média de idade de 66,4 ± 7.6 anos) com um novo episódio de DL39. Diferenças nas características das amostras podem justificar esses dados. No presente estudo foram incluídos apenas idosos com episódio de DL aguda, já nos estudos com idosos americanos e holandeses participaram também idosos com DL subaguda e crônica. Habitualmente, os pacientes com DL subaguda e crônica apresentam sintomas de dor e incapacidade de menor intensidade do que aqueles com DL aguda4.
Contraditoriamente aos resultados do presente estudo, Stewart et al. (2015) não encontraram associação da obesidade com incapacidade, mas esses autores avaliaram a obesidade utilizando a circunferência da cintura (OR = 0,3; p > 0,1)36. Weiner et al.37 também não encontraram associação do IMC (r = 0,030; p = 0,270) com incapacidade. O presente estudo contraria esses dados ao evidenciar a associação do IMC e incapacidade na amostra de idosos com DL aguda investiga. Neste aspecto é importante destacar que associação do IMC com DL em idosos, embora não especificamente com a incapacidade devido a DL, já foi descrita anteriormente9,10. Essas contradições sugerem que a relação da obesidade com a DL ainda é controversa na população idosa.
A variável sexo feminino esteve associada com a incapacidade e permaneceu no modelo de regressão final. Sabidamente mulheres apresentam mais problemas de saúde e incapacidades. Murtagh e Hubert40 descreveram maior prevalência de incapacidades relacionadas aos problemas de saúde em mulheres do que em homens idosos. Chenot et al.41 encontraram maior gravidade da DL em mulheres e demostraram a associação do sexo feminino com baixa capacidade funcional e pior prognóstico da DL, inclusive em idosos, que representaram 22% da sua amostra. Assim, é possível inferir que ser do sexo feminino é uma característica negativa na população idosa acometida por DL.
Os resultados do presente estudo também demonstraram associação de cinesiofobia com incapacidade e estão em conformidade com dados de estudos prévios que avaliaram idosos com DL crônica42-44 e adultos com DL aguda31. Esta associação entre cinesiofobia e incapacidade pode ser melhor compreendida com base no seguinte pressuposto: a experiência negativa com dor induz ao medo do aparecimento/aumento da dor em consequência ao movimento e com isso os indivíduos evitam o movimento/atividade, perpetuando o quadro de incapacidade43. Nesta perspectiva, é possível supor que idosos com DL e comportamento cinesiofóbico reduzam a mobilidade e as atividades do cotidiano, favorecendo o isolamento social e as incapacidades.
Hall et al.45 demonstraram que aproximadamente 30% da relação entre DL e incapacidade são mediados por sintomas psicológicos. Os autores concluíram que esta relação depende também de outros fatores, tendo em vista que apenas 30% da variabilidade da incapacidade foram explicados por questões psicológicas. Nossos resultados corroboram com essa constatação, pois apesar da variável sintomas depressivos (avaliados pela CES-D) não permanecer no modelo de regressão final, o pior estado de saúde mental (mensurada pelo SF-36) foi o preditor que mais explicou a variação da incapacidade, demostrando a existência de importante associação das características psicológicas com a incapacidade na amostra investigada. A hipótese é que exista um ciclo vicioso, sendo que a presença da DL e suas incapacidades aumentam o sofrimento psíquico, influenciando a piora do estado de saúde mental. Por outro lado, os idosos com um pior estado de saúde mental, podem ter mais dificuldades no enfrentamento e resolução da DL, percebendo então maiores níveis de incapacidade quando comparados com idosos sem alterações emocionais46.
O aumento da incapacidade esteve associado com menor senso autoeficácia em quedas (FES-I). Verma e Pal47 ao estudar uma amostra de 100 pacientes, com DL aguda (últimas 6 semanas), com idade variando de 40 a 73 anos, também encontraram associação entre incapacidade e auto eficácia em quedas. Corroborando os nossos resultados, os autores concluíram que o aumento da incapacidade em pacientes com DL esteve associado com a menor senso de auto eficácia em quedas47. Ainda em relação a funcionalidade, a mobilidade funcional, avaliada pelo TUG, apresentou associação negativa e significativa com a incapacidade, reforçando dados de estudos prévios que encontraram associação da DL com diminuição da mobilidade funcional em idosos43,48.
Nossos resultados demostraram associação da rigidez matinal na coluna e alteração do sono por causa da dor com o aumento da incapacidade. Estudos prévios realizados na população geral demostraram associação de alterações na qualidade do sono49 e ocorrência de rigidez matinal na coluna com pior quadro clínico em pacientes com DL50. Frymoyer35 destacou a importância dos fatores físicos na predição da incapacidade em pacientes com DL, no entanto, não encontramos estudos específicos sobre alterações de sono ou rigidez matinal e suas relações especificamente com incapacidade em idosos com DL, dificultando as comparações com nossos resultados.
Finalizando a análise dos nossos resultados, o estado de saúde física, mensurado pelo domínio físico do SF-36, foi significativamente associado com a incapacidade. Dados prévios que apontam a influência do estado de saúde na incapacidade decorrente da DL estão em conformidade com esse resultado9,46. No entanto, é importante ressaltar que a literatura disponível sobre DL na população geral tem demostrado uma importante participação de questões psicológicas e sociais em detrimento de questões clínicas e biológicas18-20,37,44. Esse fato também fica evidente no presente estudo, pois vários fatores biológicos não apresentaram associação significativa com incapacidade.
O presente estudo apresentou algumas limitações que serão discutidas a seguir: (1) Os participantes foram recrutados de forma consecutiva (não aleatória), o que pode contribuir para viés de seleção da amostra e comprometer a generalização dos resultados. Características como idade, sexo, gravidade dos sintomas, acesso aos serviços de saúde, disponibilidade e interesse dos participantes podem ter influenciado no recrutamento dos participantes e produzido discrepâncias na representatividade da amostra. Por exemplo, a amostra do presente estudo foi constituída em sua maioria por mulheres e, mesmo considerando o fenômeno de feminização da velhice, a proporção de mulheres foi superior a distribuição demográfica esperada para população de mulheres e homens idosos. Assim, há necessidade de cautela na generalização dos nossos resultados. (2) Itens do questionário utilizado para mensurar a incapacidade apresentaram similaridade com alguns fatores explicativos ou com itens de questionários utilizados para mensurá-los. Neste aspecto é importante ressaltar que, apesar de possuírem certa similaridade, os questionários utilizados no presente estudo mensuram construtos diferentes, apresentam características psicométricas e escores diferentes, com validade e confiabilidade já determinada em publicações anteriores. Além do mais, utilizamos os escores totais dos instrumentos o que minimiza problemas com a similaridade de itens isolados dos questionários. Também atentamos, durante a análise estatística, para possibilidade de multicolinariedade, não sendo encontrados indícios de violação desse pressuposto. (3) Considerando o desenho transversal do presente estudo, é importante considerar a possibilidade de causalidade reversa, tendo em vista que fatores explicativos podem ser modificados pela existência da doença, não sendo possível em estudos transversais determinar o que ocorreu primeiro - se foi a exposição ou o desfecho. Neste sentido, a intepretação dos resultados e discussões apresentadas devem ser entendidas apenas como constatação da associação entre as variáveis e não podem ser confundidas com relação de causa e efeito.
O presente estudo investigou múltiplos fatores biopsicossociais e suas associações com a incapacidade em uma amostra exclusiva de idosos com um novo episódio de DL aguda. Descrevemos a interação multifatorial de características biológicas, psicológicas e sócio demográficas com a incapacidade, apresentado discussões e comparações com a literatura disponível. A exploração desse tema numa população comumente excluída das pesquisas sobre DL tem um caráter inovador e destaca a importância da DL na população idosa. Concluímos que a incapacidade em idosos com DL aguda é multifatorial e está associada com pior desempenho nos escores de medidas biopsicossociais de saúde. Nossos resultados contribuem para o aumento do conhecimento científico e podem ser utilizados como subsídio por profissionais de saúde na abordagem da incapacidade em idosos com DL. No entanto, estudos longitudinais e prospectivos são necessários para validar hipóteses e testar relações de causa e efeito para incapacidade em idosos com DL.