versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.37 no.4 São Paulo out./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150071
Polimixinas foram desenvolvidas há cerca de 60 anos, porém foram praticamente descontinuadas nos anos 1980 (exceto em pacientes com fibrose cística) devido à preocupação com nefropatia e o surgimento de outras alternativas terapêuticas mais seguras. Entretanto, esta droga foi reintroduzida na prática clínica em muitas partes do mundo, primariamente como consequência do surgimento de bacterias gram negativas multirresistentes, entre elas Pseudomonas aeruginosa e Acinetobacter baumannii.1-4
Existe uma disparidade importante nas taxas reportadas de nefrotoxicidade associada ao uso de polimixina entre estudos novos e antigos. Estudos mais antigos relatavam taxas próximas a 100% de nefrotoxicidade,5 enquanto estudos mais recentes demonstram taxas próximas de zero.6 Mesmo em trabalhos atuais, a disparidade continua.7-9 O fator mais importante para essas diferenças pode ser as variações nas definições de nefrotoxicidade (foram reportadas 15 definições em uma revisão sistemática).10 Entretanto, outros aspectos como a dose da droga, uso concomitante de outras drogas nefrotóxicas e população em estudo também certamente influenciam esse resultado.
Já que a terapia com polimixina é considerada o último recurso para tratamento de infecções causadas por bacilos gram negativos multirresistentes, a prescrição dessa classe de drogas pode ser inevitável. Dessa forma, estudos nesta área são particularmente importantes nos nossos dias.
O objetivo deste estudo foi determinar a incidência de nefropatia associada ao uso de polimixina B em um hospital terciário, utilizando uma definição padrão para perda de função renal aguda (critério de RIFLE). Também, identificar fatores de risco associados a sua nefrotoxicidade, uma vez que o conhecimento a respeito de fatores de risco para nefrotoxicidade são baseados em sua maioria em estudos com uso da colistina (polimixina E) ou uso de polimixina B e E, sendo raros estudos que focam somente no uso de polimixina B.
Foi conduzido um estudo de coorte retrospectiva com pacientes adultos internados que receberam polimixina B de dezembro de 2010 a março de 2011 no Hospital Nossa Senhora da Conceição. Uma lista gerada pela farmácia identificou os pacientes que receberam polimixina B naquele período. Os critérios de exclusão foram: início de terapia dialítica antes do uso da polimixina B, menores de 18 anos e ter recebido a droga por um período inferior a 48 horas. O Comitê de Ética de nossa instituição aprovou o estudo em novembro de 2011, sob o número de protocolo 11-242.
Os seguintes dados foram coletados de cada paciente: características demográficas, comorbidades prévias como diabetes, hipertensão, insuficiência renal crônica e outras, uso de agentes nefrotóxicos, ocorrência de hipotensão (necessidade de uso de drogas vasopressoras), albumina, Índice de Charlson, creatinina antes e imediatamente após o fim da terapia com polimixina. Dados a respeito da indicação do uso de polimixina, dose total da droga e tempo de duração do tratamento também foram registrados. Os pacientes do estudo não receberam nenhum tipo de medida com vistas a evitar perda de função renal durante o estudo.
O desfecho primário foi desenvolvimento de lesão renal aguda utilizando o critério de RIFLE para injúria e falência renal, que define injúria renal como aumento da creatinina em duas vezes e falência como aumento da creatinina em três vezes. Desfechos secundários foram a necessidade de diálise e mortalidade.
Os dados foram digitados no programa Excel®, (versão 7 para Windows) por dois digitadores diferentes, sendo após comparados para controlar possíveis erros de digitação. As variáveis contínuas foram descritas como médias e desvios padrões; variáveis categóricas foram descritas como frequências e porcentagens. Teste t de Student foi utilizado para comparar variáveis contínuas, enquanto qui quadrado e teste exato de Fischer foi utilizado para variáveis categóricas. Regressão logística Stepwise Backward foi utilizada para avaliar a relação entre as variáveis e o desenvolvimento de nefropatia. A análise estatística foi realizada com o software SPSS® (Statistical Package for the Social Sciences v. 17.0 for Windows). Consideramos significativos valores de p menores que 5% (p < 0.05).
Um total de 205 pacientes preencheram os critérios de inclusão. Sessenta e dois pacientes foram excluídos do estudo (38 por estarem em diálise antes do início da terapia com polimixina, 23 por terem recebido menos de 48 horas da droga e 1 por ser menor de 18 anos). As características dos pacientes, comorbidades e detalhes da terapia antimicrobiana entre os pacientes que desenvolveram nefropatia e os que não desenvolveram estão apresentados na Tabela 1.
Tabela 1 Comparação entre os pacientes com e sem lesão renal
Com (81) | Sem (61) | p | |
---|---|---|---|
Masculino | 42 (53,2%) | 37 (46,8%) | 0,27 |
Idade | 60,12 (DP: 16,04) | 61,7 (DP:17,45) | 0,38 |
Comorbidades | |||
Hipertensão | 27 (33,8%) | 29 (48,3%) | 0,081* |
Tabagismo | 22 (27,5%) | 22 (36,18%) | 0,277 |
Diabetes | 19 (23,8%) | 16 (26,7%) | 0,693* |
Insuficiência cardíaca | 12 (15%) | 3 (5%) | 0,058* |
Doença Isquêmica do coração | 10 (12,5%) | 6 (10%) | 0,645* |
DPOC | 15 (18,8%) | 12 (20%) | 0,853* |
Doença Hepática | 3 (3,8%) | 1 (1,7%) | 0,464* |
Acidente vascular cerebral | 14 (17,5%) | 10 (16,4%) | 0,862* |
Demência | 4 (5%) | 5 (8,3%) | 0,426* |
Neoplasia | 18 (22,5%) | 16 (26,7%) | 0,569* |
HIV/AIDS | 5 (6,3%) | 3 (5,0%) | 0,753* |
Doença Arterial periférica | 2 (2,5%) | 2 (3,3%) | 0,770* |
Insuficiência renal crônica | 4 (5%) | 2 (3,3%) | 0,630* |
Polimixina B | |||
Tempo de uso (dias) | 7,27 | 7,93 | 0,57** |
Dose cumulativa (UI/Kg) | 187.666 | 202.744 | 0,31** |
Outros Antibióticos | |||
Vancomicina | 47 (58%) | 48 (80%) | 0,006* |
Cefepime | 33 (41,3%) | 27 (44,3%) | 0,720* |
Local da Infecção | |||
Trato Respiratório | 58 (72,5%) | 43 (70,5%) | 0,793* |
Trato urinário | 5 (6,3%) | 9 (14,8%) | 0,094* |
Abdominal | 6 (7,4%) | 5 (8,2%) | 0,862* |
Creatinina basal > 1,5 | 16 (19,8%) | 4 (6,6%) | 0,043* |
Hipotensão | 30 (37%) | 33 (54,1%) | 0,043* |
UTI | 57 (71,3%) | 46 (75,4%) | 0,581 |
Tempo de internação | 58,7 (SD:67) | 44,26 (SD:29) | 0,95** |
Albumina (g/dL) | 2,93 | 2,95 | 0,21*** |
Índice de Charlson (media) | 4,62 | 4,50 | 0,668*** |
X2 with Yates*,
Mann-Whitney U**,
Test tstudents for independent samples***.
De acordo com os critérios de RIFLE, 72 (50,3%) pacientes não apresentaram alteração significativa na taxa de filtração glomerular, 9 (6,3%%) preenchiam critério para risk, 38 (26,6%) para injury e 23 (16,1%) de failure. No total, 61 pacientes (43%) preencheram os critérios para o desfecho do estudo (grupo injury e failure). Vinte e oito pacientes (13,7%) realizaram terapia de substituição renal.
A dose media de polimixina foi 12.771 UI/kg (desvio padrão 6596 UI/kg). A média de dose cumulativa de polimixina foi mais alta (202.764 UI, com desvio padrão 152.469 UI) em pacientes que desenvolveram nefrotoxicidade em relação aos que não desenvolveram (175.446 UI, com desvio padrão 154.491 UI). Entretanto, esta diferença não foi significativamente significante (p = 0,30). Foi encontrada uma correlação entre dose e creatinina (r = 0,27, alfa < 0,001), assim como entre tempo de uso da droga e creatinina (r = 0,27, alfa 0,001), conforme apresentado nos Gráficos 1 e 2.
Mortalidade foi vista em 5/13 (38%) dos pacientes que desenvolveram nefrotoxicidade e em 15/42 (36%) entre os pacientes que não desenvolveram (p = 0,999). Não houve relação entre perda de função e taxa de mortalidade.
Para avaliar a gravidade dos pacientes e suas comorbidades, foi utilizado o Índice de Comorbidade de Charlson. Houve correlação entre o Índice e mortalidade (r = 0,24, alfa = 0,004), porém não houve correlação entre o Índice de Charlson de o desenvolvimento de nefropatia.
As variáveis que permaneceram como fatores de risco independentes para perda de função renal após análise multivariada foram hipotensão (OR 2,47; IC 1,14 - 5,35; p 0,021) e uso concomitante de vancomicina (OR 2,86; IC 1,20 - 6,81; p 0,017). Conforme apresentado na Tabela 2.
Tabela 2 Regressão logística, stepwise backward
Variáveis | α | OR | IC 95% | |
---|---|---|---|---|
Hipotensão | 0,006 | 2,792 | 1,333 | 5,848 |
Vancomicina | 0,011 | 2,861 | 1,278 | 6,403 |
a. Variáveis incluídas no step 1: hipotensão, uso de vancomicina, trato urinário, albumina, dose de poliB, DM, ICC, AVE, neoplasia, HIV, IRC, trato pulmonar, infecção abdominal, índice de Charlson, sexo masculino.
Em nosso estudo, 61 pacientes preencheram os critérios de RIFLE para perda de função renal. Isso significa 43% dos pacientes que receberam polimixina, taxa maior do que a sugerida em alguns estudos recentes na literatura.6,10 Entretanto, é similar aos resultados encontrados por Hartzel et al.11 e Levin et al.12 Ambos os estudos tinham população similar e utilizaram os critérios de RIFLE para definir nefrotoxicidade. Acreditamos que o uso dos critérios de RIFLE em estudos futuros com polimixinas permitirá estimações mais acuradas, além de facilitar comparação entre os estudos.
Provavelmente, o achado mais importante de nosso estudo foram as taxas relativamente altas de necessidade de diálise: 28 pacientes (13,7%). Estudos sugerem que a maior parte dos pacientes recupera função renal após alguns meses.10 Mesmo assim, essas taxas causam preocupação, já que a terapia dialítica é um procedimento invasivo, com morbidade e mortalidade associadas.13
Hipoalbuminemia foi sugerido como fator de risco,14 já que uma alta concentração de polimixina livre em pacientes com baixos níveis de albumina poderia aumentar a toxicidade renal. Em nosso estudo, entretanto, não podemos confirmar essa relação.
Similar a estudos prévios, encontramos que a nefrotoxicidade da polimixina tem correlação com dose e duração da terapia.7 Entretanto, em nosso estudo, a dose não foi fator de risco independente para o desenvolvimento de nefropatia. Uma possível explicação seria o fato de nosso estudo ser exclusivamente com polimixina B, podendo a dose ser mais importante com o uso de colistina.
Uso concomitante de vancomicina e hipotensão foram fatores de risco independente para nefropatia. Isto já foi sugerido em estudos prévios,9,15 reforçando nossos achados.
As limitações ao nosso estudo incluem seu desenho retrospectivo e a falta de grupo controle. Idealmente, um grupo controle recebendo outro antibiótico ou placebo seria necessário para resultados mais definitivos. A falta de ensaios clínicos randomizados para uso de polimixinas prejudica a avaliação de seu real risco para nefrotoxicidade. Entretanto, o fato de que polimixinas são administradas quase exclusivamente em pacientes com infecções por germes sensíveis apenas a esta classe de drogas faz com que estudos randomizados não sejam possíveis nesse momento, já que não seria ético não prescrever polimixina para um paciente cuja única opção terapêutica seja esta droga.
Nosso estudo é único, já que é o primeiro exclusivamente com polimixina B, tem uma das maiores populações e foi conduzido fora do contexto de UTI. Nossos resultados têm importante implicação quanto a possíveis intervenções para evitar nefropatia associada ao uso de polimixinas. Programas de monitorização para diminuir duração da terapia e ajuste de dose devem ser buscados. Por fim, a função renal deve ser monitorizada com atenção nos grupos de risco, especialmente em pacientes com episódios de hipotensão e aqueles recebendo vancomicina.
Existe um número muito pequeno de estudos com polimixina B e colistina (apenas três em revisão recente da literatura,9,14,16 com resultados conflitantes em relação à similaridade de fatores de risco para nefropatia com uso das duas drogas, assim como suas taxas de nefrotoxicidade.
Em conclusão, estudos relacionados à nefrotoxicidade de drogas são de difícil execução, já que diversos fatores relacionados tanto ao paciente quanto uso da droga podem influenciar na perda de função renal. Dessa forma, o ideal é que se estude cada fator considerado fator de risco de forma isolada e em ambiente mais homogêneo possível (isoladamente pacientes ambulatoriais, de internação e de unidade de terapia intensiva, por exemplo). Dessa forma, futuros estudos são necessários, especialmente exclusivamente com polimixina B para clarificar se esta droga e colistina têm características totalmente sobreponíveis.