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Fatores de risco para mortalidade em traqueobronquite associada à ventilação mecânica: estudo caso-controle

Fatores de risco para mortalidade em traqueobronquite associada à ventilação mecânica: estudo caso-controle

Autores:

Leonilda Giani Pontes,
Fernando Gatti de Menezes,
Priscila Gonçalves,
Alexandra do Rosário Toniolo,
Claudia Vallone Silva,
Julia Yaeko Kawagoe,
Camila Marques dos Santos,
Helena Maria Fernandes Castagna,
Marinês Dalla Valle Martino,
Luci Corrêa

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.15 no.1 São Paulo jan./mar. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082017ao3865

INTRODUÇÃO

As infecções do trato respiratório inferior são uma importante causa de morbidade e mortalidade em pacientes em cuidados intensivos. Embora a pneumonia associada à ventilação (PAV) tenha sido objeto de investigações científicas há vários anos, bem menos atenção tem sido dada à traqueobronquite associada à ventilação (TAV), especialmente no que se refere aos fatores de risco de mortalidade. Este fato pode ser atribuído à relutância de muitas autoridades em considerar a TAV uma entidade clínica independente.1,2

OBJETIVO

Descrever as características microbiológicas e os fatores de risco para mortalidade de pacientes com traqueobronquite associada à ventilação em uma unidade de terapia intensiva.

MÉTODOS

Este estudo caso-controle foi realizado ao longo de um período de 6 anos em uma unidade de terapia intensiva (UTI) médico-cirúrgica de 40 leitos, com a mesma configuração espacial da UTI de um hospital privado terciário de São Paulo, Brasil. O estudo foi submetido à análise e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do hospital, sob o número CAAE: 04355112.1.0000.0071.

Os pacientes foram identificados utilizando-se o banco de dados do Comitê de Controle de Infecção Hospitalar. Para a análise dos fatores de risco, selecionaram-se pacientes controle da mesma instituição pareados na razão de 1:8,8, entre janeiro de 2006 e dezembro de 2011. Os pacientes controle foram pareados para seis características: sexo, idade (diferença máxima de 10 anos), tempo de ventilação mecânica (diferença máxima de 20 dias), utilização de traqueostomia, utilização de dois níveis de pressão positiva nas vias respiratórias (BiPAP) e número de dias na unidade de terapia intensiva (diferença máxima de 20 dias). Foram analisados os prontuários médicos de todos os pacientes e controles.

A TAV mecânica foi classificada de acordo com as definições dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC).3 Os microrganismos foram inicialmente identificados pelo Departamento de Microbiologia da instituição, por meio de cultura quantitativa do aspirado traqueal Unidade Formadora de Colônia (UFC) (≥1x106UFC/mL) ou espécimes de broncoscopia (≥1x104UFC/mL).

Todas as análises estatísticas foram realizadas utilizando-se o R Project for Statistical Computing, versão 3.1.1. As variáveis categóricas foram analisadas pelo teste χ2. As variáveis contínuas foram comparadas pelo teste de Wilcoxon-Mann-Whitney. A análise univariada foi realizada para os potenciais fatores de risco de mortalidade TAV, e as variáveis com valor de p menor que 0,15 foram incluídas no modelo multivariado. Considerou-se estatisticamente significativo valor bicaudal de p igual ou inferior a 0,05.

RESULTADOS

Entre janeiro de 2006 e dezembro de 2011, foram avaliados 40 episódios de TAV em 40 pacientes da unidade de terapia intensiva, e 354 pacientes de cuidados intensivos que não apresentaram traqueobronquite foram incluídos como Grupo Controle. As características demográficas e clínicas dos Grupos Caso e Controle são apresentadas na tabela 1.

Tabela 1 Análise univariada das características clínicas e demográficas de 40 episódios de traqueobronquite associada à ventilação mecânica e 354 indivíduos pareados no Grupo Controle 

Variável Grupo Caso (n=40) Grupo Controle (n=354) Valor de p
Idade média (variação), anos 67,8 (24-94) 62,8 (16-100) 0,133
Sexo masculino, (%) 62,5 62,7 0,979
Doença cardiovascular, (%) 60 53,4 0,428
Doença pulmonar, (%) 17,5 9,3 0,111
Doença oncológica, (%) 17,5 20,6 0,642
Paciente cirúrgico, (%) 40 27,4 0,098
Escore APACHE I, média (variação) 21,9 (0-44) 22 (7-48) 0,904
Duração da ventilação mecânica, média (variação), dias 21,9 (4-76) 11 (1-76) <0,001
Duração do BiPAP, média (variação), dias 2,6 (0-21) 1,6 (0-31) 0,132
Duração da traqueostomia, média (variação), dias 17,3 (0-92) 4,8 (0-117) <0,001
Período de internação na unidade de terapia intensiva, média (variação), dias 32 (5-88) 16,4 (1-251) <0,001
Período de internação, média (variação), dias 66,3 (15-265) 34,9 (1-623) <0,006

As variáveis categóricas foram analisadas por meio do teste χ2, e as variáveis contínuas foram comparadas pelo teste de Wilcoxon-Mann-Whitney.

APACHE I: Acute Physiology and Chronic Health Evaluation I; BiPAP: pressão positiva nas vias respiratórias em dois níveis.

Durante o período de estudo de 6 anos, 42 microrganismos foram identificados (5% foram infecções polimicrobianas), sendo que 88,2% de todos os microrganismos identificados eram Gram-negativos. A etiologia dos episódios TAV é mostrada na tabela 2.

Tabela 2 Etiologia dos 40 episódios de traqueobronquite associada à ventilação mecânica 

Agentes Infecções (%)
Pseudomonas aeruginosa 31,0
Klebsiella pneumoniae 19,0
Serratia marcescens 7,0
Staphylococcus aureus 7,0
Enterococcus faecalis 4,80
Enterobacter aerogenes 4,80
Acinetobacter baumannii 4,80
Stenotrophomonas maltophilia 4,80
Elizabethkingia meningoseptica 4,80
Achromobacter xylosoxidans 2,4
Citrobacter koseri 2,4
Providencia stuartii 2,4
Burkholderia pickettii 2,4
Acinetobacter lwoffii 2,4

Total 100

Encontramos níveis muito altos de resistência a antibióticos: 78,8% dos isolados de Staphylococcus aureus eram resistentes à meticilina; 52,5% dos isolados de Pseudomonas aeruginosa e 48,7% dos isolados de Klebsiella pneumoniae eram resistentes ao carbapenem. A taxa de mortalidade por TAV foi de 42,5%. Usando um modelo de regressão logística condicional (Tabela 3), foram encontrados os seguintes fatores independentes de risco para mortalidade em pacientes com TAV: pontuação do escore Acute Physiology and Chronic Health Evaluation I (APACHE I) (odds ratio – OR: 1,18 por unidade de pontuação; intervalo de confiança de 95% − IC95%: 1,05-1,38; p=0,01) e duração da ventilação mecânica (OR: 1,09 por dia de ventilação mecânica; IC95%: 1,03-1,17; p=0,004).

Tabela 3 Análise univariada e multivariada dos fatores de risco para mortalidade em pacientes com traqueobronquite associada à ventilação mecânica 

Variável Análise univariada Análise multivariada


OR IC95% OR IC95%
Idade média (variação), anos 1,05 1,01-1,10 - -
Sexo masculino 0,76 0,20-2,81 - -
Doença cardiovascular 1,41 0,39-5,33 - -
Doença pulmonar 4,37 0,80-33,99 - -
Doença intestinal 1,43 0,23-8,74 - -
Doença oncológica 0,17 0,01-1,19 - -
Paciente cirúrgico 1,66 0,46-6,15 - -
Escore APACHE I, média (variação) 1,14 1,03-1,29 1,18 1,05-1,38
Duração da ventilação mecânica, média (variação), dias 1,09 1,02-1,17 1,09 1,03-1,17
Duração do BiPAP, média (variação), dias 1,08 0,96-1,25 - -
Duração da traqueostomia, média (variação), dias 1,05 1,01-1,10 - -
Período de internação na unidade de cuidados intensivos, média (variação), dias 1,04 1,01-1,08 - -
Período de internação, média (variação), dias 0,99 0,97-1,00 - -

Teste estatístico: modelo de regressão logística condicional.

OR: odds ratio; IC95%: intervalo de confiança de 95%; APACHE I: Acute Physiology and Chronic Health Evaluation I; BiPAP: pressão positiva nas vias respiratórias em dois níveis.

DISCUSSÃO

A TAV é reconhecida como uma complicação frequente da ventilação mecânica, com índices variando de 3,7 a 11,5%, de acordo com a literatura.4,5 Além disto, dados mais recentes sugerem que o TAV pode contribuir para a necessidade de maior permanência na UTI e para a necessidade de um período mais longo de ventilação mecânica, tal como demonstrado no presente estudo. No entanto, há controvérsias na literatura em relação ao aumento da mortalidade estar ou não associado ao TAV.6

A mortalidade bruta no Grupo Caso foi de 42,5%, semelhante à encontrada na literatura, a qual variou de 21 a 55%.6,7 O escore APACHE I e a duração da ventilação mecânica foram fatores de risco independentes para mortalidade em nosso estudo, como já demonstrado em estudos sobre a PAV.8 No tocante ao escore APACHE I, para cada aumento de uma unidade na pontuação, houve aumento de 18% no risco de morte. Quanto à duração da ventilação mecânica, para cada aumento de 1 dia na ventilação mecânica, houve aumento de 9% no risco de morte. Faltam informações sobre os fatores de risco para mortalidade na TAV, talvez porque os componentes subjetivos de definição e diagnóstico da TAV podem afetar a confiabilidade e a precisão da identificação do caso. Além disto, o fato de tanto a TAV quanto a PAV apresentarem os mesmos fatores de risco para mortalidade pode reforçar a hipótese de que a TAV seja um estágio intermediário entre a colonização das vias aéreas superiores e a PAV.9

Em relação aos agentes etiológicos da TAV, os patógenos Gram-negativos foram a causa mais comum em muitos estudos, representando mais de 60% dos microrganismos isolados, semelhante ao encontrado em nosso estudo (88,2%). Nos últimos 5 anos, tem aumentado a incidência de TAV por patógenos multirresistentes, como bacilos Gram-negativos resistentes ao carbapenem (por exemplo, P. aeruginosa, Acinetobacter baumannii e K. pneumoniae) e S. aureus resistente à meticilina.10

Este estudo tem limitações dignas de nota. Em primeiro lugar, não podemos excluir com certeza a possibilidade de que alguns de nossos pacientes no Grupo Caso tenham sido classificados de forma incorreta, porque não realizamos rotineiramente exames de tomografia computadorizada de pulmão procurando infiltrados ocultos. Em segundo lugar, este é um estudo retrospectivo observacional, e outros fatores não mensurados podem ter ocorrido coincidentemente no período. Além disto, os dados provenientes de uma única unidade e o pequeno tamanho da amostra limitam a generalização dos achados.

CONCLUSÃO

Nosso estudo forneceu informações sobre os fatores de risco para mortalidade e as características microbiológicas da traqueobronquite associada à ventilação mecânica em um estudo durante 6 anos. Faz-se necessário um estudo mais aprofundado da traqueobronquite associada à ventilação mecânica, incluindo fatores de risco para mortalidade, a fim de definir as melhores práticas.

REFERÊNCIAS

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2. Craven DE, Hudcova J, Rashid J. Antibiotic therapy for ventilator-associated tracheobronchitis: a standard of care to reduce pneumonia, morbidity and costs? Curr Opin Pulm Med. 2015;21(3):250-9. Review.
3. Horan TC, Andrus M, Dudeck MA. CDC/NHSN surveillance definition of health care-associated infection and criteria for specific types of infections in the acute care setting. Am J Infect Control. 2008;36(5):309-32. Erratum in: Am J Infect Control. 2008;36(9):655.
4. Dallas J, Skrupky L, Abebe N, Boyle WA 3rd, Kollef MH. Ventilator-associated tracheobronchitis in a mixed surgical and medical ICU population. Chest. 2011;139(3):513-8.
5. Craven DE, Hjalmarson KI. Ventilator-associated tracheobronchitis and pneumonia: thinking outside the box. Clin Infect Dis. 2010;51 Suppl 1:S59-66. Review. Erratum in: Clin Infect Dis. 2010;51(9):1114.
6. Agrafiotis M, Siempos II, Falagas ME. Frequency, prevention, outcome and treatment of ventilator-associated tracheobronchitis: systematic review and meta-analysis. Respir Med. 2010;104(3):325-36. Review.
7. Nseir S, Di Pompeo C, Soubrier S, Lenci H, Delour P, Onimus T, et al. Effect of ventilator-associated tracheobronchitis on outcome in patients without chronic respiratory failure: a case-control study. Crit Care. 2005;9(3):R238-45.
8. Craven DE, Lei Y, Ruthazer R, Sarwar A, Hudcova J. Incidence and outcomes of ventilator-associated tracheobronchitis and pneumonia. Am J Med. 2013; 126(6):542-9.
9. Rodríguez A, Póvoa P, Nseir S, Salluh J, Curcio D, Martín-Loeches I; TAVeM group investigators. Incidence and diagnosis of ventilator-associated tracheobronchitis in the intensive care unit: an international online survey. Crit Care. 2014;18(1):R32.
10. Karvouniaris M, Makris D, Manoulakas E, Zygoulis P, Mantzarlis K, Triantaris A, et al. Ventilator-associated tracheobronchitis increases the length of intensive care unit stay. Infect Control Hosp Epidemiol. 2013;34(8):800-8.