versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.30 no.1 Rio de Janeiro jan./fev. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20170015
Apesar dos avanços na área, a doença arterial coronariana ainda é considerada "o flagelo do mundo moderno" e problema de saúde pública. É a principal causa de morte prematura na Europa e no mundo.
Neste estudo, nosso foco foi entender a evolução do processo aterotrombótico em pacientes com doença coronária sintomáticos, submetidos previamente à revascularização da artéria coronária: intervenção coronária percutânea (ICP) ou ponte de artéria coronária (CABG).1
A relação entre colesterol LDL (LDL-c) e a incidência de eventos cardiovasculares foi demonstrada por vários estudos epidemiológicos: CARDS2 ASPEN3 ASCOT.4 As novas diretrizes da Sociedade Europeia de Cardiologia (SEC) para prevenção de doença cardiovascular recomendaram um nível máximo de 70 mg/dL para colesterol de lipoproteína de baixa densidade (LDL-c) para pacientes com risco alto ou muito alto.5 Além disso, pacientes em tratamento com estatinas também podem apresentar risco muito alto para doenças cardiovasculares.5,6
Os estudos EUROASPIRE III e IV representam a evidência epidemiológica de que o controle de fatores de risco cardiovasculares modificáveis em pacientes com doença coronariana encontra-se ainda aquém do desejável.6,7
A hipótese de nosso estudo foi que um controle ineficaz dos fatores de risco cardiovasculares tem um efeito de longo prazo sobre a incidência de eventos cardiovasculares fatais e não fatais. O objetivo de nosso estudo foi avaliar a incidência de eventos cardiovasculares fatais e não fatais em pacientes com doença coronariana em tratamento com estatinas anos após revascularização da artéria coronária, seguindo os critérios do Programa de Prevenção de Doença Cardiovascular da SEC.5
Este é um estudo unicêntrico realizado no Instituto de Doenças Cardiovasculares de Timisoara, Romênia. Os critérios de inclusão seguiram o protocolo do estudo EuroAspire IV. Um total de 375 pacientes com doença coronariana consecutivos, com idade entre 18 e 80 anos e diagnóstico definitivo de revascularização por doença arterial coronariana (ICP, CABG) foram identificados retrospectivamente. Desses, 341 foram considerados elegíveis e 341 foram incluídos no estudo (Figura 1). Dados clínicos dos pacientes foram avaliados em três momentos - T0, quando a realização de revascularização com sucesso foi identificada; T1 (de 6 meses a 3 anos após revascularização do miocárdio), e T2 (de 3 a 5 anos após revascularização do miocárdio).
Os seguintes dados foram coletados a partir de um banco de dados eletrônico: dados de perfil lipídico - colesterol total (CT); triglicerídeos (TG); colesterol de lipoproteína de alta densidade (HDL-c); LDL-c; não-HDL, calculado subtraindo-se HDL-c do CT8 - número de eventos cardiovasculares fatais e não fatais, eventos cardiovasculares adversos importantes (MACE - major adverse cardiovascular events) - morte por doença cardiovascular, morte por outras causas, acidente vascular cerebral (AVC)/ ataque isquêmico transitório (AIT), estimulação elétrica por marca-passo, hospitalização para reintervenção - angioplastia coronária transluminal percutânea (ACTP) ou CABG, hospitalização por insuficiência cardíaca, diagnóstico de diabetes mellitus. O risco lipídico foi avaliado em T0 e T1, seguindo os critérios de prevenção da SEC.5 A taxa de eventos cardiovasculares fatais e não fatais foi analisada com base no risco lipídico potencial.
O acompanhamento dos pacientes foi realizado por um questionário validado para países que participaram do estudo EUROASPIRE IV.6 Na inclusão no estudo, usamos os protocolos pós-revascularização especificados nas diretrizes da SEC para prevenção secundária de doenças cardiovasculares (2012),9 adotadas pela Sociedade Romena de Cardiologia.
A análise estatística foi realizada pelo programa SPSS 17.0, incluindo 31 variáveis (numéricas e categóricas). A variável "tempo" foi calculada como a diferença entre a data em que o paciente foi submetido à revascularização à janeiro de 2015, quando eventos MACE foram detectados como "presentes" ou "ausentes". A normalidade das variáveis foi testada pelo teste de Shapiro-Wilk. Diferenças entre variáveis com somente duas categorias foram avaliadas pelo teste não paramétrico de Mann-Whitney. Um valor de p < 0.05 foi considerado como estatisticamente significativo.
Dos 375 pacientes consecutivos com doença coronariana, 341 (64,22 ± 8,90 anos, 81,52 % homens) foram incluídos no estudo. Características basais dos pacientes estão apresentadas na Tabela 1.
Características | |
Idade média (anos) | 64,22 ± 8,90 |
Homens | 81,52 % |
Índice de Massa Corporal, kg/m2 | 30,47 ± 7,41 |
Eventos cardiovasculares | |
- Morte por doença cardiovascular | 0 |
- Morte por outras causas | 1,17 |
- Reestenose | 0,9 |
- AVC/AIT | 0,29 |
- Implante de marca-passo | 0,87 |
- Novo by-pass | 1,46 |
- Novo stent | 0,87 |
- Insuficiência cardíaca | 1,46 |
- Diagnóstico recente de diabetes mellitus | 0,87 |
Ejection fraction* | 47,56 ± 8,8 |
AVC: acidente vascular cerebral; AIT: ataque isquêmico transitório
Em T0, 52,5% dos paciets haviam sido submetidos à CABG, 43.1% à ICP, e 4,4% a ambos os procedimentos. Na inclusão no estudo, havia uma alta prevalência de fatores de risco cardiovasculares modificáveis (Tabela 1.1).
Variável | % |
Hipertensão arterial/medicamento | 27,56/54,25 |
Índice de Massa Corporal > 30 kg/m2 | 36,07 |
Hipercolesterolemia / medicamento | 59,82/94,8 |
Diabetes / medicamento | 78,59/82,23 |
Tabagismo | 48 |
Variável | n = 341 | |
---|---|---|
LDL-c < 80 | mg/dL | 23,8% |
Não HDL-c < 110 | mg/dL | 30,8% |
Em T1, 76,2% dos participantes tinham valores de LDL-c ≥ 80 mg/dL. Somente 5% dos pacientes submetidos à revascularização e em uso de estatinas alcançaram os valores de LDL-c recomendados pela SEC.5,10,11
Limite desejável de não-HDL-c (alvo secundário para prevenção de doença cardiovascular e risco residual: utilizando um limite desejável de níveis de não-HDL-c < 110 mg/dL, observamos que 30,8% dos pacientes no T0 e 34,9% dos pacientes em T1 atingiram esses níveis (p = ns). Não foi encontrada diferença estatisticamente significativa entre os valores médios de não-HDL em T0 (135,2 ± 44,95 mg/dL) em T1 (129,13 ± 40,9 mg/dL).
Taxas de MACE e risco cardiovascular pós-revascularização: a taxa de MACE em T2 foi de 7,9% em um tempo de acompanhamento mediano de 4,33 anos.
Houve uma associação significativa positiva entre alvo primário de prevenção (LDL-c) em T1 e MACE (p = 0,039, teste do qui-quadrado, IC 95%) (Tabela 3). Além disso, houve uma diferença significativa nos valores médios de HDL-c entre as categorias de MACE em T1 (p = 0,02, teste de Kruskal Wallis, IC 95%) (Figura 2).
Tabela de contingência | ||||
Valores | LDLc_T1categ | Total | ||
.00 | 1.00 | |||
MACE_T2 | 0 | 225 | 89 | 314 |
2 | 2 | 2 | 4 | |
3 | 0 | 3 | 3 | |
4 | 1 | 0 | 1 | |
5 | 1 | 2 | 3 | |
6 | 5 | 0 | 5 | |
7 | 2 | 1 | 3 | |
8 | 2 | 3 | 5 | |
9 | 3 | 0 | 3 | |
Total | 241 | 100 | 341 | |
Testes de qui-quadrado | ||||
Valor | df | Asymp. Sig. (2-sided) | ||
Qui-quadrado de Pearson | 16.247a | 8 | .039 | |
Razão de verossimilhança | 18.328 | 8 | .019 | |
Associação linear | .394 | 1 | .530 | |
No de casos válidos | 341 |
a16 células (88.9%) tiveram valor esperado < 5. O valor mínimo esperado foi 0,29.
A taxa de reestenose foi de 0,9%, a qual foi significativamente influenciada por não-HDL-c médio (p = 0,04, teste de Mann-Whitney, IC 95%).
A incidência de insuficiência cardíaca, definida pelo valor de fração de ejeção foi significativamente maior em pacientes com níveis de não-HDL-c elevados, apesar do uso de estatinas, em T1 (p = 0,007, teste de Mann-Whitney, IC95%).
Casos recentemente diagnosticados de diabetes foram significativamente mais frequentes em pacientes com níveis aumentados de não-HDL-c no T1 (p = 0,017, teste de Mann-Whitney, IC95%).
Não houve diferença significativa entre a incidência de MACE e no tipo de procedimentos de revascularização.
Nosso estudo demonstra um risco cardiovascular em paciente com doença coronariana após 4,33 anos de revascularização do miocárdio.
Os medicamentos prescritos em associação com estatinas foram agregantes plaquetários, betabloqueadores, inibidores da enzima de conversão da angiotensina e bloqueadores do receptor de angiotensina II, de acordo com as diretrizes da SEC para prevenção secundária de doença cardiovascular.
A análise da relação entre o uso de medicamentos e o alcance dos valores desejáveis dos fatores de risco modificáveis foram publicados por nosso grupo anteriormente.9 Redução da pressão sanguínea por medicamento foi observado em 39,6% dos pacientes incluídos no presente estudo; risco cardiometabólico foi reduzido com o uso de dose máxima de estatina. Apesar de os níveis desejados de LDL haverem sido alcançados em apenas 5% dos pacientes, melhores resultados foram observados nos níveis de não-HDL-c.
O elevado risco metabólico nesses pacientes com doença coronária é corroborado pela presença de dislipidemia e alta incidência de diabetes em T1, o que justifica a implementação de medidas energéticas que objetivem mudanças de estilo de vida associado ao uso de medicamentos apropriados em pacientes submetidos à revascularização.
Em nosso estudo, não foi avaliada a adesão dos pacientes a programas de recuperação pós-revascularização, o que contribuiria à interpretação de nossos resultados. Uma baixa adesão a esses programas e a abordagens de prevenção a eventos cardiovasculares pode estar relacionada ao desenvolvimento de aterotrombose nesses pacientes, e pode explicar a taxa de eventos (7,9%) em T2 e tempo de sobrevida mediana de 4,33 anos em nossos pacientes. Seria interessante que outros estudos que avaliassem a adesão dos pacientes a essas abordagens fossem realizados.
Nosso estudo reforça a necessidade de estratégias para controlar fatores de risco cardiovasculares modificáveis.9,12,13 Apesar do uso de medicamentos, pacientes submetidos à revascularização do miocárdio permanecem em riso de eventos cardiovasculares relacionados à progressão de aterosclerose e doenças metabólicas.9,11
Resultados do estudo EUROASPIRE IV6 destaca que as recomendações das Diretrizes das Sociedades Europeias para Prevenção Cardiovascular (Joint European Societies Guidelines on Cardiovascular Prevention) são seguidas em uma pequena parcela dos pacientes com doença coronária na Europa. Em nosso estudo, apenas uma pequena porcentagem dos pacientes atingiram as recomendações da ESC para os níveis de LDL-c.10,11 Apesar de as estatinas estarem prescritas a quase 95% dos pacientes em T1, os níveis desejáveis de LDL-c não foram alcançados por sua maioria.
Reiner et al.13 enfatizaram a necessidade de se reduzir os níveis de LDL-c após ocorrência de evento cardiovascular para reduzir mortalidade e morbidade de doenças cardiovasculares.13 Outros sugeriram várias razões pela baixa resposta durante o tratamento com estatinas - dose inadequada, não adesão à dose prescrita, resistência e/ou intolerância à estatina, e efeitos colaterais.14,15 Contudo, nossos resultados confirmaram a associação entre níveis aumentados de LDL-c com taxas de eventos cardiovasculares.
Gostaríamos de saber se é possível predizer o risco residual relacionado ao perfil lipídico em pacientes com doença coronariana, submetidos à revascularização em uso de estatinas. Foram observadas diferenças significativas nos valores médios de HDL-c e taxas de MACE em T2 comparado a T0 e T1. Além disso, ambos correlacionaram-se à taxa de reestenose, prevalência de insuficiência cardíaca e incidência de diabetes. As diretrizes da SEC e Sociedade Europeia de Aterosclerose (SEA) recomendam o uso do não-HDL-c como alvo secundário, especialmente em pacientes com doença coronariana e diabetes mellitus.11,14-16 Parece que o não-HDL-c seria um melhor preditor que o LDL-c na formação de placa aterosclerótica instável.17
Reiner et al. relataram que 12.2% dos pacientes em que os valores desejáveis de LDL-c foram atingidos apresentaram níveis elevados de não-HDL-c. Em nossa amostra, 7,33% dos pacientes apresentavam níveis de HDL-c > 110 mg/dL e LDL-c<80 mg/dL após revascularização do miocárdio.
As diretrizes da SEC e SEA recomendam que pacientes com tais mudanças no perfil lipídico devem ser identificados e tratados quando necessário.18-20
Nosso estudo tem algumas limitações. Primeiro, as características basais dos participantes foram definidos em um estágio relativamente tardio da doença arterial coronariana, i.e., somente no momento de revascularização do miocárdio. Além disso, é possível que haja ocorrido um viés na seleção da amostra, uma vez que somente pacientes tratados no Instituto de Doenças Cardiovasculares de Timisoara foram incluídos. O instituto é um centro especializado e, portanto, os resultados não podem ser generalizados a todos os pacientes com revascularização do miocárdio prévia. Contudo, observamos diferenças relativamente pequenas entre nossos resultados e aqueles encontrados em outros estudos europeus anteriores.16-21
O estudo destaca a necessidade de se controlar fatores de risco relacionados ao perfil lipídico após procedimentos de revascularização do miocárdio, mesmo em longo prazo, a fim de minimizar o risco de eventos cardiovasculares em pacientes com doenças coronarianas.