versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.2 São Paulo abr./jun. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao1932
Quimioterapia em altas doses, associada à coleta de células-tronco hematopoiéticas (CTH), vem sendo utilizada com sucesso no tratamento de várias doenças malignas e não malignas(1). Células-tronco mobilizadas no sangue periférico (CTHSP) tornaram-se a fonte preferencial para transplante autólogo(2). As vantagens das CTHSP comparadas às das células-tronco de medula óssea incluem uma recuperação hematopoiética mais rápida e melhor reconstituição imunológica, com um processo de coleta relativamente fácil(3).
A obtenção de enxertia rápida e mantida depende do número de CTH infundidas. Uma associação significativa entre o total infundido de células CD34+ e boa recuperação hematológica tem sido descrita na literatura, indicando que a coleta de um número adequado dessas células é fator-chave para o sucesso da enxertia(4). Dados de literatura corroboram que enxertia consistente ocorre em pacientes que receberam pelo menos 2 × 106 CD34+/kg peso(5,6).
As estratégias clássicas de mobilização de CTHSP incluem a administração de fator de crescimento hematopoético (G-CSF), isoladamente ou em combinação com quimioterapia mielossupressora, ou outras citocinas(2,7–10). CTHSP para auto-transplante são geralmente colhidas por leucaférese durante a fase de recuperação hematológica pos quimioterapia e/ou administração de agentes mobilizadores. Entretanto, a cinética da concentração de células CD34+ no sangue periférico varia de um paciente para outro e conforme o esquema de quimioterapia utilizado(7). O momento de início da coleta após a mobilização é crucial para otimizar o rendimento de CTHSP. Fatores preditivos sugeridos para o início da leucaférese incluem a contagem de leucócitos, células mononucleares, plaquetas e células CD34+ no sangue periférico(6,7,11). A contagem de células CD34+ no sangue periférico no primeiro dia de coleta ≥10 a 20 × 103/mL é o marcador indireto mais utilizado para iniciar a coleta de CTHSP(12).
O esquema adequado para a coleta de CTHSP ainda não está definido. O procedimento padrão ou leucaférese de volume normal (LVN) geralmente processa 2,5 a 3 vezes o volume sanguíneo total do paciente (VST), enquanto na leucaférese de grande volume (LGV), processa-se 3 a 6 vezes o VST do paciente. A LGV é considerada estratégia segura e eficaz para otimizar o rendimento da coleta de CTHSP, especialmente em pacientes com baixa contagem de CD34+ no sangue periférico(13–18).
Infelizmente, de 5 a 40% dos pacientes submetidos a coleta de CTHSP não conseguem atingir a dose de 2 × 106 CD34+ células/kg numa única tentativa de mobilização. Esses pacientes são chamados “mau mobilizadores ”. A identificação de fatores que afetam o rendimento de CTHSP tem sido objeto de vários estudos. Idade e sexo do paciente, intervalo desde o último tratamento quimioterápico, comprometimento de medula óssea, diagnóstico e estadio clínico da doença, irradiação prévia, número e esquemas quimioterápicos prévios e febre de origem desconhecida foram associados a má mobilização de CTHSP. Entretanto, até o momento não há fatores específicos que identifiquem um “mau mobilizador”(7,19–20).
Avaliar fatores que afetam o rendimento de CTHSP em análise retrospectiva de pacientes submetidos a LGV para a coleta de CTHSP para auto transplante.
Os dados de 304 doadores consecutivos de CTHSP mobilizados com G-CSF, associado ou não à quimioterapia, no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) entre Fevereiro de 1999 e Junho de 2010, foram analisados de forma retrospectiva. A mobilização de CTH incluiu três esquemas: 4 g/m2 de ciclofosfamida associada a G-CSF (Granulokine, Roche, Reinach, Suíça) 10 mg/kg peso corpóreo; G-CSF 10 mg/kg peso corpóreo; ou quimioterapia específica para a doença, seguido de estimulação diária com G-CSF 10 mg/kg peso corpóreo.
Após mobilização com quimioterapia, hemograma completo foi realizado diariamente e a determinação de células CD34+ no sangue periférico quando a leucometria atingia ≥1.000 células/mL. Nos pacientes mobilizados só com fator de crescimento, hemograma e contagem de células CD34+ foram realizados a partir do quarto dia de administração de G-CSF. A coleta de CTHSP foi iniciada com a contagem de células CD34+ do sangue periférico acima de 10 células/mL.
Leucaférese para coleta de CTHSP foi realizada através de um separador de células de fluxo contínuo (Spectra, Caridian BCT, Lakewood, CO, EUA) com protocolo auto-PBSC ou MNC. Coletas diárias foram realizadas com o objetivo de atingir o alvo de ≥2 × 106 CD34+células/kg peso corpóreo para cada paciente. LGV com o processamento de quatro vezes o VST do paciente foi utilizada para otimizar o rendimento de CD34+ por procedimento. Um cateter venoso central foi inserido quando o paciente não apresentava acesso venoso com calibre adequado para a coleta por aférese. A anticoagulaçao do circuito extracorpóreo foi feita com solução de citrato de sódio (ACD-A), numa proporção que variou de 1:13 a 1:16. Todos os pacientes receberam reposição profilática de cálcio e potássio durante a leucaférese. Os produtos celulares coletados foram congelados em dimetilsulfóxido (DMSO) e armazenados em nitrogênio líquido ou em um freezer mecânico abaixo de –1300°C.
O total de células CD34+ foi determinado no sangue periférico e no produto da leucaférese por citometria de fluxo, como descrito anteriormente(21). Resumidamente, células mononucleares foram coradas com anti-CD34+ conjugado com ficoeritrina (anti-HPCA 2) e contracoradas com anti-CD45 conjugado com isotiocianato de fluoresceína. As células foram analisadas por classificação ativada por fluoresceína (Coulter® Epics XL-MCL™ Flow Cytometer, Beckman Coulter, Brea, CA, EUA). Para cada amostra, analisamos 100.000 eventos.
O objetivo da coleta foi obter pelo menos 2 × 106 CD34 células/kg peso corporal. Desta forma, a coleta foi considerada bem sucedida quando este alvo foi atingido com até três LGV consecutivas. Os fatores pré-mobilização analisados incluíam idade e sexo do paciente, além do diagnóstico. Os parâmetros pós-mobilização avaliados foram: contagem pré-aférese de leucócitos, células imaturas circulantes, células mononucleares e células CD34+ no sangue periférico, além de contagem de plaquetas e nível de hemoglobina.
Todos os dados foram analisados por meio do programa estatítico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS, Chicago, IL, EUA). Análise de regressão logística com abordagem uni e multivariada foi utilizada para avaliar os efeitos dos fatores pré e pós-mobilização sobre a eficiência da coleta de CTHSP. As variáveis p < 0,10 na análise univariada foram incluidas na multivariada. Um valor de p < 0,05 foi considerado estatisticamente significante.
No período do estudo, 304 pacientes foram submetidos a 312 tentativas de mobilização. Os dados demográficos dos pacientes estão descritos na tabela 1. A LGV foi feita em 283 adultos e em 21 pacientes pediátricos, com idade média de 46 anos (variação de 3 a 73 anos). O grupo de pacientes com linfoma incluia 95 com linfoma não Hodgkin e 19 com doença de Hodgkin recidivada. Esclerose múltipla foi o diagnóstico mais prevalente entre os pacientes com doença autoimune. Outras doenças onco-hematológicas incluíam leucemia aguda que não leucemia mieloide aguda (LMA), leucemia crônica e síndrome mielodisplásica.
Tabela 1 Características clínicas de doadores de células-tronco hematopoéticas de sangue periférico para auto transplante
Número de pacientes | 304 | |
Idade (anos)* | 46 ± 16 (3-73) | |
Sexo | ||
Masculino | 176 (58%) | |
Feminino | 128 (42%) | |
Diagnóstico | ||
Linfoma | 114 (38%) | |
Mieloma múltiplo | 68 (22%) | |
Doença autoimune | 37 (12%) | |
Leucemia mieloide aguda | 33 (11%) | |
Tumor sólido | 31 (10%) | |
Outras doenças hematológicas | 21 (07%) | |
Peso (kg)* | 73 ± 96 (13-143) | |
Volume sanguíneo total (mL)* | 4.578 ± 1.023 (927-7.714) |
*média ± desvio padrão (variação)
Foi realizado um total de 573 LGV, com média de 2 (variação de 1 a 8) leucaféreses por paciente. O alvo de CTH (≥2 × 106 CD34+ células/kg peso corpóreo) foi obtido em 275/312 (88%) tentativas de mobilização. Desta forma, em 37/312 (12%) desses ciclos de mobilização o alvo não foi atingido. A incidência de rendimento baixo de CTH de acordo com o diagnóstico do paciente está descrita na tabela 2.
Tabela 2 Incidência de baixo rendimento de CD34+ (< 2 × 106 células CD34+/ kg peso corpóreo) em 312 tentativas de mobilização para coleta de CTHSP para auto-transplante
Doença | Células CD34+/kg peso corpóreo | |
---|---|---|
≥ 2 × 106 | < 2 × 106 | |
Linfoma | 106 (92%) | 9 (8%) |
Mieloma múltiplo | 67 (92%) | 6 (8%) |
Doença autoimune | 36 (97%) | 1 (3%) |
Leucemia mieloide aguda | 24 (73%) | 9 (27%) |
Tumor sólido | 25 (81%) | 6 (19%) |
Outras doenças hematológicas | 17 (74%) | 6 (26%) |
Os fatores associados a um baixo rendimento de células CD34+ na análise univariada estão listados na tabela 3. Os fatores pré-mobilização que afetaram de forma significante o rendimento de CD34+ foram LMA (p= 0,017) e outras doenças hematológicas (p = 0,023). Fatores pós-mobilização significantes incluiam: células imaturas circulantes (p = 0,001), granulócitos (p = 0,002), nível de hemoglobina (p = 0,016) e contagem de células CD34+ (p < 0,001) no sangue periférico no primeiro dia de coleta. Entretanto, na análise multivariada, a contagem de células CD34+ no sangue periférico (p < 0,001) foi o único fator independente significantemente associado ao baixo rendimento de CTH (Tabela 4).
Tabela 3 Fatores associados a baixo rendimento de células CD34+ na análise univariada
Variável | OR | Intervalo de confiança de 95% | Valor p | |
---|---|---|---|---|
Paciente | ||||
Idade | 0,999 | (0,978; 1,020) | 0,899 | |
Sexo Feminino | 0,834 | (0,412; 1,691) | 0,615 | |
Diagnóstico | ||||
Linfoma | 3,057 | (0,374; 24,968) | 0,184 | |
Mieloma múltiplo | 3,224 | (0,374; 27,826) | 0,287 | |
Leucemia mieloide aguda | 13,500 | (1,605; 113,552) | 0,017* | |
Tumor sólido | 8,640 | (0,989; 76,251) | 0,052 | |
Outras doenças hematológicas | 12,706 | (1,416; 114,004) | 0,023* | |
Dados pré-aferese | ||||
Leucócitos no SP | 0,999 | (0,981; 1,017) | 0,890 | |
Células imaturas no SP | 0,839 | (0,758; 0,928) | 0,001* | |
Granulócitos no SP | 1,051 | (1,019; 1,084) | 0,002* | |
Células mononucleares no SP | 0,983 | (0,955; 1,013) | 0,274 | |
Contagem de plaquetas no SP | 0,999 | (0,995; 1,003) | 0,734 | |
Nível de hemoglobina no SP | 1,261 | (1,045; 1,521) | 0,016* | |
Células CD34+ no SP | 0,836 | (0,978; 1,020) | <0,001* |
*O valor de p < 0,05 foi considerado estatisticamente significante.
OR: Odds ratio; SP: sangue periférico.
Tabela 4 Fatores associados a baixo rendimento de células CD34+ na análise multivariada
Variável | OR | Intervalo de confiança de 95% | Valor p | |
---|---|---|---|---|
Diagnóstico | ||||
Leucemia mieloide aguda | 0,688 | (0,053; 9,020) | 0,776 | |
Tumor sólido | 0,543 | (0,037; 8,058) | 0,657 | |
Outras doenças hematológicas | 0,396 | (0,026; 6,100) | 0,506 | |
Dados pré-aferese | ||||
Células imaturas no SP | 0,998 | (0,872; 1,142) | 0,981 | |
Granulócitos no SP | 1,038 | (0,984; 1,096) | 0,172 | |
Nível de hemoglobina no SP | 1,240 | (1,946; 1,626) | 0,119 | |
Células CD34+ no SP | 0,831 | (0,769; 0,897) | <0,001* |
*O valor de p < 0,05 foi considerado estatisticamente significante.
OR: Odds ratio; IC95%: intervalo de confiança de 95%; SP: sangue periférico.
As CTH podem ser mobilizadas para a circulação pela ação de fatores de crescimento hematopoético (G-CSF), quimioterapia ou ambos. Os fatores que afetam o rendimento da coleta de CTH tem sido amplamente estudados e ainda não são plenamente conhecidos. Variáveis associadas a um baixo rendimento já descritas incluem idade avançada, determinadas doenças, número e duração de tratamentos quimioterápicos prévios, infiltração da medula óssea, radioterapia prévia, baixa contagem de plaquetas pré-mobilização, intervalo curto entre o último ciclo de quimioterapia e a mobilização, baixa contagem de CFU-GM na medula óssea prémobilização, esquemas inadequados de mobilização e/ ou baixa dose de G-CSF(7). Entretanto, uma conclusão definitiva a partir desses estudos não é possível devido à heterogeneidade da população de pacientes e as diferentes características de suas doenças(22).
Nesse estudo, 88% dos pacientes atingiram o alvo desejado de CTH. Esse resultado é similar ao descrito recentemente por Wuchter et al.(23). O efeito da idade do paciente sobre o rendimento de CTH foi avaliado em vários estudos, com resultados contraditórios(4,7,24). Idade e sexo do paciente não afetaram o rendimento de células CD34+ em nosso estudo. Os mesmos achados foram descritos por Wuchter et al.(23). Em contraste, idade abaixo de 38 anos e sexo masculino estiveram associados a um bom rendimento de CTH em doadores saudáveis de CTH(7).
O papel do diagnóstico em pacientes nos quais houve falha na mobilização de CTH também já foi descrito. A leucemia aguda já foi associada a um baixo rendimento de CTH quando comparada a outras doenças hematológicas malignas(2,4,25). No nosso estudo tanto a leucemia mieloide aguda quanto outras doenças hematológicas afetaram negativamente o rendimento de CTH na análise univariada. Uma possível explicação poderia ser o fato de que o segundo grupo incluiu vários pacientes com doenças refratárias ou recidivadas. Esses pacientes podem ter recebido mais ciclos de quimioterapia antes da mobilização de CTH, um fator que afeta negativamente o rendimento de CTH(23). Entretanto, esses diagnósticos não foram estatisticamente significantes na análise multivariada.
Os fatores pós-mobilização que afetam o rendimento de CTH já descritos incluem células mieloides imaturas circulantes, granulócitos e concentração de células C34+ no sangue periférico no primeiro dia de coleta(7,16). Em nosso estudo, células imaturas circulantes, concentração de granulócitos no sangue periférico, nível de hemoglobina e concentração de células CD34+ foram significantemente associados ao rendimento de CTH na análise univariada. Entretanto, essa associação não foi significante na análise multivariada, exceto para contagem de células CD34+ no sangue periférico(11). Um alto valor preditivo da contagem de células CD34+ no sangue periférico para o rendimento de CTH nos produtos de aférese tem sido descrito (11,26).
As limitações desse estudo retrospectivo incluem a heterogeneidade da população de pacientes, o estadio clínico da doença e diferentes esquemas de mobilização. Outra questão é a falta de informação sobre o número total de ciclos de quimioterapia e os agentes usados antes da mobilização. Tratamento quimioterápico prolongado e agentes alquilantes já foram descritos como fatores preditivos associados a baixo rendimento de CTH(8,19,22–24).
Neste estudo, a contagem de células PB CD34+ no sangue periférico foi o único fator estatisticamente significante associado ao rendimento de CTH nos pacientes submetidos a LGV para coleta de CTHSP para auto-transplante.