versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.107 no.5 São Paulo nov. 2016
https://doi.org/10.5935/abc.20160150
A Febre reumática (FR) e a cardiopatia reumática (CR) permanecem como problemas importantes de saúde nas populações de países em desenvolvimento.1 O número de estudos é escasso, e o investimento público e privado são praticamente inexistentes. Além disto, os casos de febre reumática são subdiagnosticados, sendo reconhecidos apenas após dano valvar permanente através da manifestação de cardite, representado mais frequentemente pela estenose mitral.2
Nos países de alta renda, uma amigdalite é apenas uma "infecção de garganta". Entretanto, em países em desenvolvimento, ou mesmo de renda média, como é o caso do Brasil, pode ser prenúncio de cardiopatia reumática, uma doença que mata aproximadamente 233.000 a 500.000 portadores de FR/CR por ano no mundo.2 Segundo projeção da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que anualmente no Brasil ocorram cerca de 10 milhões de faringoamigdalites estreptocócicas, perfazendo o total de trinta mil novos casos de FR, dos quais até a metade pode evoluir com acometimento cardíaco.3
O grande vilão é o estreptococo do grupo A (Streptococcus pyogenes ), que desencadeia uma série de reações patológicas que se inicia, habitualmente, pela faringite, e é seguida, em alguns casos, por febre reumática aguda, cujo desfecho pode resultar na degeneração da válvula cardíaca.2 Segundo Srinath Redd, ex-presidente da "World Heart Federation" (WHF), a cardiopatia reumática é um marcador de desigualdade, injustiça social, e de abandono de inúmeras populações vivendo na pobreza. Nos últimos anos, grupos de defesa incluindo a WHF estão se esforçando para retificar esta desigualdade.4
A negligência se manifesta na relativa falta de engajamento no controle da doença por parte dos governos, sociedade e agências de fomento. O número de publicações acadêmicas entre 1996 e 2006 eram 66% menores do que entre 1966 e 1976.5
A FR foi responsável por 5,1 milhões de anos potenciais de vida perdidos ajustados para incapacidade (do inglês DALYs - "disability-adjusted life years"), resultantes de 280.000 mortes, em 2004, tendo sido a sétima e oitava causas de mortalidade e de morbidade por doenças negligenciadas, respectivamente. No entanto, o relatório G-Finder em pesquisa e desenvolvimento para doenças negligenciadas identificou apenas quatro organizações que investiram nesta enfermidade nos últimos 4 anos.5 O financiamento é desproporcional quando comparado com as demais doenças negligenciadas. Os institutos públicos de pesquisas contribuíram com 91,4% dos fundos e organizações filantrópicas, com 8,6%. Já o financiamento da indústria farmacêutica foi insignificante.5
O diagnóstico tardio se deve ao fato de que o estetoscópio é a única ferramenta não invasiva disponível aos médicos em locais remotos de baixo nível socioeconômico onde a FR e a CR são mais prevalentes. Entretanto, a frequência de detecção de cardite reumática através da ausculta cardíaca é usualmente baixa e dependente de fatores como experiência do examinador.6 O ecodopplercardiograma mostrou ser mais sensível e especifico do que a ausculta cardíaca na detecção precoce de FR e CR,7 mas encontra-se ainda pouco disponível em locais de baixa renda.
Marijon et al.7 realizaram ecocardiografia portátil em escolares de Moçambique e Camboja e observaram uma taxa de detecção dez vezes superior à ausculta. A prevalência da cardite subclínica foi, então, documentada em diversos estudos pelo mundo. A maior prevalência citada foi entre crianças em idade escolar no Tongo (3,3%), seguida por Moçambique (3,0%), Camboja (2,2%), aborígenes Australianos (2,2%), Zaire (1,4%) e Namíbia (1,2%). A prevalência de 6,7% foi estimada no Vietnam.8 Os critérios ecocardiográficos para diagnóstico de cardite reumática foram unificados pela WHF em 2012 com intuito de uniformização das publicações.9
Os achados ecocardiográficos se dividem em 3 categorias: CR definitiva, CR limítrofe e normais.9 A história natural dos pacientes classificados como tendo CR definitiva sem história prévia de febre reumática aguda e limítrofe são incertas. Caso eles sejam variantes da cardiopatia reumática, não se sabe ao certo se a profilaxia secundária irá prevenir a progressão da doença como ocorre com os pacientes diagnosticados pelo método "tradicional". Os casos falsos positivos podem ter um impacto prejudicial nos indivíduos e suas famílias, além de serem um ônus para o sistema de saúde.10
A definição de cardiopatia reumática subclínica segundo a WHF é alteração funcional ou estrutural do coração ao ecocardiograma, consistente com cardiopatia reumática na ausência de um sopro cardíaco patológico.11
O prognóstico da CR é diretamente associado com a gravidade da cardite inicial e ataques recorrentes. Aproximadamente 60% dos pacientes que desenvolvem insuficiência cardíaca durante o primeiro surto terão alguma doença valvar nos próximos 10 anos. Entretanto, mesmo estes pacientes têm uma grande chance de melhora e até mesmo regressão da lesão cardíaca se for realizada profilaxia secundária adequada.
A maioria dos pacientes que se matriculam em programas de saúde são indivíduos sintomáticos com doença avançada, indicando que eles tiveram ataques silenciosos ou indetectáveis de FR aguda, portanto, não diagnosticados nos surtos iniciais.
O custo da realização de ecodopplercardiograma e a dificuldade de acesso a este procedimento faz com que a doença seja subdiagnosticada em seu estágio inicial, progredindo para danos valvares irreversíveis com necessidade de cirurgia para troca valvar.12
Entretanto, os gastos gerados pela assistência aos pacientes com FR e cardite no Brasil são muito mais significativos. Assim, em 2007, foram destinados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) cerca de R$150 milhões em internações decorrentes de FR. Foram também relatados gastos de R$94 milhões, em 2005 e de R$100 milhões, em 2007, em procedimentos intervencionistas, cirurgias e valvotomias percutâneas por sequelas cardíacas da FR.3
Além disto, a dificuldade em diagnosticar a FR aguda se deve a diversos outros fatores, tais como ausência de marcadores laboratoriais específicos, apresentações clínicas atípicas de envolvimento articular, baixa disponibilidade de ecodopplercardiograma nas áreas onde ele é mais necessário, além da baixa sensibilidade dos critérios de Jones. Todos estes contribuem para o subdiagnóstico desta patologia.13
O surgimento de programas de triagem ecocardiográfica revelou que a cardiopatia reumática pode ser consideravelmente mais prevalente do que se imaginava entre crianças em idade escolar nos paises em desenvolvimento. Estas evidências epidemiológicas mostram claramente um relacionamento entre a incidência de febre FR aguda e CR. Entretanto, há poucas estimativas confiáveis da incidência e prevalência de Febre Reumática aguda nos paises em desenvolvimento, inclusive no Brasil. A elevada prevalência de cardiopatia reumática citada em diversos estudos nos leva a especular que a incidência de FR aguda é muito maior do que a anteriormente estimada.14
O quadro apresentado acima retrata a necessidade da criação de programas governamentais com apoio da iniciativa privada para estabelecer a prevalência da febre reumática em nossa população e desenvolver grupos de estudos e combate desta patologia devastadora. Esta iniciativa está sendo realizada na Australia com apoio internacional da "World Heart Federation" e Organização Mundial da Saúde com grande sucesso.
Assim, iniciaremos um estudo para avaliação da cardite reumática e cardiopatia reumática subclínica em amostra probabilística representativa de crianças de 5 a 15 anos, moradoras da periferia da zona Sul, na cidade de São Paulo, numa parceria entre o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (InCor), Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein e o centro de estudos e pesquisas Dr. João Amorim (CEJAM). Neste estudo, as crianças serão avaliadas clinicamente e por ecocardiografia portátil de acordo com os critérios da WHF. Serão selecionados três grupos: controle (sem evidência de atividade reumática), possível atividade reumática ('borderline') e atividade reumática definitiva. Estudos de genética, análise de HLA e/ou perfil de susceptibilidade imunológica serão comparados nos três grupos, a fim de identificarmos qual o padrão de susceptibilidade ao desenvolvimento de doença reumática após infecção pelo Streptococcus pyogenes.
Finalmente, a vacina para febre reumática está em desenvolvimento em alguns países.15 O Brasil contribui com a possibilidade de uma vacina, atráves de estudos de desenvolvimento do peptídeo específico em execução há aproximadamente 20 anos no InCor, que, por sua vez, resultou em projeto de estudo clínico de fase I/IIa, com ínicio em 2017. O sucesso de uma vacina neste cenário representa grande esperança para a nossa população menos privilegiada.