versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.9 Rio de Janeiro set. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017229.22732015
A violência de gênero, fato social de elevada frequência, ocorre em um continuum que tem como consequência mais grave a morte da mulher. O femicídio foi conceituado como assassinato de mulheres devido ao fato de serem mulheres, um tipo de crime definido por Diana Russel1 como terrorismo sexual, um mecanismo social para manter as mulheres sob controle, em uma manifestação masculina pública de poder2.
Na incorporação do conceito original de Russel, houve países que adotaram o termo femicídio e outros que optaram pela designação feminicídio. No Brasil é utilizado o termo feminicídio e ocorreu recentemente a tipificação legal deste tipo de crime, acompanhando a legislação de países da América Central e do Sul, como Costa Rica, Chile, Guatemala e El Salvador3.
A cultura e as hierarquias de gênero presentes em sociedades patriarcais, além da violência estrutural, são fatores determinantes do feminicídio4. A frequência de feminicídios é maior quando há iniquidades sociais, conflitos armados, migração, discriminações de gênero e exercício de masculinidade hegemônica e agressiva5-7.
Os feminicídios podem ser categorizados como íntimos, quando o autor é um homem conhecido da mulher; não íntimos com ou sem violência sexual; por conexão, em que uma ou várias mulheres são mortas na defesa de outras e execuções de mulheres perpetradas por gangues, mafiosos, traficantes ou policiais8-11.
As mulheres apresentam maior risco de serem assassinadas pelos companheiros quando comparados aos homens. Nos Estados Unidos 42% dos assassinatos femininos foram cometidos por parceiro íntimo em 2012, comparados com 5% de maridos mortos pelas esposas8. Violência conjugal repetida e crescente, assim como ameaças de morte após separação conflituosa são fatores de risco para as mulheres9-11.
Estudos evidenciam que entre 60% a 70% dos homicídios de mulheres correspondem a feminicídios e as vítimas são jovens, pobres, pertencentes a minorias étnicas, migrantes e trabalhadoras sexuais, portanto, atingem predominantemente as vulneráveis10,11.
Em âmbito mundial, os feminicídios apresentam tendência crescente8,12. A América Central é um dos locais de maior ocorrência6,11 e nos Estados Unidos o feminicídio é uma das primeiras causas de morte entre mulheres e a primeira entre afroamericanas13. No Brasil, nos últimos 30 anos, os assassinatos de mulheres aumentaram significativamente, e a taxa passou de 2,3/100 mil para 4,6/100 mil mulheres12.
Os feminicídios apresentam maior incidência em aglomerados urbanos e cidades ou regiões com maior densidade populacional5. Este estudo tem como objetivo analisar a relação entre feminicídios com uma série de indicadores em cidades brasileiras de grande porte populacional.
Estudo ecológico que analisou a relação entre mortalidade feminina por agressão com variáveis socioeconômicas, demográficas, de acesso e de saúde nas capitais das Unidades da Federação e municípios brasileiros com população superior a 400 mil habitantes, perfazendo um total de 58 cidades. Foram utilizados dados secundários do Ministério da Saúde (DATASUS), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/SIDRA/PNAD) e da Fundação de Economia e Estatística (FEE).
Os dados referem-se aos anos de 2007 a 2009 e 2011 a 2013. As taxas de mortalidade feminina por agressão foram padronizadas, utilizando a população padrão fornecida pela Organização Mundial da Saúde para o período de 2000 a 2025. A padronização permite efetuar comparações em regiões com diferentes padrões demográficos e etários, como é o caso das capitais e municípios brasileiros selecionados.
Este estudo faz parte de uma pesquisa financiada pelo CNPq denominada “Feminicídios, e outros assassinatos pautados em gênero no Rio Grande do Sul”, na qual foram realizados três estudos ecológicos com diferentes recortes territoriais. No primeiro, analisou-se a distribuição das mortes femininas por agressão segundo as Unidades da Federação brasileira14 e, no segundo, as mortes foram distribuídas nas microrregiões do estado do Rio Grande do Sul15. No estudo atual, investigaram-se as variáveis associadas às mortes femininas por agressão presentes nas regiões mais urbanizadas e densamente povoadas do país.
No Brasil, o feminicídio não está especificado na declaração de óbito, impossibilitando a identificação deste crime através de dados secundários obtidos no sistema de mortalidade. Portanto, foi utilizado o total de óbitos femininos por agressão obtido no SIM/DATASUS como “marcador aproximado” do feminicídio. A possível superestimativa de óbitos é compensada pelas subnotificações de eventos vitais, devido a falhas na cobertura do sistema de informação.
Os homicídios femininos corresponderam ao intervalo entre X85 a Y09 do capítulo causas externas da 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). As variáveis explanatórias compreenderam 17 indicadores, a maioria deles expressos em percentuais, considerados na totalidade ou discriminados segundo sexo e grupados em quatro blocos temáticos:
Econômicos: índice de Gini; Índice de Desenvolvimento Humano; rendimento médio mensal; pobreza; mulheres chefes de família.
Demográficos: conjugalidade feminina; analfabetismo; pessoas não naturais do município; raça/cor; religião.
Acesso: domicílios com Internet; domicílios com telefone fixo ou celular.
Saúde: taxa de mortalidade por aids; taxa de mortalidade por câncer de colo de útero e de mama; taxa de mortalidade masculina por agressão; proporção de óbitos por causas mal definidas; médicos por 1.000 habitantes.
A análise estatística foi realizada através do programa SPSS, versão 18.0, utilizando como desfecho o coeficiente médio padronizado de mortalidade feminina por agressão para os dois triênios. A associação estatística entre os indicadores foi verificada por meio do teste de Correlação de Pearson e as variáveis que apresentaram significância estatística (p < 0,05) na análise bivariada entraram no modelo de regressão linear múltipla, método Backward. Tendo em vista que as variáveis que permaneceram no modelo final de regressão foram as mesmas para os dois triênios será apresentada a análise estatística do desfecho mais recente (2011-2013).
A pesquisa foi conduzida dentro dos padrões exigidos pela Declaração de Helsinque e o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Saúde Pública/RS.
Ocorreram 4.368 óbitos femininos por agressão entre os anos de 2007 a 2009 e 4.834 entre os anos de 2011 a 2013 nos 58 municípios deste estudo, representando aumento de 10% entre os dois triênios. Essas localidades configuram 1% dos municípios brasileiros, 33% da população feminina e 39% das mortes femininas por agressão.
O coeficiente médio de mortalidade feminina por agressão no primeiro triênio foi de 4,5 óbitos/100 mil mulheres e de 4,9/100 mil no segundo e, em 58% dos municípios houve aumento nas taxas entre os dois períodos. A menor taxa encontrada foi de 0,7/100 mil no município de São José do Rio Preto/SP e a maior foi 16,3/100 mil no município de Serra/ES, ambas em 2007-2009.
Foi possível observar coeficientes maiores que cinco óbitos por 100 mil mulheres em 20 cidades no primeiro triênio e em 25 no segundo, sendo que 10 eram capitais de Unidades da Federação: Rio Branco, Porto Velho e Boa Vista no norte do país; Maceió, Salvador e João Pessoa, no nordeste; Cuiabá no centro-oeste; Belo Horizonte e Vitória no sudeste e Curitiba no sul. O estado do Espírito Santo apresenta os municípios com as maiores taxas nacionais: Vila Velha e Serra, embora tenham apresentado redução entre os dois períodos (Tabela 1).
Tabela 1 Coeficientes padronizados de mortalidade feminina por agressão nas capitais e municípios brasileiros com mais de 400 mil habitantes, 2007-2010 e 2011-2013.
Município | Coef.mort.fem agressão 2007-2009 2011-2013 | Município | Coef. mort fem agressão 2007-2009 2011-2013 | ||
---|---|---|---|---|---|
Acre | Pernambuco | ||||
Rio Branco | 6,7 | 5,7 | Recife | 8,1 | 4,6 |
Alagoas | Jaboatão dos Guararapes | 6,5 | 5,5 | ||
Maceió | 7,0 | 8,9 | Piauí | ||
Amapá | Teresina | 2,9 | 3,1 | ||
Macapá | 4,2 | 4,2 | Rio de Janeiro | ||
Amazonas | Rio de Janeiro | 3,6 | 3,2 | ||
Manaus | 3,6 | 6,1 | Campo do Goytacazes | 5,9 | 5,8 |
Bahia | São Gonçalo | 3,9 | 3,6 | ||
Salvador | 5,1 | 7,6 | Duque de Caxias | 4,1 | 4,6 |
Feira de Santana | 2,8 | 4,1 | Nova Iguaçu | 4,5 | 4,8 |
Ceará | Belford Roxo | 5,1 | 2,6 | ||
Fortaleza | 3,2 | 6,8 | Niterói | 6,3 | 4,4 |
Distrito Federal | São João de Meriti | 2,7 | 3,0 | ||
Brasília | 4,4 | 5,0 | Rio Grande do Norte | ||
Espirito Santo | Natal | 3,4 | 4,8 | ||
Vitória | 7,3 | 7,1 | Rio Grande do Sul | ||
Vila Velha | 10,8 | 10,3 | Porto Alegre | 5,5 | 4,8 |
Serra | 16,4 | 14,2 | Caxias do Sul | 3,2 | 4,1 |
Goiás | Rondônia | ||||
Goiânia | 4,6 | 7,0 | Porto Velho | 5,8 | 8,1 |
Ap. de Goiânia | 5,8 | 9,7 | Roraima | ||
Maranhão | Boa Vista | 7,7 | 6,1 | ||
São Luís | 2,5 | 4,4 | Santa Catarina | ||
Mato Grosso | Florianópolis | 2,4 | 2,9 | ||
Cuiabá | 6,3 | 5,8 | Joinville | 2,2 | 2,3 |
M. Grosso Sul | Sergipe | ||||
Campo Grande | 3,2 | 4,1 | Aracaju | 1,8 | 4,4 |
Minas Gerais | São Paulo | ||||
Belo Horizonte | 5,7 | 6,1 | São Paulo | 2,7 | 2,2 |
Betim | 7,0 | 8,4 | São José do Rio Preto | 0,7 | 2,4 |
Uberlândia | 2,9 | 5,0 | Guarulhos | 3,3 | 3,2 |
Contagem | 5,1 | 6,0 | Mauá | 4,1 | 3,9 |
Juiz de Fora | 2,3 | 2,7 | Santos | 2,2 | 1,8 |
Paraná | Campinas | 1,9 | 3,0 | ||
Curitiba | 6,2 | 5,1 | São Bernardo do Campo | 2,1 | 1,2 |
Londrina | 2,6 | 3,9 | Osasco | 3,9 | 2,2 |
Paraíba | Santo André | 1,7 | 1,4 | ||
João Pessoa | 5,6 | 9,2 | São José dos Campos | 2,4 | 1,5 |
Pará | Sorocaba | 2,5 | 2,7 | ||
Belém | 3,7 | 6,6 | Ribeirão Preto | 2,4 | 1,8 |
Ananindeua | 5,3 | 6,5 | Tocantins | ||
Palmas | 3,5 | 6,1 |
A Tabela 2 apresenta as médias dos dois triênios das características sociodemográficas das vítimas e o local de maior frequência do crime. Houve predomínio de mulheres negras (risco de morrer duas vezes maior que as brancas), solteiras (70,3%), jovens (72,0% está na faixa etária dos 10 a 39 anos) e com baixa escolaridade, embora em 6,3% dos crimes as mulheres possuíam mais de 12 anos de estudo; 22% das mortes ocorreram no domicílio.
Tabela 2 Média das frequências, percentuais e coeficientes da mortalidade feminina por agressão. Capitais e municípios brasileiros com mais de 400 mil habitantes, 2007-2009 e 2011-2013.
Variáveis | Casos | % | Coeficientes/100.000 |
---|---|---|---|
Grupo etário (anos)* | |||
1 a 9 | 112 | 2,5 | 0,7 |
10 a 19 | 768 | 17,3 | 4,9 |
20 a 29 | 1413 | 31,9 | 7,6 |
30 a 39 | 1010 | 22,8 | 6,2 |
40 a 49 | 571 | 12,9 | 4,1 |
50 e mais | 506 | 11,4 | 2,4 |
Escolaridade (anos)** | |||
Nenhuma | 60 | 1,4 | - |
1 a 3 | 72 | 10,9 | - |
4 a 7 | 1348 | 31,1 | - |
8 a 11 | 973 | 22,5 | - |
12 e mais | 273 | 6,3 | - |
Raça/cor*** | |||
Branca | 1509 | 35,1 | 3,0 |
Negra | 2598 | 60,4 | 5,3 |
Outra | 16 | 0,4 | - |
Estado Civil**** | |||
Solteira | 3036 | 70,2 | - |
Casada | 587 | 13,6 | - |
Outro | 360 | 8,4 | - |
Local de Ocorrência***** | |||
Estabelecimento de Saúde | 1429 | 32,9 | - |
Domicílio | 969 | 22,3 | - |
Via Pública | 1420 | 32,6 | - |
Outros | 504 | 11,6 | - |
*45 ig; **1.202 ig; ***174 ig; **** 342 ig; *****26 ig.
A Tabela 3 descreve as variáveis independentes do estudo discriminadas em quatro blocos: socioeconômicas, demográficas, de acesso e de saúde. Foram apresentadas as médias, os desvios padrões, os valores máximos e mínimos e a fonte de obtenção dos dados, para os dois períodos do estudo.
Tabela 3 Variáveis explanatórias- médias, desvios e valores máximo e mínimo, 2003-2010.
Variáveis | Fonte, ano | Média | dp | Mínimo - Máximo |
---|---|---|---|---|
Econômicas | ||||
Índice de Gini | IBGE, 2003 | 0,4 | 0,04 | (0,4 - 0,5) |
Pobres (%) | SIDRA,2010 | 20,8 | 9,8 | (6,2 - 40,6) |
Pobres negros (%) | SIDRA,2010 | 27,0 | 11,1 | (13,0 - 77,1) |
Pobres brancos (%) | SIDRA,2010 | 15,1 | 7,7 | (5,1 - 32,8) |
Mulheres chefes de família (%) | SIDRA,2010 | 25,0 | 2,6 | (20,5 - 33,6) |
IDH | PNUD,2000 | 0,8 | 0,05 | (0,55 - 0,89) |
Demográficas | ||||
População negra (%) | IBGE,2010 | 50,7 | 18,5 | (13,8 - 79,5) |
Pessoas não naturais município (%) | IBGE,2010 | 40,5 | 11,3 | (10,5 - 75,0) |
Mulheres casadas (%) | SIDRA,2010 | 28,7 | 4,9 | (15,7 - 37,2) |
Mulheres solteiras (%) | SIDRA,2010 | 45,7 | 5,7 | (35,9 - 59,1) |
Mulheres separadas (%) | SIDRA,2010 | 1,8 | 0,6 | (0,8 - 3,0) |
Católicos (%) | IBGE,2010 | 56,1 | 9,9 | (32,8 - 79,2) |
Pentecostais (%) | IBGE,2010 | 15,7 | 5,3 | (5,5 - 27,1) |
Sem religião (%) | IBGE,2010 | 10,2 | 4,6 | (2,8 - 22,7) |
Comunicação | ||||
Domicílios com internet (%) | IBGE,2010 | 40,9 | 12,1 | (21,0 - 65,0) |
Domicílios telefone celular ou fixo (%) | IBGE,2010 | 94,8 | 2,8 | (82,2 - 98,2) |
Saúde | ||||
Óbitos masculinos mal definidos (%) | DATASUS,2010 | 5,2 | 8,4 | (0,2 - 61,1) |
Óbitos femininos mal definidos (%) | DATASUS, 2010 | 4,4 | 4,1 | (0,0 - 15,3) |
Mortalidade câncer de colo do útero | DATASUS, 2009 | 6,1 | 2,7 | (1,6 - 17,3) |
Mortalidade câncer de mama | DATASUS, 2009 | 16,6 | 8,9 | (1,1 - 57,9) |
Mortalidade por aids (homens) | DATASUS, 2010 | 12,2 | 6,8 | (2,5 - 47,1) |
Mortalidade por aids (mulheres) | DATASUS,2010 | 5,7 | 3,5 | (1,7 - 23,4) |
Médicos/1.000 habitantes | DATASUS, 2010 | 1,7 | 0,2 | (0,4 - 3,2) |
Mortalidade por agressão homens | DATASUS, 2009 | 31,7 | 17,4 | (6,8 - 86,2) |
A Tabela 4 apresenta os resultados do teste de correlação de Pearson entre o coeficiente de mortalidade feminina por agressão e as variáveis independentes no triênio 2009-2011. Houve associação negativa entre mortalidade feminina por agressão com mulheres separadas e proporção de pobres. Observou-se associação positiva entre a mortalidade feminina com população negra, pentecostais e mortalidade masculina por agressão.
Tabela 4 Correlação entre mortalidade feminina por agressão e variáveis explanatórias, capitais e municípios brasileiros com população superior a 400 mil habitantes, 2011-2013.
Variáveis | r | p |
---|---|---|
Índice de Gini | 0,179 | 0,215 |
IDH | -0,128 | 0,219 |
Pobres | -0,216 | 0,087 |
Pobres brancos | 0,207 | 0,419 |
Pobres negros | 0,251 | 0,419 |
Pessoas não naturais do município | 0,110 | 0,260 |
Mulheres casadas | -0,271 | 0,215 |
Mulheres solteiras | 0,313 | 0,000 |
Mulheres separadas | -0,425 | 0,001 |
População negra | 0,528 | 0,000 |
Mulheres chefes de família | -0,247 | 0,135 |
Religião católica | -0,121 | 0,128 |
Religião pentecostal | 0,446 | 0,000 |
Sem religião | 0,136 | 0,219 |
Domicílios com internet | 0,214 | 0,153 |
Domicílios com telefone fixo ou celular | -0,285 | 0,322 |
Mortalidade masculina causas mal definidas | 0,126 | 0,455 |
Mortalidade feminina causas mal definidas | -0,214 | 0,125 |
Coef. mortalidade por câncer de colo de útero | 0,065 | 0,630 |
Coef. mortalidade por câncer de mama | -0,087 | 0,514 |
Coef. mortalidade de aids em mulheres | -0,018 | 0,893 |
Coef. Mortalidade de aids em homens | 0,011 | 0,934 |
Médicos/1.000 habitantes | -0,094 | 0,484 |
Coef. mortalidade masculina por agressão | 0,825 | 0,000 |
A Tabela 5 apresenta os resultados da análise multivariada entre feminicídios e as variáveis que entraram no modelo final de regressão: pobres, negros, mulheres separadas, pentecostais e mortalidade masculina por agressão. Após o ajuste do modelo de regressão, três variáveis permaneceram significativas, havendo uma correlação negativa com pobres (p = 0,006) e positiva com pentecostais (p = 0,002) e com a mortalidade masculina por agressão (p < 0,000).
Tabela 5 Modelo de regressão linear multivariada, variáveis de entrada e modelo final, capitais brasileiras e municípios com população superior a 400 mil habitantes, 2011-2013.
Variáveis | Beta padronizado | b (IC95%) | p |
---|---|---|---|
Modelo de entrada | |||
Pobres | -0,325 | -0,083 (-0,179;-0,013) | 0,090 |
Mulheres separadas | -0,004 | -0,017 (-1,559;1,53) | 0,983 |
População negra | -0,007 | -0,002 (-0,060;0,057) | 0,959 |
Mortalidade masculina agressão Pentecostais | 0,840 0,235 | 0,121 (0,097; 0,145) 0,111 (0,014;0,208) | 0,000 0,026 |
Modelo final | |||
Pobres | -0,330 | -0,084 (-0,143;-0,025) | 0,006 |
Mortalidade masculina agressão Pentecostais | 0,841 0,237 | 0,121 (0,098;0,145) 0,111 (0,042; 0,181) | 0,000 0,002 |
Este estudo evidenciou aumento de feminicídios em capitais e grandes cidades brasileiras no período analisado, principalmente entre mulheres jovens, pobres, negras, solteiras e de baixa escolaridade. Além do mais, foi encontrada relação do agravo com pobreza, pentecostalismo e homicídios masculinos. A associação entre feminicídio e territórios onde é elevada a proporção de evangélicos pentecostais e de violência masculina já foi discutida em outras pesquisas14-16. Já a relação inversa com pobreza representa um achado paradoxal, na medida em que diferentes pesquisas sobre feminicídio indicam que mulheres pobres são mais atingidas11,13.
Essa contradição pode ser explicada pelo fato de que em comunidades mais conservadoras, como em pequenas cidades no interior do Brasil, as normas de gênero são mais rígidas e as mulheres permanecem submissas, cumprindo estritamente os papeis designados a elas pela cultura. Essa condição faz com que suportem situações de violência por longos períodos de tempo, para evitar conflitos e reduzir o risco de morrer, ao contrário de grandes cidades cosmopolitas, onde os padrões tradicionais de gênero são flexibilizados17.
Na sociedade patriarcal, o feminicídio tende a ser um ato punitivo e disciplinador, praticado contra uma vítima que se tornou vulnerável por ter atentado contra a honra masculina, por não contar com proteção ou ainda por se comportar de modo considerado moralmente inadequado. Assim, os assassinatos de mulheres ocorrem contra uma mulher que saiu do seu lugar, ou seja, de sua posição subordinada e tutelada em um sistema de status. O deslocamento da mulher para uma posição não destinada a ela na hierarquia do modelo tradicional desafia a posição do homem nessa estrutura e os códigos morais estipulam que ela deve ser punida ou até mesmo morta18.
Na atualidade, em vários países das Américas e em muitas regiões brasileiras, em territórios de extrema desigualdade social, conflito armado, grilagem de terras, regiões de fronteira, favelas e em circunstâncias onde vigora a lei de um segundo estado, os feminicídios passaram a ser praticados como uma forma de punição exemplar, de demonstração de poder ou uma mensagem às mulheres para que se comportem e aos outros homens para mostrar quem está no comando11,14,15,19.
Mulheres que adquirem autonomia sexual e econômica tensionam os padrões tradicionais de gênero e há um risco maior de feminicídios, pois elas se contrapõem ou rompem situações de subordinação. Assim, a mudança nos papeis tradicionais de gênero em países, regiões ou cidades onde ainda não há equidade econômica e de gênero, faz aumentar o risco de vitimização e morte10,19.
A violência opera como mecanismo de controle e subordinação, e a ideologia de gênero, presente nos discursos das instituições sociais, naturaliza e cimenta este sistema. Dessa maneira, fica patente a contradição entre aumento da violência de gênero em locais mais ricos, grandes centros, polos de industrialização e desenvolvimento, onde grupos de mulheres usufruem de situação mais igualitária e autônoma, ao mesmo tempo que aumentam as mulheres pobres, em situação de vulnerabilidade e desigualdade social, as principais vítimas de feminicídios20.
A análise da religiosidade indicou neste estudo, assim como no anterior14, que há mais mortes femininas em territórios com grande presença de evangélicos pentecostais. Os pentecostais compartilham uma identidade de valores tradicionais, em que as mulheres são controladas pelos homens da comunidade religiosa. Essa vigilância mantém a ordem de gênero e caso elas não obedeçam à norma vigente serão punidas com o aval do grupo21. Entre os pentecostais está presente a divisão sexual patriarcal, que reforça a posição de subordinação da mulher à autoridade masculina em todas as instâncias: casa, trabalho e igreja. A normatização das condutas propiciada pela religião pentecostal alinhada à ordem patriarcal de gênero costuma ser permissiva com as agressões e complacente com os autores dos crimes, fato que estimula a emergência e a manutenção das violências17,22.
O fenômeno, denominado backlash20, emergiu na sociedade ocidental em períodos de maior conservadorismo e influência do fundamentalismo religioso, e constitui um discurso de ataque à igualdade das mulheres. Este movimento, considerado um retrocesso antifeminista, atua através do recrudescimento da retórica conservadora que propugna a manutenção das mulheres no ambiente doméstico e o controle social do comportamento sexual e reprodutivo. O objetivo é a manutenção das hierarquias de gênero, necessárias para fazer funcionar o sistema de subordinação e exploração das mulheres, agudizado no capitalismo.
A relação entre feminicídio e mortalidade masculina por agressão, que apresentou maior força de associação, foi encontrada nos estudos realizados no âmbito desta pesquisa e indicou que onde há mais assassinatos de mulheres também há mais homicídios masculinos14,15. O modelo econômico neoliberal em países periféricos agudizou as desigualdades econômicas e de gênero. Esse modelo propiciou o aumento da exploração das mulheres, principalmente as mais jovens, pobres e negras, expondo-as a violências cada vez mais graves. A nova divisão sexual do trabalho colocou grande parcela de mulheres no mercado informal, em rotas de migração, de exploração sexual e em trabalhos ilegais. Elas têm mais pessoas sob sua responsabilidade, menor mobilidade e precisam aceitar os piores trabalhos, os menores salários e as condições mais perigosas. O aumento da violência estrutural no sistema patriarcal produz alguns dos novos cenários dos feminicídios11,23.
Este estudo apresenta limitações decorrentes do desenho ecológico, que utiliza informações secundárias procedentes de sistemas de informação que podem ser parciais ou enviesadas, embora o recorte espacial seja de capitais e municípios maiores de 400 mil habitantes, onde a qualidade da informação é mais acurada. Isso ocorre porque, ao contrário dos municípios de grande porte, nas pequenas cidades há maior possibilidade de ocorrer baixa captação dos óbitos a partir do registro civil, via cartórios. O subregistro de eventos vitais é maior nessas áreas, entre outros motivos, pelo não reconhecimento da importância do documento24.
Esta investigação, que faz parte de uma pesquisa maior, evidenciou a problemática dos assassinatos femininos em grandes centros urbanos e encontrou uma relação inversa entre violência de gênero e pobreza, indicando que em regiões mais ricas há maiores taxas de mortes devido ao gênero, embora elas incidam predominantemente sobre as mulheres pobres e desprivilegiadas, em territórios desiguais onde há uma presença acentuada de evangélicos pentecostais, pobreza e violência estrutural.