versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.104 no.5 São Paulo maio 2015
https://doi.org/10.5935/abc.20140191
A fenda isolada no folheto anterior da valva mitral (não associada ao defeito septal atrioventricular) é uma causa rara de insuficiência mitral congênita. Sempre que possível, a reparação da valva mitral (sutura direta da fenda com ou sem inserção de anel protético) é preferível à troca valvar. Apresentamos um caso que descreve a utilidade da ecocardiografia transtorácica (ETT) tridimensional (3D) no diagnóstico e na avaliação morfológica do defeito valvar, auxiliando o planejamento do procedimento cirúrgico.
Homem assintomático de 18 anos de idade, com com relato de sopro desde a infância, foi submetido a uma avaliação cardiológica, que confirmou um sopro holossistólico apical com irradiação para a axila. O eletrocardiograma de repouso de 12 derivações mostrou-se normal. O exame 2D-ETT mostrou a presença de um jato regurgitante mitral excêntrico de grande dimensão direcionado à parede lateral do átrio esquerdo dilatado (Figura 1 -A e B e Vídeo 1). O tamanho do anel mitral era normal. O ventrículo esquerdo apresentava tamanho e função normais. Nenhuma outra alteração cardíaca foi detectada pelo 2D-ETT. Um exame 3D-ETT foi realizado para melhor definir a anatomia da valva mitral. Imagens en face da valva mitral foram obtidas através do recorte dos volumes 3D adquiridos através das janelas apicais e para esternais. Um defeito foi visualizado no folheto anterior da válvula mitral na região A3 (Figura 1 - D a I, e Vídeo 2). No meio da sístole ventricular, as dimensões da fenda eram de 0,8 cm de largura e 1,2 cm de profundidade, com área regurgitante de 0,7 cm2 através de planimetria, e orifício regurgitante efetivo de 0,61 cm2.
Vídeo 1) Imagem longitudinal paraesternal 2D-ETT utilizando Doppler ecocardiografia em cores demonstrando o fluxo regurgitante excêntrico através do folheto mitral anterior direcionado à parede lateral do átrio esquerdo; 2) Imagem por 3D-ECTen face da valva mitral ventricular, aonde pode-se visualizar que as duas partes do folheto anterior excursionam juntas durante a sístole, enquanto que durante a diástole, as bordas da fenda se separaram amplamente; 3) Imagem por 3D-ETT da valva mitral ventricular, aonde pode-se visualizar que as duas partes do folheto anterior excursionam juntas durante a sístole, ao passo que durante a diástole, as bordas da fenda se separaram amplamente; 4) Imagem por 3D-ETT mostrando uma área eco-livre facilmente visualizada e que representa a região de separação dos folhetos.
Figura 1 A) Vista apical bidimensional das duas câmaras mostrando uma fenda no folheto anterior, onde o trajeto do fluxo regurgitante excêntrico foi identificado pela Doppler ecocardiografia em cores; B) Vista bidimensional de eixo curto logo abaixo da raiz da aorta, ao nível da continuidade fibrosa da valva aórtica para a mitral; C) rastreamento contínuo do fluxo regurgitante por Doppler, mostrando um espectro denso sugestivo de insuficiência grave; D e E) Imagem 3D ventricular e atrial en face, respectivamente, da valva mitral a meio caminho da sístole ventricular, mostrando o orifício anatômico com área planimétrica tridimensional e medições de diâmetros; F) Imagem 3D atrial en face da válvula mitral na diástole monstrando a fenda na região A3; G) Imagem por 3D-ETT monstrando o defeito no folheto anterior eco-localizado na região A3 (note a divisão do folheto anterior indicado pela seta); H) Imagem 3D en face da válvula mitral com Doppler ecocardiografia em cores, demonstrando a porção A3 medido pelo método PISA; I) Área planimétrica 3D efetiva do orifício regurgitante.
Possíveis causas adquiridas para este achado morfológico, tais como trauma torácico, cirurgia, ou endocardite infecciosa, também foram excluídas, e o diagnóstico final foi fenda isolada no folheto anterior da válvula mitral (FAVM). Considerando a grande dimensão da fenda, a gravidade da regurgitação, e sua localização perto da comissura póstero-medial, a sutura direta ou enxerto autólogo de pericárdio não foram considerados opções cirúrgicas viáveis (Vídeo 3 e 4).
A avaliação intra-operatória confirmou os resultados obtidos a partir do exame 3D-ETT. Uma fenda foi identificada no terço medial do folheto anterior da valva mitral. Nenhuma outra anormalidade do aparato mitral foi observada. Uma prótese aórtica St. Jude de 31 mm (St. Jude Medical Biocor®) foi implantada com sucesso, de acordo com a escolha do paciente. O pós-operatório transcorreu sem intercorrências e após 6 meses de acompanhamento, o paciente manteve-se assintomático com uma prótese mitral funcionando normalmente.
FAVM é uma doença cardíaca congênita rara, definida como uma fenda no folheto anterior da valva mitral não associada a um defeito septal atrial ostium primum ou a outras características associadas ao defeito septal atrioventricular1,2. Acredita-se que a FAVM seja o resultado de uma expressão incompleta de um defeito do coxim endocárdico3. FAVM geralmente envolve o folheto anterior, dividindo-o na sua totalidade, e é direcionada à via de saída do ventriculo esquerdo, que não apresenta defeito do coxim endocárdico1. Geralmente, o anel mitral encontra-se numa posição normal.
FAVM pode causar regurgitação mitral de gravidade variável. Dados da literatura sugerem que o tratamento cirúrgico é indicado quando ocorre regurgitação mitral considerável, mesmo em pacientes assintomáticos4. Sempre que possível, a reparação cirúrgica é a intervenção de escolha e consiste na sutura direta da fenda ou inserção de um enxerto pericárdico autólogo (quando a fenda é muito ampla devido à retração da borda da fenda), com ou sem inserção de anel protético4,5. O ecocardiograma é a técnica de escolha para avaliar anomalias suspeitas e conhecidas da valva mitral, e fornece informações importantes sobre a topografia e morfologia do defeito, bem como o mecanismo e a gravidade da regurgitação. No entanto, devido à sua natureza tomográfica, a Miglioranza e cols. Ecocardiografia 3D: fenda isolada no folheto anterior da valva mitral ecocardiografia bidimensional, tanto ETT como a transesofágica (ETE), tem capacidade limitada para definir em três dimensões as características anatômicas complexas da fenda, tais como a sua posição, tamanho e morfologia. As vantagens da ecocardiografia tridimensional para avaliar a morfologia e função da válvula mitral têm sido amplamente documentadas nos trabalhos sobre a doença da valva mitral adquirida6. A ecocardiografia tridimensional permite visualizar a geometria não-planar dos folhetos e anel valvares, o complexo aparato subvalvar e suas relações espaciais com as estruturas circundantes. Além disso, com a ecocardiografia tridimensional, não há necessidade de reconstrução mental a partir de imagens tomográficas distintas da valva mitral, visto que imagens anatômicas realistas da valva mitral semelhantes à observação cirúrgica são obtidas durante o batimento cardíaco. Devido à resolução superior de imagem, 3D-ETE foi utilizada para a avaliação de FAVM em vários trabalhos7-12. Em nosso paciente, 3D-ETT foi capaz de visualizar a FAVM do ponto de vista cirúrgico, definindo sua posição exata, morfologia e tamanho, permitindo um planejamento cirúrgico confiável e discussão sobre a escolha da prótese com o paciente sem a necessidade de procedimentos semi-invasivos como o ETE. Além disso, nossos resultados sugerem que, em pacientes com janela acústica adequada, os dados fornecidos pelo 3D-ECT permitem que os cirurgiões planejem o procedimento cirúrgico antes de entrar na sala de cirurgia. A 3D-ETT pode ser realizada após a indução da anestesia, na sala de cirurgia, para a obtenção de mais detalhes anatômicos antes da cirurgia. Esta estratégia visa reduzir o desconforto do paciente e os custos de propedêutica do paciente.
O paciente assinou um consentimento informado para a publicação deste relato de caso e as imagens que o acompanham.