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Fibrose Miocárdica Definida por Ressonância Magnética Cardíaca em Doença de Chagas: Correlações Clínicas e Estratificação de Risco

Fibrose Miocárdica Definida por Ressonância Magnética Cardíaca em Doença de Chagas: Correlações Clínicas e Estratificação de Risco

Autores:

Marly Uellendahl,
Maria Eduarda Menezes de Siqueira,
Eveline Barros Calado,
Roberto Kalil-Filho,
Dário Sobral,
Clébia Ribeiro,
Wilson Oliveira,
Silvia Martins,
Jagat Narula,
Carlos Eduardo Rochitte

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.107 no.5 São Paulo nov. 2016

https://doi.org/10.5935/abc.20160168

Resumo

Fundamento:

A doença de Chagas (DC) é importante causa de insuficiência cardíaca e mortalidade, principalmente na América Latina. Este estudo avaliou as características morfológicas e funcionais do coração, assim como a extensão da fibrose miocárdica (FM) em pacientes com DC através de ressonância magnética cardíaca (RMC). O valor prognóstico da FM avaliada por realce tardio miocárdico (RTM) foi comparado àquele do escore de Rassi.

Métodos:

Avaliação de 39 pacientes divididos em 2 grupos: grupo 'forma indeterminada' (IND), 28 pacientes assintomáticos; e grupo 'cardiopatia chagásica' (CC), pacientes sintomáticos. Todos os pacientes foram submetidos a RMC com as técnicas de cine-RM e RTM, sendo a quantidade de FM evidenciada ao exame comparada ao escore de Rassi.

Resultados:

As análises morfológica e funcional mostraram significativas diferenças entre os 2 grupos (p < 0,001). Houve ainda uma forte correlação entre a extensão da FM e o escore de Rassi (r = 0,76).

Conclusões:

A RMC é uma importante técnica para avaliar pacientes com DC, ressaltando as diferenças morfológicas e funcionais em todas as apresentações clínicas. A forte correlação entre o escore de Rassi e a extensão da FM detectada por RMC enfatiza seu papel na estratificação prognóstica de pacientes com DC.

Palavras-chave Cardiomiopatia Chagásica; Doença de Chagas; Espectroscopia de Ressonância Magnética; Fatores de Risco; Prognóstico

Abstract

Background:

Chagas disease (CD) is an important cause of heart failure and mortality, mainly in Latin America. This study evaluated the morphological and functional characteristics of the heart as well the extent of myocardial fibrosis (MF) in patients with CD by cardiac magnetic resonance (CMR). The prognostic value of MF evaluated by myocardial-delayed enhancement (MDE) was compared with that via Rassi score.

Methods:

This study assessed 39 patients divided into 2 groups: 28 asymptomatic patients as indeterminate form group (IND); and symptomatic patients as Chagas Heart Disease (CHD) group. All patients underwent CMR using the techniques of cine-MRI and MDE, and the amount of MF was compared with the Rassi score.

Results:

Regarding the morphological and functional analysis, significant differences were observed between both groups (p < 0.001). Furthermore, there was a strong correlation between the extent of MF and the Rassi score (r = 0.76).

Conclusions:

CMR is an important technique for evaluating patients with CD, stressing morphological and functional differences in all clinical presentations. The strong correlation with the Rassi score and the extent of MF detected by CMR emphasizes its role in the prognostic stratification of patients with CD.

Keywords Chagas Cardiomyopathy; Chagas Disease; Magnetic Resonance Spectroscopy; Risk factors, Prognosis

Introdução

Embora descrita há mais de 100 anos,1 a doença de Chagas (DC) continua sendo importante causa de morbimortalidade na América Latina,2,3 afetando cerca de 6 milhões de pessoas, com aproximadamente 30.000 novos casos detectados ao ano.4,5 Devido ao constante aumento migratório de latino-americanos para a América do Norte e Europa ocidental, essa doença se apresenta como um desafio global.2

Os desfechos clínicos em pacientes com cardiopatia chagásica (CC) são mais bem expressos por fatores de risco, como altas classes funcionais da New York Heart Association (NYHA) para apresentação sintomática, evidência radiográfica de cardiomegalia, disfunção ventricular esquerda (VE) na ecocardiografia, taquicardia ventricular não sustentada (TVNS) no monitoramento ambulatorial de 24 horas, QRS de baixa voltagem na eletrocardiografia, e sexo masculino.6-9 Rassi et al.10 estabeleceram um sistema quantitativo de escore para identificar pacientes chagásicos com risco de morte prematura. Seis fatores prognósticos independentes foram identificados, atribuindo-se a cada um uma quantidade de pontos proporcional ao seu coeficiente de regressão: classe funcional NYHA III ou IV (5 pontos), evidência de cardiomegalia na radiografia de tórax (5 pontos), disfunção sistólica ventricular esquerda na ecocardiografia (3 pontos), TVNS no Holter de 24 horas (3 pontos), QRS de baixa voltagem no eletrocardiograma (2 pontos) e sexo masculino (2 pontos). Calcularam-se os escores de risco para cada paciente, sendo definidos três grupos de risco: baixo risco (0 a 6 pontos), risco intermediário (7 a 11 pontos), e alto risco (12 a 20 pontos). As taxas de mortalidade em 10 anos para esses três grupos foram 10%, 44% e 84%, respectivamente, em uma coorte de validação.10 Do ponto de vista patológico, a DC caracteriza-se por fibrose miocárdica (FM) pós-inflamatória,11-13 que pode ser identificada com segurança por ressonância magnética cardíaca (RMC) com realce tardio miocárdico (RTM).14-16 Como foi demonstrado que a FM identificada por RMC é um importante preditor de arritmias e morte súbita em várias miocardiopatias não isquêmicas, como a miocardiopatia hipertrófica,17 e ainda em um estudo-piloto de DC,18 propomos que a extensão quantitativa da FM também deva ter valor prognóstico. Este estudo avaliou a relação entre FM e o escore de Rassi,10 um escore prognóstico validado, em pacientes com e sem miocardiopatia aparente, o que, até onde sabemos, não havia sido realizado de maneira sistemática.

Métodos

Realizou-se RMC em 39 pacientes chagásicos soropositivos prospectivamente selecionados da Clínica de Doença de Chagas no Hospital Osvaldo Cruz, de novembro de 2004 a novembro de 2006 (Tabela 1). Desses 39 pacientes, 28 eram assintomáticos e tinham função ventricular normal, constituindo o grupo 'forma indeterminada' (IND); os outros 11 pacientes sintomáticos com disfunção sistólica foram clinicamente considerados como portadores de miocardiopatia, constituindo o grupo CC. Todos os pacientes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido para RMC com RTM antes de sua inclusão no estudo, que foi aprovado pelo Comitê Institucional de Revisão de Pesquisa. Para o cálculo do escore de Rassi, todos os pacientes foram submetidos a radiografia de tórax, eletrocardiografia, ecocardiografia, Holter de 24 horas e entrevista clínica para avaliação da classe funcional NYHA. A RMC foi agendada em tempo médio de 30 dias após tais exames. Pacientes com as seguintes características foram excluídos do estudo: infarto miocárdico prévio, evidência clínica ou laboratorial de cardiopatia isquêmica, taquicardia ventricular sustentada, valvopatia cardíaca, diabetes mellitus, hipercolesterolemia e portadores de marca-passo, desfibriladores implantáveis e clips cerebrovasculares.

Tabela 1 Características dos pacientes 

Características Grupo Todos
(n = 39)
Valor de p
IND
(n = 11)
CC
(n = 28)
Sexo masculino 2 (18,2) 18 (64,3) 20 (51,3) 0,014*
Idade (anos) 48,3 ± 12,2 57,4 ± 12,5 54,8 ± 12,9 0,045
Média da classe funcional NYHA 1 ± 0 2,2 ± 0,8 1,8 ± 0,9 < 0,001
Classe funcional NYHA > 1 0 (0) 21 (75,0) 28 (71,8) < 0,001*
FEVE (%) 57,9 ± 4,7 33,7 ± 16,5 40,5 ± 17,9 < 0,001
VDF (ml/m2) 64,5 ± 11,8 121,2 ± 62,2 105,2 ± 58,7 0,002
VSF (ml/m2) 26,7 ± 6,5 82,8 ± 55,5 67,0 ± 53,4 < 0,001
Massa VE (g/m2) 46,7 ± 21,7 79,5 ± 34,6 70,2 ± 34,6 0,006
FEVD (%) 41,5 ± 13,8 35,2 ± 12,5 37,0 ± 13,0 NS

Dados expressos como média ± DP ou números (%).

*Teste exato de Fisher;

Teste t de Student;

Teste de Kruskal-Wallis. IND: indeterminada; CC: cardiopatia chagásica; NYHA: New York Heart Association; FEVE: fração de ejeção ventricular esquerda; VDF: volume diastólico final; VSF: volume sistólico final; FEVD: fração de ejeção ventricular direita; NS: não significativo.

Métodos de ressonância magnética

Os pacientes foram submetidos à RM em sistema GE Signa 1.5-T (Wakeusha, Wisconsin). Imagens do coração foram realizadas nos eixos curto e longo em apneia e com sequências de pulso sincronizadas com o eletrocardiograma. A primeira sequência foi um gradiente-eco em estado de equilíbrio (steady-state free precession - SSFP) para avaliar morfologia e função VE e vetricular direita (VD). A segunda sequência foi um gradiente-eco segmentado com pulso de inversão-recuperação para obter o RTM,19 10 a 20 minutos após administração intravenosa de 0,2 mmol/kg de bolo de contraste à base de gadolínio (Dotarem®, ácido gadotérico - Gd-DOTA, Guerbet Aulnay-Sous-Bois - França). Para as imagens de cine, usando sequência SSFP, os parâmetros foram: tempo de repetição, 3,4 ms; tempo de eco, 2,0 ms; ângulo de deflexão, 45º; matriz, 256x160; fases cardíacas, 20; cortes por segmento, 8 a 16 para obter resolução temporal de 55 ms ou menos; espessura do corte, 8 mm; intervalo entre os cortes, 2 mm; e campo de visão, 36 a 40 cm. Para a sequência de pulso do RTM, os seguintes parâmetros foram usados nos eixos curto e longo: tempo de repetição, 7,3 ms; tempo de eco, 3,2 ms; ângulo de deflexão, 25º; matriz, 256 x 196; espessura do corte, 8 mm; intervalo entre os cortes, 2 mm; campo de visão, 36 a 40 cm; tempo de inversão, 200 ms a 300 ms; largura da banda receptora, 32,5 kHz; cada aquisição RR e número de excitações, 2. Os cortes no eixo curto foram prescritos da base ao ápice (em geral 8 a 12 cine-cortes/coração) perpendicular ao eixo longo ventricular, cobrindo todo o ventrículo esquerdo. Importante notar que as localizações dos cortes foram exatamente as mesmas para as duas sequências de pulso, permitindo comparar função e morfologia com a caracterização tecidual fornecida por RTM. Quando necessário, cortes adicionais foram obtidos para fornecer a completa cobertura de ventrículos muito grandes.

Análise de dados

As bordas endocárdica e epicárdica do miocárdio foram planimetradas nas imagens de cine do eixo curto. Todas as medidas foram realizadas manualmente. Os verdadeiros dados volumétricos 3D foram obtidos pela soma das áreas do eixo curto, sem qualquer suposição geométrica, conhecido como método de Simpson. Os frames sistólico e diastólico finais foram identificados com a determinação das áreas da cavidade ventricular. Volumes ventriculares esquerdos foram derivados pela soma das áreas da cavidade ventricular, sendo a fração de ejeção (FE) calculada de acordo. Todas as análises de RMC foram realizadas com o programa Siemens Argus (Siemens AG, Munique, Alemanha). Nas imagens de eixo curto de RTM, a extensão transmural segmentar do RTM, como porcentagem de massa VE, foi medida usando-se o método semiquantitativo descrito por Azevedo Filho et al.,20 com escore avaliado por dois observadores como a porcentagem da área visual do segmento realçado. O método semiquantitativo consistiu em avaliação visual de todos os cortes de eixo curto, condensando os dados em 8 representantes do ventrículo esquerdo de eixo longo divididos em 48 segmentos como se segue: cortes 1 e 2 (representando todos os cortes apicais) com 4 segmentos cada; cortes 3 a 6 (cortes médios) com 6 segmentos cada; e cortes 7 e 8 (cortes basais) com 8 segmentos cada. Todos os segmentos receberam um escore de acordo com a porcentagem de envolvimento obtida no RTM (0, 1, 2 ou 3). Escore 0 correspondeu a ausência de RTM, escore 1 correspondeu a 1%-25% do RTM, escore 2 correspondeu a 26%-75% do RTM, e escore 3 correspondeu a mais de 75% do RTM da área do segmento envolvido. Além disso, identificamos diferentes padrões de RTM, como apical isolado, multifocal e difuso.

Análises estatísticas

Variáveis contínuas com distribuição normal foram comparadas com o teste t de Student não pareado e análise de variância de uma via com teste de Bonferroni para comparações múltiplas. O teste exato de Fisher foi usado para comparar proporções. O teste não paramétrico para variáveis discretas e variáveis contínuas não normais foi o de Kruskal-Wallis. Determinou-se a normalidade pelo teste de Shapiro-Francia W. Usou-se regressão linear simples entre massa de FM e FEVE, entre FM e escore de Rassi, e entre FEVE e escore de Rassi. Devido à natureza exploratória do estudo, cálculos formais do tamanho da amostra não foram realizados. Com base em estudos prévios do nosso grupo, que investigaram FM em pacientes com características similares, optamos por incluir mais de 30 pacientes. Usou-se Stata 8.0 (Stata Corp., College Station, Texas), sendo p < 0,05 (bicaudal) considerado estatisticamente significativo.

Resultados

O grupo CC teve mais pacientes do sexo masculino e mais idosos do que o grupo IND (Tabela 1). No grupo CC, os pacientes eram sintomáticos, pelo menos classe funcional NYHA II, e seus exames de RMC mostravam disfunção VE global moderada a grave. No grupo IND, houve função VE normal ou leve disfunção VE. A maioria das variáveis de imagem diferiu substancialmente entre os dois grupos, mesmo quando 9 pacientes com TVNS foram excluídos da análise. Apenas a FEVD não variou significativamente entre os grupos. Detectou-se FM por avaliação qualitativa com RMC em 29 pacientes (72%). Maior proporção de pacientes do grupo CC (89%) em comparação ao grupo IND (27%) evidenciou FM no RTM (p <0,001). Detectou-se FM no exame de RMC em todos os 9 pacientes com TVNS. Houve diferença quanto a padrão, localização e gravidade da FM (Figura 1).

Figura 1 Localização e gravidade da fibrose miocárdica (FM) na doença de Chagas. A) sem fibrose; B) FM apical isolada; C) FM multifocal; e D) FM difusa. 

A presença de FM apresentou relação direta com a gravidade clínica da doença ao se comparar os dois grupos (Tabela 2). Houve diferença significativa entre os dois grupos quanto à classe funcional NYHA: NYHA II/III (100%) no grupo CC vs. NYHA I (39%) no grupo IND (p = 0,001, teste exato de Fisher). Houve ainda mais homens com FM (96%) do que mulheres (47%) (p = 0,001) (Tabela 3). Mais importante, descobrimos que, na avaliação quantitativa, a FM, descrita como uma porcentagem de massa VE, foi estatisticamente maior no grupo CC (25,3±1,4%) em comparação ao grupo IND (0,63 ± 1,4%) (Tabela 4 e Figura 2). Além disso, a porcentagem de FM foi substancialmente maior no grupo CC nos pacientes com arritmia (30,6 ± 18,6%) em comparação àqueles sem significativa arritmia ventricular (22,7 ± 19,7%).

Tabela 2 Fibrose miocárdica detectada por ressonância magnética e sua relação nos grupos IND e CC 

Grupos Todos
(n = 39)
Valor de p
IND
(n = 11)
CC
(n = 28)
FM não detectada 8 (72,7) 3 (10,7) 11 (28,2) < 0,001*
FM detectada 3 (27,3) 26 (89,3) 29 (71,8)

Dados expressos como números (%).

*Teste exato de Fisher. FM: fibrose miocárdica; IND: indeterminada; CC: cardiopatia chagásica.

Tabela 3 Detecção de fibrose miocárdica (FM) em relação às características dos pacientes, dados clínicos e avaliação morfológica e funcional por ressonância magnética 

Características Grupo Todos
(n = 39)
Valor de p
Sem FM
(n = 11)
Com FM
(n = 28)
Sexo masculino 1 (9,1) 19 (67,9) 20 (51,3) 0,001*
Idade (anos) 56,1 ± 11,8 54,4 ± 13,5 54,8 ± 12,9 NS
FEVE (%) 60,2 ± 4,9 32,8 ± 14,9 40,5 ± 17,9 < 0,001
VDF (ml/m2) 61,6 ± 13,1 122,3 ± 61,0 105,2 ± 58,7 < 0,001
VSF (ml/m2) 23,8 ± 6,0 83,9 ± 54,3 67,0 ± 53,4 < 0,001
FEVD (%) 40,3 ± 13,5 35,8 ± 12,8 37,0 ± 13,0 NS
Classe funcional NYHA > 1 0 (0) 21 (75) 21 (53,8) < 0,001*
Classe funcional NYHA = 1 11 (100) 7 (25) 18 (46,1) < 0,001*

Dados expressos como média ± DP ou números (%).

*Teste exato de Fisher;

Teste t de Student;

Teste de Kruskal-Wallis não pareado. VDF: volume diastólico final; VSF: volume sistólico final; FEVE: fração de ejeção ventricular esquerda; FEVD: fração de ejeção ventricular direita; NYHA: New York Heart Association.

Tabela 4 Porcentagem de fibrose miocárdica nas formas clínicas da doença de Chagas 

IND
(n = 11)
CC Todos Valor de p
TVNS não detectada
(n = 19)
TVNS detectada
(n = 9)
Fibrose miocárdica (%) 0,63 ± 1,4 22,7 ± 19,7 30,6 ± 18,6 18,3 ± 19,8 < 0,001*

Dados expressos como média ± DP;

*ANOVA. TVNS: taquicardia ventricular não sustentada; IND: indeterminada; CC: cardiopatia chagásica.

Figura 2 Padrões de fibrose miocárdica: A) Fibrose miocárdica não detectada (grupo IND); B) Fibrose miocárdica multifocal e subepicárdica (grupo CC); C) Fibrose miocárdica apical grave (paciente com taquicardia ventricular não sustentada). 

As estimativas quantitativas de FM correlacionaram-se significativamente com função VE e classe funcional NYHA (Figuras 3A e 3C). A FM mostrou correlação inversa com a função miocárdica: pacientes com maior porcentagem de massa fibrótica apresentaram menor FEVE (Figura 3A, r = -0,85 e p < 0,001). Além disso, pacientes com massa fibrótica maior do que 10% da massa ventricular mostraram comprometimento significativamente maior da FEVE quando comparados àqueles com menor massa fibrótica (26,6 ± 12,3% vs. 55,3 ± 8,3%, respectivamente, p < 0,001).

Figura 3 A) Correlação inversa da fração de ejeção ventricular esquerda (FEVE) e fibrose miocárdica (FM); B) Correlação entre escore de Rassi e FEVE; C) Aumento da FM média conforme aumenta a classe funcional New York Heart Association (NYHA) (p < 0,001 por análise de variância); D) Massa fibrótica ventricular esquerda (VE) e escores de Rassi. 

A FEVE avaliada com base na RMC apresentou correlação inversa com o escore de Rassi (r= -0,78, p < 0,001) (Figura 3B). A FM também mostrou uma forte correlação positiva com o escore de Rassi (r= 0,76, p < 0,001; Figura 3D). Essa correlação foi reforçada por análise de subgrupo mostrando progressão da FM nos grupos de baixo para alto risco conforme o escore de Rassi. As porcentagens de FM detectadas no RTM nos grupos de risco baixo, intermediário e alto segundo o escore de Rassi foram 5,0±7,7%, 19,8±17,3% e 38,1±17,7%, respectivamente (p<0,001, Figura 3D). A localização da FM também se correlacionou significativamente com o escore de Rassi (Tabela 5). Diferentes padrões de FM, incluindo ausência de fibrose, FM apical isolada, multifocal ou difusa, são ilustrados na Figura 1.

Tabela 5 Escore de Rassi médio e localização da fibrose miocárdica (FM) 

Sem FM detectada
(n = 12)
FM apical
(n = 10)
FM multifocal
(n = 5)
FM difusa
(n = 12)
Todos
(n = 39)
Valor de p
Escore de Rassi médio 1 ± 2,3 6,2 ± 6,1 8,6 ± 6,4 14,1 ± 3,1 7,3 ± 6,7 < 0,001*

Dados expressos como média ± DP;

*Teste de Kruskal-Wallis.

Discussão

Este estudo estabelece a relação entre a gravidade clínica dos achados e o escore prognóstico clínico de Rassi com FM identificada por RMC na DC. A FM foi detectada in 25 dos 28 pacientes (89%) com miocardiopatia clínica (grupo CC), refletindo seu papel na gravidade da DC. A FM foi mais comum no sexo masculino, podendo constituir a base da maior mortalidade relatada em homens,10 e correlacionou-se fortemente com a classe funcional NYHA e a função VE. Identificou-se FM máxima em um subgrupo de pacientes com TVNS (30,0±18,6%). Tal achado pode reforçar a hipótese de que a FM na DC relaciona-se a arritmias e morte súbita, o que já foi sugerido em estudo relacionando FM e avaliação eletrofisiológica.18 Por outro lado, os pacientes sem miocardiopatia clínica (grupo IND) apresentaram FM significativamente menos extensa (0,63±1,4%), confirmando dois estudos anteriores com RM15,16 e um estudo patológico,21 que haviam mostrado apenas inflamação e fibrose menores e focais na forma indeterminada da DC. A porcentagem de FM verificada na RMC com RTM foi progressiva e fortemente associada com a gravidade clínica ou o escore de Rassi (r = 0,76).

Neste estudo, todos os pacientes sem miocardiopatia aparente (grupo IND) tinham função VD normal no ecocardiograma. A RMC é considerada mais sensível e precisa do que a ecocardiografia para as medidas de FEVD. A RMC mostrou que alguns daqueles pacientes tinham disfunção VD (FEVD% = 41,5 ± 13,8), mas é importante assinalar que, com relação às medidas de RMC, em várias referências na literatura e na nossa rotina clínica, a variação normal para FEVD frequentemente se estende a 45%.22 Logo, nossos achados devem representar valores normais baixos de FEVD ou leve disfunção VD. A razão para isso no grupo IND é desconhecida. Entretanto, comprometimento da função VD é mais comum na DC crônica do que em outras formas de insuficiência cardíaca. Não analisamos o RTM no ventrículo direito devido à dificuldade de avaliação da fina parede VD. A FM do ventrículo direito e outros mecanismos, como disfunção autônoma podem estar envolvidos na disfunção VD na DC.

Do ponto de vista de investigação clínica, acreditamos que a RMC possa avaliar mais detalhadamente pacientes com leve disfunção miocárdica global ou segmentar que não pode ser detectada na investigação ecocardiográfica de rotina, em especial no que se refere à função VD. Isso pode auxiliar futuras pesquisas em insuficiência cardíaca na DC. Além disso, pacientes com arritmias ventriculares e fibrose detectada por RTM na RMC, à semelhança de outras miocardiopatias, poderiam ser avaliados como possíveis candidatos à terapia antiarrítmica. Acreditamos ainda que técnicas de RM em desenvolvimento, como mapa T1, possam ser úteis para a detecção de fibrose intersticial, assim como para a investigação de fármacos que evitem a progressão de disfunção cardíaca, inflamação miocárdica e fibrose.

Ainda que esta investigação clínica não seja um estudo longitudinal e seu tamanho amostral seja relativamente pequeno, acha-se no âmbito da maioria dos estudos com RMC na DC. Este estudo enfrentou um desafio especial, pois investigou pacientes de baixo nível socioeconômico, a maior parte vivendo em áreas rurais e com dificuldade de acesso ao nosso aparelho de RM. No entanto, estudos de RM com tamanhos amostrais ainda menores podem alcançar significado estatístico devido à mais baixa variabilidade das medidas de RM. Portanto, este estudo encontrou uma correlação forte e significativa (r = 0,8) entre o escore de Rassi e a massa de FM a despeito do seu relativamente pequeno tamanho amostral.

Até onde sabemos, este é o primeiro estudo envolvendo a quantificação de FM através de RMC e dados prognósticos, neste caso obtidos pela avaliação do escore de Rassi (que utiliza vários marcadores validados de pior prognóstico, como sexo masculino, baixa voltagem no eletrocardiograma, aumento da silhueta cardíaca na radiografia de tórax, disfunção cardíaca ao ecocardiograma e presença de TVNS no monitoramento com Holter). Como demonstrado por Rochitte et al.15 em pacientes chagásicos do sudeste do Brasil, nossos dados confirmaram a forte correlação entre FM e disfunção. Entretanto, no estudo de Rochitte et al., dados de prognóstico, como os do escore de Rassi usado neste estudo, não foram disponibilizados. Este estudo apresenta dados originais demonstrando uma forte correlação entre quantificação de massa de FM por RMC e o escore de Rassi, um indicador de prognóstico validado em diferentes populações com DC. Isso sugere que a RMC possa ser uma poderosa ferramenta na avaliação de pacientes chagásicos para identificar aqueles de maior risco para eventos cardiovasculares, auxiliando na estratificação prognóstica para candidatos à implantação de cardiodesfibrilador. Os resultados do nosso estudo sugerem a necessidade de estudos longitudinais maiores para investigar o valor prognóstico da RMC na DC.

Conclusões

A FM detectada por RMC acha-se significativamente aumentada em pacientes chagásicos com miocardiopatia clínica. A quantificação da FM apresenta forte correlação com o escore de Rassi, um escore prognóstico validado para DC. A FM detectada por RMC merece ser investigada como fator prognóstico independente, e enfatizamos seu valor de ferramenta prognóstica para a estratificação de risco naquela doença.

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