versão impressa ISSN 1809-2950
Fisioter. Pesqui. vol.21 no.4 São Paulo out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.590/1809-2950/12452121042014
A amplitude de movimento (ADM) que uma articulação consegue atingir ocorre em função de sua morfologia, cápsula, ligamentos e músculos e/ou tendões que a cruzam1, de forma que a mensuração desta ADM é um componente importante na identificação das limitações articulares2, servindo de parâmetro no acompanhamento de disfunções musculoesqueléticas e neurológicas3 , 4 e auxiliando na motivação e adesão do paciente ao tratamento, uma vez que registra a eficácia da intervenção, além de ser um critério importante na confecção de órteses5.
Dada a sua importância, a ADM deve ser mensurada com precisão e, para isso, é imprescindível que seja avaliada por métodos e ferramentas confiáveis, não invasivos, de fácil aplicação e que possam ser reproduzidos por diferentes avaliadores6 - 9.
Nesse sentido, a confiabilidade de uma medida é essencial para garantir a consistência dos dados, possibilitando sua utilização na evolução de protocolos utilizados na clínica fisioterapêutica e em pesquisas científicas10. Desse modo, é imprescindível que haja concordância entre medidas sucessivas da mesma variável, do mesmo indivíduo e nas mesmas condições, comparando-as com o padrão de referência11 , 12. No entanto, para Batista et al.2, há três fontes de erro que podem tornar uma medida não confiável: o instrumento de medida; a pessoa que realiza a avaliação e as diferentes características dos voluntários que estão sendo avaliados.
De acordo com alguns estudos10 , 13, tanto a confiabilidade intra-avaliador (consistência das medidas realizadas nas mesmas condições de análise em dois momentos diferentes) quanto interavaliadores (consistência das medidas realizadas por diferentes avaliadores) necessitam ser controladas por meio da padronização metodológica e conforme o grau de acurácia dos diferentes instrumentos, para que elas sejam consideradas fidedignas.
O método de medição da ADM considerado padrão-ouro na literatura é a radiografia, no entanto, não é uma ferramenta usual em estudo de confiabilidade, pois, considerando a necessidade de reavaliações, implicaria na exposição excessiva dos pacientes à radiação e ao alto custo para os serviços de saúde14. Por isso, vários estudos buscam encontrar instrumentos confiáveis (dinamômetro isocinético2, fotogrametria11, inclinômetro, flexímetro, eletrogoniômetro e goniômetro universal13) e um protocolo ideal para mensurar a ADM.
Todavia, apesar da diversidade de instrumentos para a medição da ADM, o procedimento mais utilizado tem sido a goniometria15 , 16, por ser de fácil e rápida aplicação, não invasiva, de baixo custo15, e confiabilidade e validade consideradas como regular15 , 16, forte2 , 10 , 17, e muito forte18, a depender do movimento analisado.
Para os movimentos de inversão e eversão do tornozelo, nos poucos estudos realizados em indivíduos saudáveis, as medidas têm se mostrado muito variáveis, apresentando coeficientes de correlação intraclasse (CCI) de baixa à moderada confiabilidade intra-avaliador, e de moderada confiabilidade interavaliador19.
Além disso, pelo fato da própria conformação física do goniômetro universal (GU) não se adaptar bem à anatomia do pé e por não poder realizar medidas bi ou tridimensionais, uma vez que os movimentos de inversão (flexão plantar, adução e supinação) e eversão (dorsiflexão, abdução e pronação)19 - 21 do tornozelo combinam outros nos planos sagital, transversal e frontal20 , 21, a hipótese deste estudo foi que a fidedignidade das medidas pudesse ser maior com o uso de um artrômetro podálico (AP), em virtude de sua melhor adaptação devido ao acoplamento de sua base de apoio à planta do pé.
Diante do exposto, este estudo teve como objetivo avaliar a fidedignidade das medidas intra- e interavaliadores e interinstrumentos (GU versus AP) da ADM ativa de eversão e inversão do tornozelo, em indivíduos saudáveis.
Para a realização deste ensaio clínico de caráter transversal, foram selecionados, por conveniência, entre os estudantes dos cursos de Fisioterapia e Educação Física da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), 100 indivíduos saudáveis, de ambos os sexos, que atendessem aos seguintes critérios de inclusão: ter faixa etária entre 18 e 25 anos; índice de massa corporal (IMC) classificado como eutrófico (18,5 a 24,99 kg/m2) e não apresentar alterações ou lesões osteomioarticulares que promovessem limitação na ADM de inversão e eversão dos tornozelos.
O tamanho da amostra foi estimado por meio de um estudo-piloto, que determinou o número necessário de participantes (www.lee.dante.br). O critério foi atender a uma diferença de três graus entre avaliadores, medidas e instrumentos e, portanto, um total de 100 indivíduos foi necessário para alcançar um poder de teste de 85%, considerando um nível de significância de 5%.
Os indivíduos foram informados sobre o objetivo do estudo e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, conforme a resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, concordando com sua participação na investigação, após sua aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Centro de Ciências da Saúde da UFPB, protocolo no 013/2013 e CAAE 12074612.6.0000.5188.
Antes das medições, os indivíduos foram submetidos a uma avaliação clínica simplificada, que constava de prova de força muscular (PFM), ADM e cinestesia, a fim de detectar alguma anormalidade que viesse a comprometer os resultados da pesquisa.
Para mensuração da ADM nos movimentos de inversão e eversão do tornozelo, foram utilizados um GU (Carci(r)- Brasil), tamanho médio, de plástico, com escala de medida em dois graus, formando uma circunferência de 360º (Figura 1A), e um AP (protótipo de madeira), composto por dois retângulos sobrepostos perpendicularmente. O retângulo horizontal tinha um transferidor acoplado em seu centro, em forma de semicircunferência (180º), que se movimenta nos sentidos horário e anti-horário, enquanto que o vertical servia de apoio para o pé (Figura 1B).
No momento dos registros das medições, o avaliador que realizava a medida não podia fazer a leitura, pois o local de visualização da medição (em graus) dos dois instrumentos (GU e AP) foi, propositalmente, coberto com cartolina, para não influenciar nas mensurações subsequentes. Após receber os instrumentos das mãos do primeiro avaliador, o segundo levantava a cartolina e registrava a angulação alcançada, sem que o primeiro tomasse conhecimento do valor anotado. Em seguida, o segundo avaliador também fechava o local de visualização da medição e entregava os goniômetros para que o terceiro também realizasse o registro da medida, sem que o primeiro e o segundo avaliadores tomassem conhecimento da medida (estudo blindado).
As ADM de inversão e eversão do tornozelo foram realizadas por três avaliadores (Av1, Av2 e Av3) com experiência prática variada (Av1>dois anos; Av2>um ano; Av3=seis meses) no uso do GU, porém, quanto à aplicação do AP, todos tinham a mesma experiência, pois o utilizaram após um período de familiarização (15 dias de treino), que foi realizado sob supervisão do orientador da pesquisa.
Para a mensuração com o GU (Figuras 2A e 2B) e o AP (Figuras 2C e 2D), os indivíduos ficaram em decúbito dorsal com os membros inferiores estendidos sobre a mesa de exame. Na medição da inversão, o GU foi posicionado com o pivô ao lado da borda lateral da cabeça do quinto metatarsiano, o braço móvel na linha do arco transverso do pé (entre as cabeças do primeiro ao quinto metatarsianos) e o braço fixo, paralelo à linha média longitudinal da fíbula. Na medida da eversão, o pivô foi posicionado na borda medial da cabeça do primeiro metatarsiano, o braço móvel, como feito na inversão e, o braço fixo, paralelo à linha média longitudinal da tíbia.
Figura 2. Medição de inversão e eversão do tornozelo com goniômetro universal (A e B) e com artrômetro podálico (C e D)
Cada avaliador realizou três medidas consecutivas, no mesmo indivíduo, extraindo a média entre elas, repetindo a medição sete dias após a primeira. Em cada uma delas, a leitura da ADM foi registrada por outro avaliador para evitar indução dos resultados.
Durante as medidas, a ordem dos avaliadores e membros (esquerdo ou direito) foi aleatorizada para cada indivíduo (www.randomization.com). Na reavaliação, foi mantida a sequência da primeira avaliação para verificação da confiabilidade intra-avaliador.
Os procedimentos estatísticos foram realizados no software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.0. Inicialmente, foram verificadas a normalidade dos dados (Kolmogorov-Smirnov) e a homogeneidade das variâncias (Levene) e, em seguida, empregou-se o CCI para observar a confiabilidade das medidas intra- e interavaliadores e interinstrumentos, além do teste de Pearson para correlacionar as medidas entre o GU e AP, considerando-se um nível de significância de 5%.
Para análise dos coeficientes de correlação, levou-se em conta a seguinte classificação: nula=0,0; fraca=0,01 a 0,3; regular=0,31 a 0,6; forte=0,61 a 0,9; muito forte=0,91 a 0,99 e plena=1,022.
Dos 100 indivíduos saudáveis que atenderam aos critérios de inclusão do estudo, 71 deles eram mulheres (21,39±2,53 anos; 56,30±8,31 kg; 1,62±0,06 m; e IMC: 21,38±3,01 kg/m2) e 29 eram homens (21,14±2,68 anos; 70,45±9,72 kg; 1,74±0,06 m; e IMC: 23,15±3,08 kg/m2).
De acordo com a Tabela 1, foram encontradas correlações muito fortes e significativas (ICC 0,91≥0,99; p<0,001), tanto para o GU, quanto para o AP nas três medidas de inversão e eversão do tornozelo, realizadas por cada um dos três avaliadores.
Tabela 1. Coeficientes de correlação intraclasse, intra-avaliador, das amplitudes de movimentos de inversão e eversão do tornozelo
Medidas/avaliadores | Inversão GU | Inversão AP | Eversão GU | Eversão AP | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
CCI* | Valor p | CCI* | Valor p | CCI* | Valor p | CCI* | Valor p | |
Primeira medição | ||||||||
Avaliador 1 | 0,941 | <0,01 | 0,924 | <0,01 | 0,976 | <0,01 | 0,930 | <0,01 |
Avaliador 2 | 0,954 | <0,01 | 0,954 | <0,01 | 0,944 | <0,01 | 0,939 | <0,01 |
Avaliador 3 | 0,954 | <0,01 | 0,961 | <0,01 | 0,952 | <0,01 | 0,946 | <0,01 |
Segunda medição | ||||||||
Avaliador 1 | 0,962 | <0,01 | 0,927 | <0,01 | 0,965 | <0,01 | 0,928 | <0,01 |
Avaliador 2 | 0,957 | <0,01 | 0,953 | <0,01 | 0,935 | <0,01 | 0,929 | <0,01 |
Avaliador 3 | 0,949 | <0,01 | 0,964 | <0,01 | 0,948 | <0,01 | 0,948 | <0,01 |
Coeficientes de correlação intraclasse, intra-avaliador, das amplitudes de movimentos de inversão e eversão do tornozelo
Quanto à ADM interavaliadores (Tabela 2), houve fortes correlações (ICC 0,61-0,9; p<0,01) para todos os movimentos, tanto na primeira quanto na segunda medida, especialmente quando mensuradas com o AP, que alcançou coeficientes (>0,8) maiores que o GU (<0,8).
Tabela 2. Coeficientes de correlação intraclasse, interavaliadores, das amplitudes de movimentos de inversão e eversão do tornozelo
Medidas/avaliadores | Inversão GU | Inversão AP | Eversão GU | Eversão AP | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
CCI* | Valor p | CCI* | Valor p | CCI* | Valor p | CCI* | Valor p | |
Medida 1 | 0,706 | 0,001 | 0,834 | 0,001 | 0,734 | 0,001 | 0,811 | 0,001 |
Medida 2 | 0,688 | 0,001 | 0,838 | 0,001 | 0,724 | 0,001 | 0,813 | 0,001 |
CCI: coeficiente de correlação intraclasse; GU: goniômetro universal; AP: artrômetro podálico;
*alfa de Crombach
Com relação à correlação entre as medidas do GU e AP (Tabela 3), o teste de Pearson mostrou-se regular e significante (0,31≥r≤0,6; p<0,01) para todos os avaliadores, tanto na primeira quanto na segunda avaliação (após sete dias), exceto para o movimento de inversão na segunda avaliação, medida pelo avaliador dois, que obteve fraca, porém significante, correlação (r=0,255; p=0,01).
Tabela 3. Medidas de correlação interinstrumentos (goniômetro universal versus artrômetro podálico) dos movimentos de inversão e eversão do tornozelo
Movimentos | Avaliador 1 | Avaliador 2 | Avaliador 3 | |||
---|---|---|---|---|---|---|
r | Valor p | r | Valor p | r | Valor p | |
Primeira avaliação | ||||||
Inversão | 0,430 | 0,0001 | 0,307 | 0,002 | 0,418 | 0,0001 |
Eversão | 0,388 | 0,0001 | 0,523 | 0,0001 | 0,327 | 0,0001 |
Segunda avaliação | ||||||
Inversão | 0,478 | 0,0001 | 0,255 | 0,010 | 0,436 | 0,001 |
Eversão | 0,342 | 0,0001 | 0,404 | 0,0001 | 0,332 | 0,001 |
GU: goniômetro universal; AP: artrômetro podálico; r: coeficiente de correlação de Pearson
Ao analisar a confiabilidade das medidas, intra- e interavaliadores e interinstrumentos (GU versus AP) da ADM ativa de eversão e inversão do tornozelo, nos indivíduos saudáveis, o presente estudo encontrou um CCI (muito forte) na comparação intra-avaliador, tanto para o GU quanto para o AP, quer seja intra- ou entre sessões de avaliação, corroborando o estudo de Menadue et al.19, o qual, embora tenha empregado uma metodologia diferente (goniômetro posicionado na face anteroinferior da perna, com pivô sobre o ponto médio entre os maléolos, o braço fixo seguindo a linha média da perna e o móvel, sobre a superfície anterior do segundo metatarso), também encontrou resultados similares para os respectivos movimentos.
Além disso, confrontando os resultados do presente estudo com os achados de Kovaleski et al.23, que observaram uma forte correlação intra-avaliador (CCI=0,82), mesmo tendo realizado o estudo com cadáveres e se valido de um instrumento (artrômetro optoeletrônico) de maior acurácia que o GU e o AP, no qual o avaliador não interfere nos resultados, o presente estudo apresentou maior confiabilidade (CCI>0,91), nos dois instrumentos (GU e AP) analisados.
Um pouco aquém do CCI alcançado no presente estudo, Elveru et al.24, que também analisaram os movimentos de inversão e eversão do tornozelo, utilizando o GU, encontraram fortes correlações, intra- e intersessões de medidas, aplicando o mesmo tempo de intervalo entre elas (sete dias). No entanto, como eles avaliaram indivíduos com desordens neurológicas e ortopédicas, o maior coeficiente foi no movimento de inversão nos indivíduos com desordens ortopédicas (CCI=0,74) em detrimento da eversão naqueles que apresentavam transtornos neurológicos com menor confiabilidade (CCI=0,65).
Também neste sentido, Menadue et al.19, porém, avaliando a ADM ativa da inversão e eversão de 30 indivíduos saudáveis, tal qual Elveru et al.24, também encontraram confiabilidade forte para o movimento de inversão e de regular à forte para eversão, dentro da mesma sessão e num espaço de 7 a 14 dias entre a primeira e segunda avaliações.
O forte CCI, interavaliadores, encontrado nas duas sessões de medidas, para os dois movimentos analisados (inversão e eversão), tanto para o GU quanto para o AP, se coaduna com os estudos de Menadue et al.19 e Kovaleski et al.23, embora o presente estudo apresente valores maiores que aqueles obtidos pelos autores citados. Isto significa dizer que, para os movimentos avaliados, com os respectivos instrumentos, o tempo de experiência do avaliador, especialmente para o GU, não influenciou nos resultados das medições.
Por outro lado, os CCI da inversão e eversão utilizando o AP foram maiores do que aqueles apresentados pelo GU, demonstrando que ele apresentou medidas mais confiáveis para os movimentos estudados, mesmo quando executadas por três avaliadores diferentes. Logo, este instrumento (AP), de modo geral, pode ser utilizado para avaliar e acompanhar a evolução de disfunções que provoquem déficit de ADM de inversão e/ou eversão do tornozelo de maneira mais confiável que o GU.
Provavelmente, estes altos valores nos CCI encontrados dentro da mesma sessão, entre diferentes sessões (primeira e segunda avaliações) e também entre os três avaliadores (Av1, Av2 e Av3), seja atribuído a menor influência que o avaliador exerce sobre o AP, quando comparado ao GU, que é um instrumento avaliador-dependente, mesmo se estes tiverem grande experiência em seu uso.
Além do fato de os instrumentos não realizarem medidas tridimensionais inerentes aos movimentos de inversão (flexão plantar + adução + supinação) e eversão (dorsiflexão + abdução + pronação)19 - 21 do tornozelo, a escassez de estudos sobre a confiabilidade destas medidas, em indivíduos saudáveis, dificultou a discussão dos resultados, uma vez que a quase totalidade dos estudos que mensuraram a ADM de inversão e eversão tem analisado os efeitos de suportes externos para estabilizar o tornozelo25 e a instabilidade funcional26 , 27.
De acordo com os resultados deste estudo, os instrumentos empregados nas medidas de inversão e eversão do tornozelo (GU e AP) apresentaram alta confiabilidade, mesmo em sessões distintas de avaliações (sete dias de intervalo entre elas). Portanto, podem ser utilizados na prática fisioterapêutica, independentemente da experiência do avaliador, especialmente o AP, em função de ter mostrado maior coeficiente de confiabilidade em relação ao GU, provavelmente, pela menor influência que o avaliador exerce sobre ele durante a medida.