versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.31 no.4 Rio de Janeiro jul./ago. 2018 Epub 14-Jun-2018
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20180035
As cardiopatias congênitas, definidas como anormalidades estruturais do coração ou dos vasos intratorácicos, nas diferentes formas anatômicas, constituem uma das anomalias congênitas mais frequentes ao nascimento.1-3 São as malformações de maior impacto na morbimortalidade de crianças e nos custos com serviços de saúde4 e representam a principal causa de morte entre todas as malformações congênitas.5
A prevalência das cardiopatias congênitas figura entre quatro a nove por mil recém-nascidos vivos, com estimativa de 1,5 milhão de casos novos por ano, em todo o globo.2,6,7
Hoffman estimou que, no período entre os anos de 1940 e 2002, nasceram, nos Estados, 1,5 milhão de afetados por cardiopatia.2 No Brasil, estima-se o surgimento de 28.846 novos casos de cardiopatias congênitas por ano. Em torno de 20% dos casos, a cura é espontânea, e está relacionada a defeitos menos complexos e de repercussão hemodinâmica discreta.8
A estimativa de necessidade de procedimentos cirúrgicos para correção de cardiopatias congênitas é de 7,2 por mil nascimentos, com relatos de défices mais significativos para tratamento nas Regiões Norte e Nordeste, com índices próximos a 90%, e menos importantes nas Regiões Sul e Centro-Oeste, com 46,4% e 57,4%, respectivamente.8,9
As cardiopatias congênitas são importantes causas de internações hospitalares em pacientes pediátricos e, quanto mais precoces o diagnóstico e a intervenção terapêutica dessas condições, menores são os índices de mortalidade e as taxas de reinternações hospitalares, e melhor a qualidade de vida dessas crianças.10
Considerando a natureza grave ou potencialmente grave dessas cardiopatias, que podem trazer repercussões significativas de morbimortalidade, é imprescindível o conhecimento da realidade das cardiopatias no único hospital público de referência para estas condições no Estado do Pará.
O objetivo deste estudo foi analisar o tempo de espera para realização de tratamento eletivo cirúrgico e/ou intervencionista em crianças portadoras de cardiopatias congênitas em um centro de referência cardiológico, além de avaliar a procedência dos pacientes, e fazer considerações sobre as cardiopatias e suas formas de tratamento na referida instituição.
Estudo de caráter transversal de pacientes com idade igual ou inferior a 14 anos, com diagnóstico de malformações cardíacas congênitas, que esperavam por tratamentos cardíacos cirúrgicos ou percutâneos, incluindo casos de reoperação.
Os dados foram provenientes do Serviço de Arquivo Médico e Estatística (SAME) da Fundação Hospital de Clínicas Gaspar Vianna. Constituíram as variáveis do estudo: sexo, idade, local de residência, diagnóstico e tempo de espera pelo procedimento. Adicionalmente, foram coletados dados de pacientes submetidos a tratamento cirúrgico e/ou por cateterismo no período de janeiro de 2012 a outubro de 2014.
Foi realizada uma análise descritiva dos dados utilizando o programa BioStat, e as variáveis foram apresentadas por meio de medidas de tendência central e dispersão ou frequências.
O presente estudo foi submetido à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Fundação Hospital de Clínicas Gaspar Vianna, CAAE 39903014.2.0000.0016.
Dentre as 417 crianças que aguardavam por cirurgia cardíaca ou procedimento hemodinâmico, 407 tinham diagnóstico de cardiopatias congênitas; destas, 55,1% eram do sexo feminino, e as faixas etárias mais prevalentes foram a pré-escolar (> 2 a 6 anos), com 34,0%, e a escolar (> 6 a 12 anos), com 33,3% (Tabela 1). A média de idade foi de 5,7 (± 3,9), com mediana de 5,0, variando de 1 mês a 14 anos. Não existiam neonatos na fila de espera.
Tabela 1 Pacientes cadastrados para procedimento cardíaco infantil eletivo
Característica | n total (%) |
---|---|
Sexo | |
Masculino | 183 (44,94) |
Feminino | 224 (55,06) |
Faixa etária, anos | |
< 1 | 45 (11,06) |
1-2 | 66 (16,22) |
> 2-6 | 142 (34,89) |
> 6-12 | 133 (32,68) |
> 12 | 21 (5,16) |
Tempo de espera | |
< 1 mês | 0 |
1-6 meses | 80 (19,66) |
7 meses-1 ano | 50 (12,29) |
> 1-3 anos | 197 (48,4) |
> 3-5 anos | 57 (14) |
> 5 anos | 23 (5,65) |
Mesorregião paraense* | |
Metropolitana de Belém: An anindeua, Barcarena, Castanhal, Santa Izabel do Pará, Belém, Santo Antonio do Tauá, Benevides e Marituba | 149 (36,60) |
Nordeste Paraense: Abaetetuba, Santa Luzia do Pará, Acará, Irituia, Santa Maria do Pará, Augusto Corrêa, Aurora do Pará, Mãe do Rio, São Caetano de Odivelas, Baião, São Domingos do Capim, Maracanã, Bragança, Marapanim, Mocajuba, São João de Pirabas, Cametá, Moju, São Miguel do Guamá, Capanema, Nova Esperança do Piriá, Tailândia, Capitão Poço, Colares, Oeiras do Pará, Tomé-Açu, Ourém, Tracuateua, Curuçá, Peixe-Boi, Primavera, Viseu, Igarapé-Açu, Igarapé-Miri e Salinópolis | 111 (27,27) |
Sudeste Paraense: Rio Maria, Itupiranga, Rondon do Pará, Jacundá, Bom Jesus do Tocantins, Marabá, Santana do Araguaia, Nova Ipixuna, Breu Branco, Novo Repartimento, São Félix do Xingu, Canaã dos Carajás, Conceição do Araguaia, Paragominas, Curionópolis, Parauapebas, Tucumã, Dom Eliseu, Pau D'arco, Tucuruí, Eldorado do Carajás, Ulianópolis, Redenção e Xinguara | 72 (17,69) |
Baixo Amazonas: Alenquer, Juruti, Almeirim, Monte Alegre, Prainha,Óbidos, Santarém, Curuá, Oriximiná e Placas | 33 (8,10) |
Marajó: Curralinho, Salvaterra, Anajás, Gurupá, Melgaço Breves, Soure, Cachoeira do Arari, Ponta de Pedras, Chaves e Portel | 22 (5,40) |
Sudoeste Paraense: Altamira, Medicilândia, Pacajá, Itaituba e Rurópolis | 19 (4,66) |
*Para todas as características, n = 407, para as mesorregiões, n = 406;
† excetuando-se um paciente procedente de Santana (AP).
O tempo médio de espera, em meses, foi 23,1 ± 18,3, com mediana de 19, mínimo de 1 mês e máximo de 94 meses. Os dois pacientes que aguardavam há 91 e 94 meses (maiores períodos de espera) encontravam-se incomunicáveis pelo serviço social da instituição, o que pode justificar o atraso.
Em relação à procedência, 36,6% eram provenientes da Mesorregião Metropolitana de Belém, seguidos de 27,2% do Nordeste Paraense, 17,6% do Sudeste Paraense e os 18,1% restantes, do Baixo Amazonas, Sudoeste do Pará e Marajó juntos; um paciente era procedente de Amapá (Figura 1).
Figura 1 Distribuição dos pacientes em espera para cirurgia cardíaca infantil eletiva segundo local de residência em mesorregiões.
O tipo de cardiopatia congênita diagnosticada mais comumente encontrado foi a comunicação interventricular (CIV), isolada ou associada a outras malformações cardíacas, totalizando 28,98%, seguida de persistência do canal arterial (PCA) com 18,42%, comunicação interatrial (CIA) com 11,05%, com ou sem associações, e tetralogia de Fallot com 8,59% (Tabela 2).
Tabela 2 Tipo de cardiopatia congênita dos pacientes cadastrados para procedimento eletivo
Cardiopatias | n (%) |
---|---|
Comunicação interventricular | 110 (27,02) |
Persistência do canal arterial | 75 (18,42) |
Comunicação interatrial | 41 (10,07) |
Tetratlogia de Fallot | 35 (8,59) |
Estenose pulmonar congênita | 24 (5,89) |
Coarctação da aorta | 15 (3,68) |
Atresia pulmonar | 12 (2,94) |
Comunicação interventricular + associações* | 8 (1,96) |
Estenose aórtica congênita | 8 (1,96) |
Comunicação atrioventricular | 7 (1,71) |
Dupla via de saída do ventrículo direito | 5 (1,22) |
Estenose congênita tricúspide | 5 (1,22) |
Insuficiência mitral congênita | 5 (1,22) |
Síndrome do coração direito hipoplásico | 4 (0,98) |
Tronco arterial comum | 3 (0,73) |
Ventrículo com dupla via de entrada | 3 (0,73) |
Comunicação interatrial + estenose pulmonar | 3 (0,73) |
Estenose subaórtica congênita | 2 (0,49 |
Cor triatriatum | 1 (0,24) |
Anomalia de Ebstein | 1 (0,24) |
Síndrome do coração esquerdo hipoplásico | 1 (0,24) |
Drenagem anômala de veias pulmonares | 1 (0,24) |
Aneurisma cardíaco | 1 (0,24) |
Comunicação atrioventricular discordante | 1 (0,24) |
Comunicação ventrículo-atrial discordante | 1 (0,24) |
Dupla via de saída do ventrículo esquerdo | 1 (0,24) |
Insuficiência aórtica | 1 (0,24) |
Dupla lesão de valva mitral | 1 (0,24) |
Insuficiência pulmonar congênita | 1 (0,24) |
Outros† | 34 (8,35) |
*Persistência do canal arterial, comunicação interatrial, estenose pulmonar e coarctação de aorta;
†outras malformações congênitas da valva tricúspide, outras malformações congênitas das câmaras e das comunicações cardíacas, malformações congênitas dos septos cardíacos, malformação congênita não específica da valva tricúspide, malformações dos vasos coronários, hipertensão pulmonar primária e secundária, e não registrados.
Quanto às cirurgias efetivadas, em 2012, 172 crianças foram submetidas a 201 cirurgias cardíacas infantis; em 2013, 176 pacientes passaram por 207 cirurgias; e, em 2014, até outubro, 146 submeteram-se a 158 cirurgias cardíacas. Em 85,3% dos casos, foi possível determinar se a criança estava previamente cadastrada para tratamento eletivo ou não: em 2012, 62,2% não eram cadastrados, sendo operados em caráter de urgência, e somente 37,7% pertenciam ao grupo de cadastro eletivo. Em 2013, o mesmo evento repetiu-se, com 59,0% e 40,9%, respectivamente (Tabela 3).
Tabela 3 Pacientes submetidos à cirurgia cardíaca infantil segundo situação de cadastro na fila de espera para procedimento cardíaco
Mês | 2012 (n = 201) | 2013 (n = 207) | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Cadastrados | Não cadastrados | Não informado | Cadastrados | Não cadastrados | Não informado | |
Janeiro | 8 (3,98) | 8 (3,98) | 1 (0,50) | 5 (2,42) | 11 (5,31) | 6 (2,90) |
Fevereiro | 6 (2,99) | 5 (2,49) | 3 (0,49) | 6 (2,90) | 14 (6,76) | 5 (2,42) |
Março | 4 (1,99) | 10 (4,98) | 4 (1,99) | 8 (3,86) | 17 (8,21) | 2 (0,97) |
Abril | 0 | 3 (1,49) | 2 (1,00) | 6 (2,90) | 3 (1,45) | 2 (0,97) |
Maio | 0 | 12 (5,97) | 0 | 6 (2,90) | 4 (1,93) | 0 |
Junho | 4 (1,99) | 14 (6,97) | 2 (1,00) | 4 (1,93) | 7 (3,38) | 2 (0,97) |
Julho | 6 (2,99) | 6 (2,99) | 3 (1,49) | 5 (2,42) | 12 (5,80) | 6 (2,90) |
Agosto | 4 (1,99) | 12 (5,97) | 5 (2,49) | 6 (2,90) | 11 (5,31) | 1 (0,48) |
Setembro | 9 (4,48) | 5 (2,49) | 2 (1,00) | 6 (2,90) | 6 (2,90) | 4 (1,93) |
Outubro | 12 (5,97) | 8 (3,98) | 1 (0,50) | 8 (3,86) | 7 (3,38) | 0 |
Novembro | 5 (2,49) | 13 (6,47) | 3 (1,49) | 4 (1,93) | 8 (3,86) | 1 (0,48) |
Dezembro | 7 (3,48) | 11 (5,47) | 3 (1,49) | 8 (3,86) | 4 (1,93) | 2 (0,97) |
Em 2012, foram realizadas, em média, 16,7 cirurgias cardíacas pediátricas por mês. Em 2013, esta média foi de 17,2 e, em 2014, até o fechamento de outubro, de 15,8. Entre os procedimentos hemodinâmicos pediátricos, houve um crescimento maior: em 2012, a média de procedimentos mensal foi de 9,5, em 2013 de 9,8 e até outubro de 2014, de 13,6 (Tabela 4).
Tabela 4 Procedimentos cirúrgicos e hemodinâmicos (diagnósticos e terapêuticos) realizados por ano
Mês | Cirurgias | Procedimentos hemodinâmicos | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
2012 | 2013 | 2014 | 2012 | 2013 | 2014 | |
Janeiro | 17 | 22 | 21 | 10 | 9 | 18 |
Fevereiro | 14 | 25 | 17 | 8 | 7 | 4 |
Março | 18 | 27 | 16 | 7 | 11 | 11 |
Abril | 5 | 11 | 18 | 3 | 3 | 13 |
Maio | 12 | 10 | 13 | 13 | 9 | 15 |
Junho | 20 | 13 | 15 | 11 | 11 | 14 |
Julho | 15 | 23 | 17 | 14 | 14 | 15 |
Agosto | 21 | 18 | 15 | 12 | 9 | 12 |
Setembro | 16 | 16 | 12 | 20 | 12 | 20 |
Outubro | 21 | 15 | 14 | 6 | 18 | 13 |
Novembro | 21 | 13 | - | 4 | 8 | - |
Dezembro | 21 | 14 | - | 7 | 7 | - |
Em relação ao tipo de procedimento hemodinâmico, a realização de cateterismo cardíaco diagnóstico foi de 73,9%, enquanto que o número de intervenções terapêuticas correspondeu a 26,1% do total realizado desde 2012 (Tabela 5, Figura 2).
Tabela 5 Procedimentos hemodinâmicos realizados de acordo com o tipo de intervenção por ano
Procedimento | 2012 | 2013 | 2014 |
---|---|---|---|
Cateterismo diagnóstico | 77 | 87 | 108 |
Cateterismo diagnóstico + intervenção percutânea | 24 | 27 | 27 |
Cateterismo + angioplastia | 23 | 17 | 13 |
Cateterismo + embolização | 0 | 3 | 0 |
Cateterismo + fechamento de PCA/CIA/CIV | 0 | 3 | 5 |
Cateterismo + atriosseptostomia | 0 | 1 | 0 |
Cateterismo + valvoplastia | 1 | 3 | 9 |
Intervenção percutânea | 14 | 4 | 0 |
Embolização pulmonar | 1 | 1 | 0 |
Valvoplastia | 5 | 1 | 0 |
Angioplastia | 8 | 1 | 0 |
Fechamento de PCA | 0 | 1 | 0 |
PCA: persistência do canal arterial; CIA: comunicação interatrial; CIV: comunicação interventricular.
Do total de 662 procedimentos cardíacos terapêuticos realizados entre 2012 a outubro de 2014, 86,1% corresponderam às cirurgias cardíacas e somente 13,8% às intervenções percutâneas. Esta proporção manteve-se estável ao longo dos anos (Tabela 6).
Tabela 6 Cirurgia cardíaca e procedimentos hemodinâmicos terapêuticos
Tratamento | 2012 | 2013 | 2014 |
---|---|---|---|
Cirúrgico | 201 (84,10) | 207 (86,97) | 158 (85,40) |
Percutâneo | 38 (15,89) | 31 (13,02) | 27 (14,59) |
No Brasil, estima-se que a necessidade média de cirurgia cardiovascular em congênitos é em torno de 23 mil procedimentos/ano, considerando nesta estimativa, além dos novos nascimentos com cardiopatia congênita, os casos de reintervenções. Em 2002, foram operados 8.092 pacientes, o que evidencia defasagem de 65% − com maiores índices na Região Norte (93,5%).9
No presente estudo, observou-se que, entre as 407 crianças com diagnóstico de cardiopatias congênitas, as faixas etárias mais prevalentes foram a pré-escolar (> 2 a 6 anos) e a escolar (> 6 a 12 anos), não havendo neonatos na fila de espera. Estes resultados diferem dos observados em análise de prevalência de cardiopatias congênitas na ocasião do primeiro atendimento em um hospital infantil de Curitiba (PR), em que houve predomínio de crianças com cardiopatia congênita no período de lactente, seguido do período neonatal, com 52,1%, e 19,4%, respectivamente.11 Considerando que a casuística do presente estudo referiu-se aos pacientes que aguardavam por procedimentos eletivos, isto pode refletir as diferenças no tempo de encaminhamento desses pacientes e a demora durante a permanência na fila de espera.
Em relação ao tipo de cardiopatia congênita, o mais frequente foi CIV, seguido de PCA e CIA. Estes resultados são convergentes com os encontrados no estudo de Aragão et al.,12 que demonstrou a seguinte frequência: CIV (21%), PCA (18%), tetralogia de Fallot (14%) e CIA (7,7%). Já Huber et al.,13 apresentaram o seguinte: CIV com ou sem associações (13,9%), tetralogia de Fallot (12,9%), lesões obstrutivas da via de saída do ventrículo direito (9,8%) e CIA isolada (9,6%). Pode-se dizer que a instituição estudada tinha características semelhantes às de outras regiões do Brasil.
A origem mais frequente das crianças que compunham a fila de espera para procedimento cardiológico foi a Mesorregião Metropolitana de Belém, resultado concordante com os de hospital de referência na Região Nordeste do país, em que a maioria das crianças era proveniente da região metropolitana do Estado.12
No entanto, 63,4% das crianças não pertenciam à Região Metropolitana de Belém; assim, um ponto a ser discutido é a necessidade de habilitação de novas unidades de referência em alta complexidade cardiovascular no Estado do Pará. Para a distribuição geográfica dos Serviços de Assistência de Alta Complexidade em Cirurgia Cardiovascular Pediátrica, de acordo com a Portaria 210,14 que toma como base a proporção de 1:800 mil habitantes, o Estado do Pará necessita de nove centros com capacidade para realizar cirurgia cardiovascular pediátrica, porém a regionalização dos serviços ainda não se concretizou, gerando défice de 78,49%.15 Essa realidade pode ser explicada por diversas causas, como falta de profissionais qualificados e de instituições hospitalares com infraestrutura, para que sejam realizados os complexos procedimentos demandados.
Em nossa realidade, há ainda a hipótese de que o baixo índice de pacientes procedentes das regiões do Baixo Amazonas, Marajó e Sudoeste Paraense seja devido às dificuldades de acesso ao atendimento básico para essa população, gerando, por conseguinte, subdiagnósticos de cardiopatias congênitas e, portanto, menor referenciamento ao centro estudado.
Um serviço de alta complexidade requer atenção multiprofissional, com cirurgiões cardíacos, hemodinamicistas, cardiologistas pediátricos, anestesistas, intensivistas pediátricos, pediatras de atenção hospitalar e ambulatorial, perfusionistas, enfermeiros e fisioterapeutas. Os resultados do tratamento devem fazer parte de um ciclo de atendimento ao longo da vida, e não ser apenas o resultado cirúrgico imediato. O número grande de pacientes com malformações cardíacas demanda cooperação multi-institucional para atingir esses objetivos.16
A Fundação Hospital de Clínicas Gaspar Vianna é o único hospital público de referência no Pará que realiza tratamento hemodinâmico e cirúrgico de cardiopatia congênita na infância. A média mensal de cirurgias cardíacas foi semelhante no período estudado (16,6 cirurgias/mês). Já em relação aos procedimentos hemodinâmicos pediátricos (cateterismo diagnóstico e/ou terapêutico), houve crescimento: em 2012, a média de procedimentos mensal foi de 9,5; em 2013, de 9,8; e, em 2014, até outubro, de 13,6 - importante frisar que este crescimento foi acompanhado do aumento no número de cateterismo diagnóstico em detrimento do tratamento. Este último, por sua vez, representou somente 14,85% de todos os procedimentos terapêuticos.
A baixa realização de cateterismo terapêutico a contraponto do diagnóstico é consequência da ausência de outros métodos diagnósticos, como tomografia e ressonância magnética cardíaca, pela possível falta de próteses para procedimentos percutâneos terapêuticos.
Considerando-se que CIV, CIA, PCA, estenose pulmonar congênita e coarctação de aorta perfazem 65,2% de todos os diagnósticos, que são malformações potencialmente tratáveis por cateterismo, percebe-se a baixa taxa de realização destas intervenções em nossa realidade. Assim, investir no tratamento hemodinâmico é uma estratégia para reduzir a fila de espera, uma vez que o tratamento intervencionista não exige tempo prolongado de internação17 e, assim, favorece a maior rotatividade dos leitos de retaguarda, compostos pelos leitos de unidade de terapia intensiva e enfermaria pediátrica.
Paralelamente, observa-se, no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo que os números de intervenções percutâneas mantiveram-se estáveis, registrando uma não atendida por limitações estruturais, considerada a quantidade limitada de leitos na instituição.18
Fazer investimentos na redução do tempo de espera para o procedimento cardiovascular congênito assegura também resultados de morbimortalidade. No entanto, isso gera elevado custeio de curto prazo ao Sistema Único de Saúde (SUS). As próteses para fechamento de CIA, CIV e PCA não têm cobertura pelo SUS, o que gera mais dificuldades em suas aquisições. Há também o desafio do repasse financeiro, por vezes insuficiente para as cirurgias cardíacas, limitando sua expansão. O fato de quase não haver diferenciação no pagamento do procedimento respeitando seu grau de complexidade pune o centro de referência que se dedica aos casos mais complexos e desestimula o crescimento do número de procedimentos em neonatos e lactentes, em especial nos escores de complexidade mais elevados. Alguns estudos internacionais têm demonstrado que existe relação linear entre a complexidade e o custo do procedimento.19
Outra grande dificuldade que o serviço encontra para a redução da fila de espera de cirurgia cardíaca eletiva é a elevada demanda de cirurgias de urgência em pacientes sem cadastro prévio, uma vez que estes casos são priorizados em detrimento aos da demanda eletiva. Uma estratégia para amenizar o problema, em curto prazo, seria a realização de mutirões de cirurgias cardíacas congênitas para o atendimento de pacientes já cadastrados na fila, a fim de reduzir a demanda reprimida dos usuários do SUS.19
Neste sentido, propõe-se: criação de polos de atendimento ambulatorial e especializado, para diagnóstico e tratamento precoce da população, diminuindo subdiagnósticos e melhorando o seguimento clínico pré e pós-operatório, com possível diminuição de gastos para tratamento fora de domicílio e consequentemente, menor impacto social às famílias envolvidas; investimento em diagnóstico por tomografia computadorizada e ressonância magnética cardiológica, o que reduziria os cateterismos diagnósticos e aumentaria a disponibilidade de suporte hospitalar para procedimentos terapêuticos; o fomento a procedimentos hemodinâmicos, incluindo política de financiamento de órteses, próteses e materiais especiais (OPME) não cobertos pelo SUS, por conta da comprovada eficácia e do menor tempo de internação, com consequente diminuição de gastos hospitalares e aumento no volume de casos tratados por unidade de tempo; aumento da capacidade funcional instalada no hospital de referência; descentralização do atendimento cirúrgico e hemodinâmico cardiológico, com interiorização deste tipo de serviço em cidades de médio porte, como Marabá e Santarém, ambas no Estado do Pará; e registro fidedigno, detalhado e atualizado de dados referentes aos procedimentos cirúrgicos e hemodinâmicos, para controle e avaliação permanente dos resultados. A promoção de melhorias no atendimento à criança cardiopata é uma prioridade e envolve a participação de todos − poder público, profissionais e diversos setores da sociedade.
Grande parte das crianças que aguardam por procedimento cardíaco é procedente de fora da região metropolitana e tem malformações potencialmente tratáveis por cateterismo. Porém, mesmo com mudanças no perfil de tratamentos, com crescimento da abordagem percutânea nos últimos anos, esta ainda necessita de maior incremento.
As limitações do sistema público hospitalar em suprir a grande demanda da região por procedimentos cardiovasculares terapêuticos eletivos geram importante défice assistencial, com necessidade de ampliação da capacidade funcional do único centro de referência público para estas doenças na região, bem como de descentralização do atendimento cardiológico, clínico, cirúrgico e hemodinâmico, para melhor atender a população que depende do SUS.