versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.23 no.4 Rio de Janeiro 2019 Epub 30-Set-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2019-0022
Durante o período gestacional, as mulheres se preparam para o nascimento do filho, vivenciando momentos de realização pessoal, satisfação, felicidade, expectativas, mas, também, preocupação, ansiedade, dúvidas, angústias, inseguranças e medo. A gravidez é um acontecimento de muita significação para as mulheres e suas famílias1-2. Com a chegada de um bebê com malformação congênita, surgem sentimentos que rompem com a idealização de uma criança perfeita, acentuando-se a lacuna entre o que se imaginou e/ou desejou e o que se apresenta na realidade, trazendo à tona a transformação da realidade imaginada, de um modo muito particular para as mães - e os que com ela se encontravam envolvidos, gerando um desgaste emocional, com alteração de planos e rotinas1, e da vida.
A sociedade estabelece e valoriza padrões de força, eficácia, beleza e perfeição, com destaque na eficiência e saúde da criança.3 De uma forma geral, não se espera que o filho adoeça, no entanto, quando não há um prognóstico favorável, essa situação pode ser considerada desesperadora, principalmente quando existe a possibilidade de a criança vir a morrer,4 ou viver em uma situação de adoecimento. Surgindo incialmente, no Nordeste brasileiro, desencadeou uma forte comoção social no Brasil, demarcando um antes e um depois na vida de mulheres, cujos filhos, foram atingidos pela microcefalia associada a alterações neurológicas e cognitivas, em consequência da infecção congênita pelo Zika vírus (ZIKV)5-6.
Em agosto de 2015, neuropediatras de hospitais públicos do Recife/Pernambuco, Brasil, identificaram um incremento de casos de microcefalia associados a anomalias cerebrais, observando-se, a partir daí, aquilo que viria a se constituir como uma nova entidade nosológica. Tal fato se configurou como uma possibilidade de experiência única.6 Todavia, enquanto a relação do Zika vírus com a microcefalia era investigada, pesquisadores já apontavam que podia se tratar de uma síndrome congênita com diversos sintomas, com comprometimento neurológico ao nascimento, podendo ser acompanhado de diversas complicações. Começava-se a descrever a Síndrome Congênita do Zika vírus (SCZV).7 A situação agravou-se e, em fevereiro de 2016, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou situação de emergência global.8
A microcefalia é o traço mais evidente da SCZV, que abrange sinais e sintomas que comprometem o desenvolvimento cerebral e a adequada função do sistema nervoso central dos recém-nascidos.9 Sendo assim, diante dos casos notificados, tornou-se importante aprofundar o conhecimento sobre o Zika vírus na gestação e suas possíveis implicações, para planejar ações no tocante à prevenção e promoção à saúde da mãe e do recém-nascido, assim como oferecer acompanhamento pré-natal das gestantes infectadas.10
Os efeitos da infecção pelo vírus surpreenderam a população, pesquisadores, profissionais e as autoridades de saúde no Brasil e no mundo.11 Estudo realizado em João Pessoa/PB, entre mães de crianças com microcefalia, desvendou que, quando tomaram conhecimento do diagnóstico, muitas dúvidas surgiram acerca da doença, desde a sua origem, prováveis consequências para o bebê, bem como incertezas sobre os tratamentos e sequelas,12 destacando que é necessário conhecer mais sobre o Zika vírus e suas possíveis complicações13, bem como os efeitos e repercussões nas vidas de mulheres, mães de crianças nesta condição, das suas famílias, e, numa instância mais ampla, as implicações para a (re)organização do sistema, dos serviços e ações em saúde, além de mobilização social.
A epidemia do Zika vírus apresentou um efeito concreto na vida dessas mulheres, grande parte nordestinas, pobres, vivendo em regiões periféricas do país.14 Frente a uma infecção para a qual não existe proteção específica e com potencial teratogênico, a imprecisão dos dados e a falta de conhecimento acerca do vírus, bem como de suas consequências podem influenciar diretamente na vulnerabilidade das mães, despontando, durante a gestação, o medo de que o filho poderia ser acometido pela microcefalia.12-3 A partir do diagnóstico da SCZV, a adaptação e enfrentamento tornam-se preocupações importantes, uma vez que se trata de crianças de mulheres que convivem com o mosquito vetor como parte da vida cotidiana há mais de quatro décadas, dificultando o entendimento e aceitação das consequências na atualidade.15
Em pesquisa, no primeiro hospital referência em Campina Grande/PB, as mulheres se reconheciam como uma comunidade de vítimas da epidemia, comparando os efeitos do Zika vírus em seus filhos, explicando ainda a relação das sequelas nas crianças com a infecção no início da gestação.15
Assim, ganha sentido o que se insere no ditame do texto constitucional em torno da saúde, um direito de todos e um dever do Estado, em particular a universalidade e a descentralização das políticas, acrescentando-se a responsabilização do Estado em assegurar o acesso às condições de saúde, ajustados aos direitos sociais fundamentais dispostos na mesma Constituição e afinados à ordem constitucional brasileira.16 No caso da infecção pelo Zika vírus, tendo em vista a sua complexidade, o desafio que se coloca é garantir que a assistência seja realizada no SUS.17
Vale destacar, com base na prevalência média anual de microcefalia relacionada à infecção pelo Zika vírus nos estados da Região Nordeste, Brasil, em 2015-2016, que se reconheceu o Estado de Pernambuco como o epicentro da epidemia, acompanhado pelo Estado da Bahia, considerando-se o número de casos, em comparação a outros estados do Nordeste que foram acometidos pela epidemia no mesmo período. Taxas de alta prevalência foram também encontradas na Paraíba (27,3/10 mil nascidos vivos), locus deste estudo.17
No final do ano de 2015, em Campina Grande/Paraíba, Brasil, foi inaugurado em um hospital do município, o Ambulatório de Microcefalia.15 Um documentário de circulação nacional e internacional abordou a questão, colocando em foco a luta das mulheres a partir da confirmação do diagnóstico.14
Nessa perspectiva, as pesquisas devem ampliar o conhecimento e a compreensão sobre os problemas que se impõem à vida das mulheres mães e que pela experiência adquirida podem produzir de sentidos para outras mulheres mães na mesma situação. O termo “experiência” foi escolhido a partir da sua etimologia e de seus usos em diversas línguas ocidentais, com um significado que se estende em duas direções possíveis, do conhecimento adquirido com a prática e da vivência emocional que é inerente ao acúmulo desse conhecimento. A experiência está mais relacionada com os sentidos do corpo humano do que com o pensamento, determinada pelo contato com o real.18
Assim, buscou-se evidenciar a experiência de mulheres mães de filhos acometidos pela SCZV, e, a partir disto, o que elas diriam a outras que se encontrem na mesma situação. A escuta do que estas mulheres teriam a dizer a outras nos remete ao cuidado, que assinala atitudes que engendram desvelo, solicitude e atenção que nos liga ao outro; também, preocupação, inquietação e (des)conforto, colocando em relação aqueles que cuidam e aqueles que são/deveriam ser cuidados.19 Assim, ao escutá-las, possibilita-se a compreensão de forma mais vasta da realidade e como elas têm passado pela situação.
A partir dessa inquietação, reconheceu-se o lugar da fala destas mulheres mães, tanto na produção de conhecimento, quanto na negociação de incertezas que lhes impõe a biomedicina. Assim, vão (re)construindo sua própria maternagem, como também (re)significam o que se pode denominar de especial em relação às suas crianças15 e a elas mesmas - mulheres mães especiais, ambas, em suas singularidades.
Acredita-se que as experiências de mães da primeira geração de crianças com a SCZV possam contribuir para a ampliação de perspectivas e qualificação do cuidado diante de um novo surto que venha a acontecer e essas mulheres possam ampliar um pouco essas experiências. Para tanto, usamos a questão de pesquisa: “O que mães de crianças com a Síndrome Congênita do Zika vírus diriam para mulheres grávidas de filhos com diagnóstico de microcefalia associada ao Zika vírus?”, a qual originou o objetivo deste estudo, que foi: compreender os significados de ter um filho com a Síndrome Congênita do Zika vírus na experiência de mulheres e, a partir disso, o que elas diriam a outras que se encontrem na mesma situação.
Estudo qualitativo, em que se utilizou os pressupostos do método da descrição interpretativa. A abordagem qualitativa busca o desvelar do fenômeno por si mesmo, sendo explicada como um universo de significados profundos, anseios, crenças, valores e atitudes, bastante usada em histórias de vidas, nas quais as construções humanas significativas não podem ser perceptíveis e nem captáveis em estudos quantitativos.20 A partir das narrativas, encontra-se a abordagem ideal para compreender a organização, o processo de socialização, a situação de emergência presente em um grupo, assim como as respostas situacionais às contingências habituais.21
A descrição interpretativa é considerada uma abordagem metodológica, que tem colaborado para a compreensão sobre a saúde humana e a experiência de doenças que implicam em consequências e vem sendo utilizada como embasamento para apoiar diversos estudos de Enfermagem.22
O estudo foi desenvolvido no Centro Especializado em Reabilitação (CER) de Campina Grande/PB, que é referência, na Paraíba, na assistência a pessoas com todos os tipos de deficiências, incluindo as crianças com Síndrome Congênita do Zika vírus, tendo aproximadamente 100 cadastradas, por isto, escolhido como local da pesquisa. Atualmente são atendidas mais de 2.800 pessoas de 183 municípios diferentes. Dos pacientes cadastrados, 800 são de Campina Grande e os demais, procedentes de diversas áreas do estado, como Sertão, Curimataú e Cariri.23 O serviço dispõe de uma equipe multidisciplinar habilitada e serviços diversos, como fisioterapia aquática e terapia ocupacional. As gestantes e/ou as crianças diagnosticadas com a SCZV são encaminhadas pelos profissionais das Unidades Básicas de Saúde, onde recebem assistência especializada, passam por exames e, em caso de confirmação, iniciam acompanhamento.
O CER começou a funcionar em fevereiro de 2017 e não possuía um registro atualizado sobre as crianças cadastradas que apresentavam a SCZV, o que dificultou a aproximação inicial com as mães. O contato com as participantes foi feito na própria instituição e a seleção aconteceu por conveniência, de acordo com a disponibilidade de tempo das mães e o desejo de contribuir de forma voluntária com a pesquisa. A abordagem ocorreu na sala de espera do serviço a partir de conversa informal, momento no qual houve aproximação que possibilitou a apresentação da natureza da pesquisa.
Os critérios de inclusão para participação da pesquisa foram: mulheres acima de 18 anos acometidas pelo Zika vírus na gestação (confirmado por exame laboratorial) e filhos com diagnóstico da Síndrome Congênita do Zika vírus. Foram excluídas as mulheres cujos filhos apresentassem microcefalia associada a outras causas, mulheres com algum tipo de incapacidade cognitiva para participar da pesquisa, que não residissem no Estado da Paraíba e que não fossem cadastradas e atendidas no Centro Especializado em Reabilitação, bem como mães de crianças acompanhadas por outros familiares no atendimento.
Para o convite às mães, antes a pesquisadora apurou, em conversa informal, se ela atendia aos critérios de inclusão propostos, principalmente por muitas crianças não terem características típicas da microcefalia. Com algumas mães, a aproximação foi dificultada pela limitação de tempo, devido aos horários estabelecidos de transporte para retorno às suas residências, muitas vezes localizadas em outros municípios. No total, foram abordadas 48 mulheres. Dentre estas, duas mulheres manifestaram desinteresse em participar da pesquisa; uma delas referiu já ter participado de muitas pesquisas com questionamentos longos; em situação única, houve desencontro entre a pesquisadora e a participante convidada, destacando-se que esta mulher relatou estar “atacada” e preferia deixar a entrevista para outra oportunidade, porém, não aconteceu o encontro. Outras cinco mulheres foram excluídas por não atenderem aos critérios de inclusão: duas delas não eram as mães das crianças em atendimento do serviço e três relataram não terem confirmação se o diagnóstico dos filhos teria associação com o Zika vírus. Ao final, participaram da pesquisa 40 mulheres, mães de 43 crianças, pois, destas, três foram gestações gemelares.
A coleta de dados foi realizada durante os meses de junho a novembro de 2017, por meio de entrevista semiestruturada elaborada pela pesquisadora, tendo como referencial teórico o Modelo de Resiliência, Estresse, Ajustamento e Adaptação Familiar proposto por McCubbin e McCubbin,17 que visa explicar o potencial da família (neste estudo, elegemos a mãe como a figura central da família) para lidar com situações de crise e compreender os fatores relacionados com o ajustamento e adaptação frente à doença. Face a um evento estressor, neste caso, a SCZV, esta tenta manter o equilíbrio, e para tal utiliza os recursos ao seu alcance. As famílias são consideradas resilientes quando combatem com sucesso adversidades e/ou estresse ou quando conseguem reorganizar os seus padrões de funcionamento para enfrentar novos desafios.
Para a coleta de dados foi garantido um ambiente tranquilo e reservado, com privacidade da pesquisadora e entrevistada durante todo o período, atentando-se às medidas para prevenção e minimização de riscos. As entrevistas tiveram duração média de 20 minutos e 47 segundos, a entrevista mais longa durou 1 hora, 9 minutos e 29 segundos e a entrevista de menor duração foi de 9 minutos e 22 segundos.
Nestes encontros mediados por entrevistas buscou-se a compreensão dos significados de ter um filho com a Síndrome Congênita do Zika vírus na experiência de mulheres e, a partir disso, o que elas diriam a outras mulheres grávidas que se encontrassem na mesma situação. Desse modo, procuramos identificar de cada experiência singularidades, em meio a silêncios, choros, angústia, medo, desconhecimento, resignação, mas, também, a força expressada pelas participantes.
Para facilitar o processo de obtenção das narrativas, as perguntas e respostas foram gravadas com auxílio de mídia digital, garantindo-se prioritariamente o sigilo. As perguntas puderam permitir um relato espontâneo, capaz de gerar elementos suficientes para a pesquisadora transcrevê-los e interpretá-los posteriormente. As entrevistas foram transcritas na íntegra, mantendo-se todos os vícios de linguagem, interrupções, falas do pesquisador e falas das participantes. O segundo passo foi realizar uma leitura dos dados transcritos, o que permitiu um processo de organização dos discursos em narrativas.
Por atender inúmeros tipos de deficiências e malformações congênitas e não ter um dia certo para cada problema, bem como a pesquisadora não ter acesso a uma agenda do serviço, tornou-se necessário deslocar-se diversas vezes até o local, em busca das participantes, comparecendo-se ao campo quantas vezes foram necessárias durante o período da coleta de dados, com o intuito de abordar o maior número de mulheres possível.
A amostragem final foi feita por saturação teórica, quando se percebeu que não havia mais acréscimo nas informações obtidas. A saturação das entrevistas é operacionalmente definida como a suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos começaram a apresentar repetição e redundância. Para tanto, foram utilizados oito passos para estabelecer os critérios de saturação dos dados: disponibilizar os registros de dados brutos; imergir em cada registro; compilar as análises individuais; reunir os temas ou tipos de enunciados para cada pré-categoria ou nova categoria; codificar os dados; alocar os temas e tipos de enunciados; constatar a saturação teórica para cada pré-categoria ou nova categoria; e visualizar a saturação.25
Para preservar o anonimato nas transcrições, adotamos a seguinte forma de identificação: para mães, utilizou-se a inicial M, seguida do numeral ordinal que representa a ordem em que as entrevistas foram realizadas (M1, M2, ... M10), e assim sucessivamente.
Para a análise do material, foi utilizada a técnica de Análise do Conteúdo do tipo temática proposta por Bardin,26 definida por ser um conjunto de técnicas de análise das comunicações, tratando as informações provenientes das falas das participantes investigadas sobre determinado assunto, de modo que seja possível centralizar as ideias e categorizá-las tematicamente.
A pesquisa foi realizada após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Campina Grande, sob o Parecer número 2.118.518, de 13 de junho de 2017, em concordância com os padrões éticos exigidos pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.27
Participaram da pesquisa 40 mães de crianças com a Síndrome Congênita do Zika vírus de diferentes cidades do Estado da Paraíba, com idade entre 18 e 39 anos. Em relação à cor declarada, a maioria referiu ser parda (27 mães), cinco disseram ser brancas, quatro, negras, três, amarelas e uma não soube especificar. Sobre a situação conjugal, 29 tinham companheiro fixo (casadas ou com união estável), cinco eram solteiras, três, separadas, duas, divorciadas e uma havia ficado viúva. Os filhos tinham idade entre 1 ano (12 meses) e 2 anos e 2 meses (26 meses), com idade média de 19, 4 meses.
Os significados encontrados quanto ao que mães de crianças com a Síndrome Congênita do Zika vírus diriam para outras mulheres grávidas de filhos com diagnóstico de microcefalia associada ao Zika vírus foram classificados em três categorias temáticas: a força divina que transforma a vida das mães; sentimentos em dobro como fonte de superação; e o sentido da força das mães para além da doença.
Categoria 1: A força divina que transforma a vida das mães
Para suportar a dor, aceitar desafios e enfrentar mudanças em conviver com a síndrome, as mães mantinham a fé em Deus, ajudando-as a encarar a realidade imprevisível de ter um filho com uma doença com um prognóstico ainda desconhecido. Essa fé nascia a partir do filho especial, demonstrando essa força no que diriam a outras mães na mesma situação:
Que não precisava ficar tão abalada, porque Deus está no comando de tudo para ajudar (M1).
Que tivesse muita fé em Deus mesmo. Porque só quem sabe é quem tem uma criança com deficiência. Porque eu tiro por mim, é muito difícil cuidar... (M4)
Diria que ela não tivesse medo não, que Jesus dá o conforto para gente, né? Pra gente cuidar, dá força... no começo a gente tem medo, mas depois... (M7)
Que é difícil, é, né? Mas, para Deus, nada é difícil. Então... muita força e pedir força a Deus para continuar e cuidar do bebê, não abandonar ele (M15)
Eu daria conselho a ela, eu dizia a ela: Minha filha, tenha fé em Deus, não se desespere, não abaixe a cabeça, que Deus quer ver nós sorrindo. Então a senhora vá cuidar dos seus filhos, filha, se tiver, vá fazer o tratamento, não abandone, porque quando Deus manda a pessoa com a deficiência para a gente, é porque a gente sabe lutar, ele não vai dar a uma pessoa louca, que não sabe lutar, vencer na vida, eu só dou conselhos do bem às pessoas (M26).
Ô mulher, se apegue muito com Deus, que com Deus pode tudo, pode transformar o possível e o impossível, e, se não for, ele não põe além das nossas forças, Ele só dá aquilo que a gente pode carregar, é o que eu costumo dizer... (M36).
A categoria descrita foi a mais forte, aparecendo em grande parte das entrevistas. Destaca-se ainda a fé relacionada à gratidão de se ter um filho especial, na qual as mães revelaram que Deus só dá um filho especial para aquela mãe que sabe carregar.
Que Deus sabe de todas as coisas, que filho especial não é uma pedra de tanto peso na vida da gente não (M13).
Diria que Deus só dá filho especial para mãe que é especial [...] Deus só dá a carga que a gente pode carregar, ele não vai dar o que a gente não pode (M17). Para ela ter muita fé em Deus e agradecer também, porque não é qualquer pessoa que tem o privilégio de ter uma criança especial, Deus só dá o que pode carregar (M19).
Só diria assim, pra ela aceitar, porque a gente acha que é uma coisa muito difícil, mas Deus dá jeito para tudo e a gente consegue vencer tudo. Que não se desesperar, porque geralmente as mães se desesperam quando sabe, porque a gente nunca espera que tenha uma criança assim, mas, se veio assim, é porque Deus sabe que a gente pode (M20).
Ah, mulher, é tão difícil dizer... paciência, ter força, porque assim, se Deus deu, ela pode carregar. Ele não vai dar nada à gente se a gente não é capaz de carregar (M33).
Se fosse depois da gravidez, ela se preparasse, porque a luta é grande, se apegasse com Deus, porque a luta é pesada, mas também tem muita gratificação, né? Você vê que é um ser especial mandando por Deus (M14).
A partir das falas das mães, foi possível apreender que o termo “filho especial” é atribuído ao sentimento interligado a ser também uma “mãe especial”, no qual elas acreditam existir uma predestinação divina a partir da capacidade de aceitar o filho como uma graça recebida.
Categoria 2: Sentimentos em dobro como fonte de superação
O nascimento de uma criança com deficiência representa muitos desafios para a família. Nesta categoria, a paciência e o amor predominaram no sentido de ser o que realmente as crianças necessitam para terem uma existência digna frente a tantas limitações e sofrimento.
Se tiver grávida ou querer engravidar, que se cuide, e independente de como seu filho venha, que dê bastante amor e carinho, porque é isso que eles precisam. Porque nenhum pediu para vir ao mundo (M2).
Eu só diria que ela teria que ter muita paciência, porque dá muito trabalho (M8).
Que amasse o dobro, que o amor que a gente dá a eles é 10.000 vezes maior que de uma criança normal. E o cuidado também (M21).
Que ela tivesse muita paciência, né? Porque tem que ter paciência com essas crianças, né? E tivesse muito amor para ela, digo, é o que eu tenho, né? Assim, eu tenho muita paciência com minha filha, muito amor demais, dobrado, né? Porque tem que ter... (M37).
A experiência dessas mães não é fácil: além do acúmulo de demandas dentro da unidade familiar, a luta diária desde a gravidez, assim como a rotina exaustiva de cuidados com as crianças aparecem como fragilidades que deixam marcas. Paralelamente a isso, essas mulheres mostram que, apesar de todas as dificuldades, a paciência e o amor amparam no processo do enfrentamento.
Categoria 3: O sentido da força das mães para além da doença
Esta categoria trouxe que os sonhos das mães permanecem, alimentados pelo futuro dos filhos a partir de uma adaptação a uma situação inesperada, que requer a conquista de estratégias de enfrentamento pelos pais, mostrando a importância em se viver um dia de cada vez, como verbalizado nas falas:
Que, um dia, se Deus quiser, eles vão andar, correr, vão falar... vai demorar um pouquinho, mas vai chegar o tempo (M10).
Assim, a gente deve um ajudar os outros, ia dar força a ela, dizer o que passei, dar força... é difícil, é, mas a gente tem que aceitar que é um filho, é difícil, é, mas a gente tem que enfrentar. Ia dar força, explicar o que eu passei, o que estou passando hoje... (M18).
Não é fácil, mas é confiar, é ter fé, porque não tem outra alternativa, é viver um dia após o outro. Não pensar no passado nem no futuro, é viver o presente (M29).
Que elas tenham esperança, porque não é nada daquilo que o povo fala, que o povo faz um alvoroço, que você pensa que as crianças não têm nada pela frente (M31).
Não bastasse o impacto do diagnóstico, as mudanças enfrentadas e a necessidade de adaptação frente à situação, surge uma força que impulsiona essas mães, observada através de discursos que dão lições de vida e de superação.
Além das limitações próprias da síndrome, decorrentes especialmente das alterações neuropsicomotoras, existem os desafios e mudanças impostos na vida dessas famílias. Por serem o primeiro contato social da criança, as mães geralmente carregam uma responsabilidade maior e nos recursos pessoais estão as soluções que elas encontram para enfrentar a realidade de ter um filho com a SCZV. Como forma de superação, muitas vezes buscam apoio e força na fé, nos sentimentos pela criança e na esperança, sendo um conforto nos momentos de crises.
As expressões “espiritualidade”, “religiosidade” e “fé” são empregues comumente como sinônimos, mas seus significados não são os mesmos, apesar de, no senso comum, confundirem-se. A espiritualidade detém um conceito mais amplo, que permite acreditar em uma força espiritual maior, independentemente da religião. A religiosidade advém de uma estrutura institucional no sentido de ampliar uma consciência espiritual, a partir da religião. A fé confere paz e força para suportar os obstáculos do cotidiano, apontando o sentido e o propósito da vida.28
A expressão de fé apareceu como fonte de apoio e suporte para esse enfrentamento. Essa fé faz parte da espiritualidade, que denota ter esperança, acreditar em algo como porto seguro, ajudando no fortalecimento familiar. A fé dá significado aos seres humanos diante das situações inesperadas de vida.29
Para os pais de crianças com cardiopatia congênita entrevistados numa Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do Rio Grande do Sul, a espiritualidade apareceu como fator imperativo no enfrentamento do processo de adoecer de um filho, no qual as manifestações apresentadas foram a fé na cura e/ou melhora e a possibilidade do retorno a uma vida saudável.29
Em estudo com mães que enfrentaram o impacto do nascimento prematuro do filho e a internação prolongada na UTI neonatal em uma maternidade de Natal/RN, também foi identificado o recurso à espiritualidade, retratando ainda a esperança na sobrevivência do filho, minimizando o impacto emocional da situação.30
Do mesmo modo, em estudo realizado, em Erechim/RS, a fé de mães de filhos com paralisia cerebral encorajavam as famílias na busca pela aceitação e força, trazendo novas perspectivas para o enfrentamento da doença, despontando que a fé é marcante em distintas patologias e hospitalizações.31 Muitas vezes, buscam esse apoio como forma de superação, ou como um conforto para os momentos difíceis.32
Em estudo realizado em Teresina/PI, mães de crianças com hidrocefalia, após o choque inicial, mostraram-se empenhadas em lutar pela sobrevivência e pelo bem-estar do filho, revelando que o fato de ter um filho com hidrocefalia era visto por elas como uma missão determinada por Deus, e que não deve ser discutida, mas simplesmente acatada,33 coincidindo com os resultados encontrados.
Para uma mãe, o adoecimento de um filho, relacionado à incerteza quanto ao seu futuro, surge acompanhado de intensas rotinas de cuidados e de sentimentos divergentes com relação a si mesma e à criança, interferindo, de maneira significativa, em sua experiência de maternidade e qualidade de vida.31 Nas falas das mães deste estudo, através de suas experiências, ficou evidente uma força que revela que Deus dá um filho especial para uma mãe especial. Assim, “ter um filho especial é uma provação divina para algumas, exigindo delas a maternagem como condição integral para a sobrevivência”.14:2 Para elas, essa missão não é destinada a qualquer uma, mas dada para alguém enquadrada dentro de representações construídas.
Durante a gestação, as mulheres manifestam sentimentos distintos, os quais representam suas expectativas e esperança pelo filho que está sendo gerado. É importante destacar que cada malformação apresenta particularidades individuais; afora as diferentes etiologias, elas apresentam prognósticos e implicações clínicas variados, exigindo cuidados específicos. Na perspectiva das mães, esse filho especial está relacionado ao sentido de pessoa com deficiência, à criança especial que necessita de assistência diferenciada, não apenas com o cuidado inerente à malformação congênita ou deficiência física.34 E, a partir deste cuidado, a importância da paciência e do amor.
Desde o levantamento de recursos pessoais até o enfrentamento para a chegada do filho com malformação congênita, o sentimento de tornar-se mãe é encarado como privilégio por terem sido escolhidas por Deus, sendo uma forma de justificar sua capacidade de ser mulher mãe.35 “Do olhar para si própria evidenciando as mudanças advindas da cronicidade da doença do filho às transformações na dinâmica familiar, as mães vão caminhando por sinuosas trilhas, ora com mais otimismo, ora mais impotentes diante da facticidade da doença”.35:1
No vínculo existente entre mãe e filho, na maioria das situações, cria-se uma relação de dependência e necessidade, no qual, num contexto familiar, a mãe detém o papel de dona do cuidado integral, não medindo esforços para proporcionar o melhor aos filhos, muitas vezes renunciando à própria vida pessoal e profissional, a fim de contribuir para o desenvolvimento saudável deles.36 Nesta tentativa de enfrentar as dificuldades e desafios inerentes ao cuidado, o cuidar materno é marcado pela renúncia, essas mães tornam-se dedicadas exclusivamente ao cuidado do filho em detrimento da realização de suas atividades habituais.33
Em estudo realizado em Timbaúba/PE, com mães de crianças deficientes, foi apontado que, após a aceitação da doença, as mães passam a amar seus filhos e incluí-los na sociedade, aprendendo formas de vencer os preconceitos que são construídos, alicerçadas em confiança e autoestima, resultando no empoderamento. Essas mães são mulheres marcadas por uma vida de dedicação exclusiva e entrega total aos seus filhos, em que laços indissolúveis são construídos, permeados pelo verdadeiro amor existente entre mães e filhos,36 coincidindo com nossa pesquisa.
É importante considerar que essas crianças se encontram em uma fase do desenvolvimento, no qual, o cuidado é predominantemente materno. Essa situação é bastante comum na maternidade em geral, inclusive frente à normalidade, na qual é visível que a mãe se torna detentora desse cuidado incondicional ao filho. Diante da existência de alguma patologia, muitas vezes a mãe se volta exclusivamente à doença e à necessidade de autocuidado, acaba sendo negligenciada. A maternagem é o que expressa essa força, no sentido de que, muitas vezes, a mãe acaba se anulando, tendo que abdicar da sua própria vida, afastando-se da sua condição de ser mulher, em função da vivência do filho.
Ao projetarem viver em função da deficiência que seus filhos apresentam, essa cobrança pessoal e social em desempenhar a função da melhor forma implica em sofrimento por uma obrigação diferenciada. Nesse contexto, o esquecimento de si demonstra a distância que elas tomaram de sua condição de ser mulher, por se perceberem apenas mães de um filho com deficiência.36
Mães com filhos deficientes revelam a capacidade de se adaptarem às experiências. E é a partir desse empoderamento que essas mães se fortalecem psicologicamente, enfrentando as dificuldades, superando barreiras e incluindo os filhos na sociedade.36 Por meio deste reconhecimento, as diferentes forças dessas mães ficam explícitas, tornando-as mais resilientes frente aos desafios e mudanças enfrentados. E essas crianças justificam suas forças em viver especialmente por serem filhos das mães que têm.
Em estudo nas Unidades de Saúde da Família da zona urbana de um município paraibano, as experiências relatadas por mães de crianças deficientes com necessidades especiais de saúde são situações inéditas que se tornam conhecimento vivido, servindo como aprendizado pessoal. A maioria das mães apontou ter apresentado dificuldades iniciais nas ações de cuidado, porém, reconheciam que é possível adquirir a competência de aprender e de executar tarefas nunca realizadas antes, confirmando uma postura positiva no enfrentamento.37
A expectativa da evolução dos filhos, independente de poder se concretizar ou não, movimenta essas mulheres, indo atrás do que for possível para que os filhos tenham progresso satisfatório nos tratamentos. Dependendo do grau do comprometimento neurológico, cada criança apresenta uma reação diferenciada ao estímulo e isso também precisa ser respeitado e compreendido, cabendo à“ temporalidade da existência ilustrar as experiências de passado, presente e futuro”.34 As mães tentam encontrar formas de conviver com o que não é considerado normal pela sociedade.36 Ao mesmo tempo em que se sentem sem base de sustentação, esse enfrentamento se faz necessário, no tocante a terem forças para cuidar da criança, como algo imperativo.38 Além disso, diante da situação existencial, inúmeras são as incertezas em relação ao futuro desses filhos.
Apesar da história marcada por expressões de sofrimento, dor e superação, entende-se que a força de vontade e a determinação dessas mães no enfrentamento das dificuldades emerge da capacidade dessas mulheres de se adaptarem à situação e encontrarem nova forma de compreender a vida e vivenciar a maternidade. Neste sentido, ser mãe de um filho com deficiência pode ser uma experiência enriquecedora e de transformação pessoal.32-2
A experiência da maternidade, associada à realidade emergencial da SCZV, delimitou um antes e um depois na vida das mulheres, levando a uma situação definitiva na vida de seus filhos, que foram irreversivelmente atingidos, tornando-se complexa. Nesse contexto, surge uma nova marcha de trabalho, em busca de aceitação e inclusão.5
No processo de inclusão da criança com a SCZV à sociedade, as mães confrontam-se com inúmeros desafios frente às suas necessidades especiais.36 Nesta projeção existente do filho ideal em relação ao filho real, a vulnerabilidade e insegurança presentes são consideradas estressores, e levam a preocupações com a sobrevivência e o futuro dessa criança. Quando os comprometimentos neurológicos graves resultam em retardo mental e deficiências motoras para os filhos,39 existe a preocupação com a inserção escolar e comunitária, coincidindo com os resultados encontrados neste estudo, evidenciando que as crianças precisarão iniciar a reabilitação precocemente, com atendimento multiprofissional para a organização da rotina.11
Após o processo de ajustamento e adaptação, as mães adquirem forças para lutar e vencer, diante das limitações impostas pela própria síndrome. A partir da aceitação, a inclusão da criança na sociedade, com quebra de preconceitos impostos, permite a construção de um vínculo entre mãe e filho, fragilizado anteriormente devido ao luto que elas e seus familiares estavam vivenciando.36
Em estudo realizado em Recife/PE, a partir da abordagem dos estímulos e dificuldades encontrados por mães de crianças com necessidades especiais durante o processo de reabilitação dos seus filhos, foi possível entender a necessidade da aceitação para a inserção e socialização em diferentes contextos sociais. Em alguns casos, apesar de a criança não ter muito tempo de vida, as mães mostraram a importância de não desistirem, buscando possibilidades para que as limitações dos filhos não se tornassem impeditivas em seu crescimento e desenvolvimento,3 mostrando o sentido da força criada por elas para além da doença.
Na pesquisa, evidenciou-se que a maioria das mães demonstrou estar na fase de reorganização emocional, na qual o bebê passa a ser visto como uma criança especial e a fragilidade vivida anteriormente é substituída por um sentimento de capacidade crescente para enfrentar a situação, e através da força encontrada pelas mães, a motivação para continuar a caminhada. Após a experiência de vivenciar e superar a notícia da deficiência dos filhos, as mães relataram mudanças em suas vidas, valorizando alguns fatores e construindo novos sentimentos. Elas procuravam agora viver, aproveitar os momentos agradáveis, valorizando e apoiando o seu filho no convívio com a deficiência.32-36
Paralelamente aos desafios, as mães aprendem a lidar com o tempo, procurando viver cada dia de uma vez, respeitando e aceitando as limitações dos filhos, tentando não sofrer por antecedência. Alinhado a esse resultado, os planos e a esperança as fazem acreditar num mundo melhor para os filhos.
Cuidar de um filho com diagnóstico da Síndrome Congênita do Zika vírus tem envolvido aspectos emocionais, sociais, espirituais e econômicos, além de um processo de transformação e sofrimento, que decorre principalmente das mudanças que acontecem na família, mostrando a importância de uma rede de cuidados para essas mães e crianças, que inspiram necessidade de cuidados.
Apesar de todos os avanços da ciência, continua-se lidando com o desconhecido. Devido à ausência de informações na literatura acerca do tema, especificamente voltado para os cuidados às crianças com SCZV e as experiências maternas, novas pesquisas devem ser realizadas possibilitando respostas para que, assim, possa haver conscientização de estudantes, profissionais da saúde e da sociedade, contribuindo para que essas situações sejam mais bem enfrentadas pelas famílias na atualidade. As experiências relatadas poderão colaborar com a qualificação da assistência em saúde dos profissionais que lidam diretamente com essas mães nesse contexto, e possivelmente favorecer o enfrentamento e a adaptação delas e de suas famílias e das novas famílias que poderão vir a ter filhos com a Síndrome Congênita do Zika vírus.
Além disso, frente ao desafio de confrontar-se com uma doença com poucos recursos diagnósticos e de tratamento, cabem algumas propostas mais amplas, entre elas, fortalecer a Atenção Básica em Saúde, criar espaços nos quais essas mulheres possam ter um lugar para cuidar dos seus filhos e delas mesmas, investir em capacitações para que os profissionais de saúde ampliem a capacidade de escuta, bem como instituir ações interseccionais em saúde, que sirvam para a pesquisa, ensino e extensão a partir dessa experiência.