versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X
Cad. saúde colet. vol.27 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2019 Epub 14-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201900040166
The revision version of the National Primary Care Policy in 2017 included the Palliative Care (PC) among the services provided by Primary Health Care (PHC).
To produce a theoretical-reflexive essay about Physical Therapy in Palliative Care in PHC, considering the barriers to this approach.
The theoretical reflective course outlined in the present study, regarding the Physical Therapy practice in Palliative Care in the context of PHC, is based on a review of the scientific literature, guidelines of the PHC, and national and international palliative care documents.
The existing practitioner tensions may be related to the absence of the Palliative Care theme in the curricular curriculum of undergraduate courses in Physical Therapy, and to the organizational aspects of the work process in PHC.
In order to offer PC by physical therapists in PHC, it might be considered: a) the totality of perspectives and philosophy of CP in accordance with the guidelines of action in PHC among undergraduate phase, and b) the development of researches in this field of action in order to adapt the work process to guarantee integral care.
Keywords: primary health care; palliative care; physical therapy specialty
O impacto provocado pelo aumento da população mundial tem resultado em importantes questões ao setor saúde, especialmente em razão da crescente população de idosos1, que, em associação ao envelhecimento, apresenta maior prevalência das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como câncer, diabetes e doenças crônicas respiratórias e cardiovasculares2.
As DCNT acarretam uma perda gradativa da independência funcional e, em fases avançadas, impactam a qualidade de vida e a autonomia dos indivíduos3,4. Os óbitos por DCNT são frequentemente precedidos por declínio progressivo das condições físicas e nutricionais, trauma emocional, episódios de crises de sintomas físicos e psíquicos, maior uso de recursos materiais e financeiros em saúde, sofrimento do paciente e de seus familiares e necessidade de tomada de decisões éticas importantes5.
Diante desse contexto, vários órgãos internacionais defendem os cuidados paliativos (CP) como um direito humano, e a Organização Mundial da Saúde (OMS) incentiva os países-membros a inserir e ou a ampliar os CP em suas políticas públicas de saúde, de forma a garantir aumento da qualidade de vida, reduzir sintomas e aflições vinculadas à impossibilidade de cura e à proximidade da morte, favorecer a autonomia dos indivíduos e ampliar o suporte aos familiares e cuidadores5.
A definição de CP consiste em uma abordagem que visa à prevenção e ao alívio do sofrimento de pacientes e famílias que enfrentam problemas associados a doenças que ameaçam a vida. Esse cuidado ocorre por meio da identificação precoce, da avaliação correta e do tratamento da dor e de outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual6, fator que demanda a atuação de uma equipe multiprofissional.
Considerando o fisioterapeuta como membro da equipe multiprofissional preconizada em CP, este artigo busca tecer apontamentos acerca de tensionamentos existentes na prática da atenção fisioterapêutica em CP no contexto da Atenção Primária à Saúde (APS) e refletir sobre estratégias para qualificação desse trabalho, uma vez que o assunto é pouco explorado pela literatura.
Os CP são fundamentados em princípios, e não em protocolos, e consistem na promoção do alívio da dor e de outros sintomas aflitivos; na afirmação da vida e no entendimento da morte como processo natural; na ortotanásia (não apressar nem atrasar a morte); na integração de aspectos psicológicos e espirituais ao cuidado do paciente; e no apoio à família durante a vivência do adoecimento, da perda e do luto. Busca-se proporcionar qualidade de vida e influenciar positivamente o curso da doença, atuando no início desta em conjunto com outras terapias que tencionam prolongar a vida e satisfazer as necessidades dos pacientes e de seus parentes por meio da atuação de uma equipe multiprofissional6.
Destaca-se que a atenção a doenças que ameaçam a vida tem se configurado em desafios clínicos, éticos e de gestão para a assistência à saúde integral e de boa qualidade no Brasil, no âmbito da saúde pública ou privada7. Desse modo, faz-se necessário estruturar o sistema de saúde para absorver com qualidade, dentro de um contexto orçamentário restrito, as demandas advindas do envelhecimento populacional e agravos crônicos de DCNT em todos os níveis de atenção.
No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o sistema de saúde está estruturado sob a forma de Rede de Atenção à Saúde (RAS), com vistas a superar a fragmentação e a qualificação da gestão do cuidado. A RAS prevê arranjos organizativos de ações e serviços de saúde integrados por meio de sistemas de apoio, tendo a APS como centro de comunicação e porta de entrada do sistema8. De acordo com a Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 20108, que estabelece as diretrizes para a organização da RAS no SUS, a oferta de CP é considerada como parte do conjunto serviços prestados pela RAS e atributo essencial ao seu funcionamento.
[...] o conjunto de atributos apresentados a seguir são essenciais ao seu funcionamento: 1. População e território definidos com amplo conhecimento de suas necessidades e preferências que determinam a oferta de serviços de saúde; 2. Extensa gama de estabelecimentos de saúde que presta serviços de promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento, gestão de casos, reabilitação e cuidados paliativos e [...]8.
Na Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 20179, que restabelece diretrizes para a organização da Atenção Básica e que aprova a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), os CP também foram incluídos na relação de serviços prestados pelas equipes de APS.
Considerando que um dos princípios básicos do SUS é a integralidade da assistência, o que significa considerar o sujeito, os serviços e os cuidados como um todo3, é referenciado na PNAB9 o princípio de integralidade como:
Conjunto de serviços executados pela equipe de saúde que atendam às necessidades da população adscrita nos campos do cuidado, da promoção e manutenção da saúde, da prevenção de doenças e agravos, da cura, da reabilitação, redução de danos e dos cuidados paliativos. Inclui a responsabilização pela oferta de serviços em outros pontos de atenção à saúde e o reconhecimento adequado das necessidades biológicas, psicológicas, ambientais e sociais causadoras das doenças, e manejo das diversas tecnologias de cuidado e de gestão necessárias a estes fins, além da ampliação da autonomia das pessoas e coletividade9.
Conforme explicitado na PNAB de 2017, os CP são preconizados como uma das abordagens a ser utilizada pelas equipes de saúde da Atenção Básica para garantia da integralidade9. Sendo assim, entre as atribuições da equipe estão o acompanhamento no contexto domiciliar voltado ao suporte ao paciente e à família, a garantia do controle dos sintomas e da dignidade no processo de morte, o cuidado com os cuidadores, o acesso a outros níveis de atenção, como suprir eventual necessidade de internação ou realizar determinados procedimentos técnicos de diagnóstico ou de tratamento3,4.
Destaca-se que a PNAB9 tem a Estratégia Saúde da Família (ESF) como forma prioritária para organização do sistema de saúde, apresentando-se como uma proposta abrangente de APS para busca de respostas a todas as necessidades de saúde da população e contribuindo para a mudança do modelo assistencial vigente10. A ESF fundamenta-se em princípios norteadores para o desenvolvimento das práticas de saúde, como a centralidade na pessoa/família, o vínculo com o usuário, a integralidade e a coordenação da atenção, a articulação com a rede assistencial, a participação social e a atuação multiprofissional e intersetorial10.
A inserção do fisioterapeuta na APS está prevista via Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) como uma das profissões que podem compor a equipe multiprofissional de acordo com a definição dos gestores municipais e as equipes de APS. O processo de trabalho do NASF-AB deve ter como foco o território sob responsabilidade das equipes de APS ao qual o NASF-AB está vinculado, com prioridade para o atendimento compartilhado e interdisciplinar desenvolvido nas dimensões clínico-assistencial e técnico-pedagógico10.
Revisões da literatura11,12 e estudos primários sobre atuação do fisioterapeuta no NASF-AB13,14 explicitam a diversidade das ações em saúde desempenhadas pelos fisioterapeutas na APS, as quais perpassam ações de promoção, prevenção, recuperação, reabilitação e educação em saúde dispensadas em todos os ciclos da vida por meio de atenção individual e coletiva, porém sem menção à oferta de CP.
Percebe-se que as atribuições dos fisioterapeutas na APS refletem a formação reabilitadora que ainda prevalece na profissão. Marcucci15, por meio de uma revisão integrativa da literatura, reuniu as principais intervenções fisioterapêuticas realizadas em pacientes com câncer sem possibilidade de cura, em que se destacam: os métodos analgésicos (TENS, crioterapia e terapia manual), as intervenções nos sintomas psicofísicos, como depressão e estresse (técnicas de relaxamento e atividade física), a atuação nas complicações osteomioarticulares (exercícios resistidos, aeróbicos e com descarga de peso), o tratamento de complicações linfáticas (drenagem linfática manual, eletroterapia, aparelhos de compressão pneumática, bandagens elásticas e mobilização passiva e ativa), os recursos para a melhora da fadiga (exercícios físicos e técnicas de conservação de energia), as técnicas para melhoria da função pulmonar (exercícios de controle respiratório, técnicas de conservação de energia, técnicas de higiene brônquica, posicionamento, técnicas de relaxamento, oxigenoterapia, ventilação mecânica invasiva e não invasiva), o manejo e a prevenção de úlceras de pressão e as particularidades do tratamento pediátrico.
Em específico sobre a assistência domiciliar em estágios de fim de vida, um estudo desenvolvido por Silva, Lima e Seidl16 aponta que os atendimentos dos fisioterapeutas nesse âmbito ocorreram com predominância de tecnicismo na atuação; centrado no profissional, com desrespeito à autonomia do paciente; ausência de vínculo com família, cuidadores e paciente; descompromisso com humanização do cuidado; e com o sofrimento e as angústias relacionadas à finitude do paciente.
Os dados supracitados evidenciam que os fisioterapeutas são preparados para cura ou reabilitação a fim de reinserir o indivíduo na sociedade, sendo ausente ou deficitária a formação em temas voltados à finitude da vida e à bioética, à comunicação de más notícias e ao manejo biopsicossocial de situações difíceis4,16.
Embora estejam expressos no Código de Ética da Fisioterapia17, no artigo 4º, os CP como uma das modalidades assistenciais do fisioterapeuta, observa-se tensionamentos envolvidos em seu exercício prático.
Aponta-se aqui que a fragilidade do preparo na graduação em Fisioterapia para oferta de CP deve ser uma questão a ser discutida quanto ao cenário atual de saúde.
A Diretriz Curricular Nacional do curso de graduação em Fisioterapia18 não prevê a inclusão de CP na formação profissional, uma vez que, na descrição de competências e habilidades específicas, assegura a formação para
atuar de forma a garantir a integralidade da assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema18.
Para além da necessidade de revisão dos cursos de graduação e pós-graduação, visualiza-se a necessidade de capacitação das equipes de APS para qualificação em CP, de forma a evitar negligência assistencial19 e ocorrências de judicialização para garantia do acesso ao serviço de saúde. É preciso salientar que o modelo de atenção pautado na vigilância em saúde prevê equipes preparadas para atuação nas demandas mais prevalentes na comunidade, contudo os profissionais de saúde, não apenas fisioterapeutas, sentem-se despreparados para atuar em CP, o que denota a importância de investimentos na formação profissional inicial e educação permanente aos profissionais atuantes.
Visualiza-se que as ações de cuidado irão exigir, para além de uma estruturação do serviço, uma reorientação das práticas por parte dos profissionais de saúde, deixando o modelo tradicional de cuidado curativo e se apropriando de filosofia, princípios e práticas paliativistas. Essa transição da forma de cuidar no fim da vida pelos mais diversos profissionais apresenta tanto desafios relacionados à formação profissional quanto éticos e morais16.
Acredita-se que a capacitação das equipes e a definição de protocolos para identificação de inclusão em CP auxiliam na detecção precoce de pacientes elegíveis, evitando a oferta tardia e restrita a momentos avançados da doença, em que os pacientes se encontram com críticas limitações funcionais e sociais. Ressalta-se que os CP devem ser iniciados o mais precocemente possível, juntamente com outras medidas de prolongamento da vida, incluindo todas as investigações necessárias para melhor compreender e controlar situações clínicas estressantes20.
Desse modo, é importante estruturar os caminhos que o paciente vai percorrer, organizando os CP dentro da RAS e das linhas de cuidado para garantir a integralidade e a continuidade assistencial a partir do reconhecimento das demandas dos pacientes e familiares ao longo do curso da doença, a fim de descentralizar os cuidados desses pacientes somente no nível de atenção especializada21. A comunicação e a pactuação de fluxos e protocolos na RAS, com especial atenção ao quantitativo de equipes do Serviço de Atenção Domiciliar (Equipes Multiprofissionais de Atendimento Domiciliar - EMAD - e Equipes Multiprofissionais de Apoio - EMAP) para referência em caso de necessidade de procedimentos mais complexos e maior frequência de cuidados (mudança de modalidade de atenção domiciliar de AD1 para AD2 e/ou AD3), são essenciais para gestão dos CP na RAS22.
Destarte, à luz deste debate, deve também ser considerada a estruturação organizacional do trabalho na APS. Ou seja, para além das dificuldades de formação qualificada, a organização dos processos de trabalho do fisioterapeuta na APS pode se constituir como entrave à adequada oferta de cuidados paliativos, quando considerada a ausência de disponibilidade e de flexibilidade na agenda da Fisioterapia. De acordo com Fonseca et al.11, uma vez que a agenda de ações fisioterápicas apresenta atividades periódicas com grupos, combinadas a horários de atendimentos individuais, o trabalho se configura predominantemente como uniprofissional e centrado na grande demanda de ações de reabilitação para um número restrito de profissionais.
Todavia, os atendimentos domiciliares aos pacientes em CP requerem disponibilidade de tempo considerável, visto o tempo de deslocamento adicional ao tempo da atenção19, bem como permitir a criação de um bom vínculo, esclarecimento sobre sintomas e informações acerca dos potenciais riscos e efeitos indesejáveis das intervenções. Uma agenda que favoreça a disponibilidade para o atendimento domiciliar irá evitar a descontinuidade do cuidado e a disponibilidade de intensificação das visitas nos momentos próximos da morte4.
Como o NASF-AB oferece suporte a distintas equipes em uma ou mais unidades de saúde, os profissionais precisam gerir seu processo de trabalho de maneira a responder às diferentes demandas que se apresentam por meio de mecanismos de pactuação, repactuação e comunicação com as equipes da APS, possibilitando o apoio a todas as equipes vinculadas23.
Bons resultados na resolutividade da APS têm sido apresentados pela inserção do fisioterapeuta nesse nível de atenção, porém a alta demanda assistencial tem gerado demandas judiciais para garantia de acesso aos cuidados fisioterapêuticos. Para Bispo Jr24, a contribuição do fisioterapeuta no cenário da APS mostra-se comprometida por causa da qualificação profissional, que, apesar de reestruturações em seu campo de atuação, ainda apresenta formação voltada para cura e reabilitação da capacidade física de pacientes e com trabalho centrado na atuação uniprofissional. Assim, novas atribuições conferidas à APS requerem compreensão da realidade de trabalho vivenciada por esse profissional nesse nível de atenção. É necessário o reconhecimento do território visando identificar os pacientes elegíveis para CP com necessidade assistencial em Fisioterapia para o dimensional de profissionais em Fisioterapia e a organização do seu processo de trabalho na APS.
Acredita-se que a Fisioterapia tenha um arsenal abrangente de técnicas para acrescer aos CP ofertados pela APS, seja na melhora da sintomatologia, seja na promoção de qualidade de vida para o paciente15. No entanto, a produção de conhecimento e de evidências em CP na APS ainda é escassa, fator que denota a necessidade de investimentos na formação profissional inicial e de educação permanente. Nesse sentido, reforça-se a necessidade de pesquisa e ensino na área de Fisioterapia em CP para que esses dois campos sejam incorporados como parte da prática profissional em todos os níveis de atenção, mas principalmente na APS, de modo a prover adequado suporte aos pacientes com doenças que ameaçam a vida (em especial no estágio de fim de vida) e com base em evidências científicas.