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Fístulas arteriovenosas em hemodiálise: fatores de sucesso e o papel do nefrologista

Fístulas arteriovenosas em hemodiálise: fatores de sucesso e o papel do nefrologista

Autores:

Ricardo Portiolli Franco

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.40 no.4 São Paulo out./dez. 2018 Epub 17-Dez-2018

http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0161

As fístulas arteriovenosas são consideradas o acesso de escolha para hemodiálise (HD) devido à menor incidência de complicações e morbidade e ao baixo custo em relação a próteses e cateteres.

O benefício das fístulas levou à criação da "Fistula First Initiative", que reduziu a proporção do uso de próteses nos Estados Unidos após o ano 2000. No entanto, com esses esforços, aumentaram também as falências de maturação, hoje reconhecidas como o principal obstáculo na obtenção de uma fístula funcionante. Ficou evidente a necessidade de procedimentos de angioplastia para auxiliar a maturação de muitos desses acessos1.

A maturação clínica de uma fístula pode ser atingida em até 80% dos casos; no entanto, até metade das fístulas necessita de alguma intervenção. No caminho até a maturação existem potenciais alvos terapêuticos. No pré-operatório, o mapeamento com ultrassonografia permite a seleção do melhor local de acesso através da avaliação dos diâmetros venosos e arteriais. Nos casos de falência de maturação, o tratamento endovascular de estenoses aumenta a chance de maturação, além da possibilidade de salvamento em casos de trombose. Virtualmente, todos os casos de falência de maturação apresentam estenoses, que podem ser tratadas com sucesso em até 90% dos casos2. A Figura 1 resume os possíveis desfechos das fístulas após a confecção.

Figura 1 Desfechos possíveis após confecção de uma fístula. Nota: Trombose precoce interrompe o desenvolvimento da fístula e ocorre em até 20% dos casos. As falências de maturação são geralmente causadas por estenoses venosas. Nesses casos, as intervenções endovasculares podem promover a maturação. Até 50% das fístulas atingem maturação sem necessidade de intervenções. 

Rodrigues e cols. trazem nesta edição do JBN uma série de casos retrospectiva, estudando dois aspectos da confecção das fístulas: variáveis associadas ao sucesso imediato e tardio de fístulas arteriovenosas e confecção de fístulas por nefrologistas3.

Foram confeccionadas 159 fístulas em 101 pacientes e avaliadas a patência imediata, definida como presença de frêmito ou pulso no pós-operatório imediato, e patência tardia, definida como possibilidade de uso após 30 dias. Considerando os fatores relacionados ao paciente, pressão arterial elevada no intraoperatório (> 140/90 mmHg), produto Ca x P < 55 e hemoglobina entre 10 e 12 mg/dl correlacionaram-se com a patência imediata, e apenas os níveis de hemoglobina com a patência tardia. Outras variáveis como sexo, idade, presença ou não de diabetes e localização da fístula (proximal ou distal) não se correlacionaram com as taxas de patência.

Esses achados acrescentam à presente divergência quanto aos fatores relacionados à falência de maturação. A literatura é conflitante a respeito de fatores demográficos e clínicos, como sexo feminino, idade, presença de diabetes e doença arterial coronariana. Acredita-se que esses fatores são mais importantes quando afetam diretamente fatores hemodinâmicos que atuam na maturação, principalmente o diâmetro dos vasos utilizados. Considera-se o diâmetro mínimo para veias de 2,5 mm e artérias de 2 mm.

Recentemente, o Haemodialysis Fistula Maturation Consortium avaliou prospectivamente diversos aspectos da maturação das fístulas. A avaliação incluiu 602 participantes em acompanhamento pré-diálise, dos quais 44% atingiram maturação não assistida; 27%, maturação assistida; e 22% tiveram falência de maturação. Na avaliação quanto à ocorrência de trombose precoce, em até 18 dias, as variáveis sexo feminino, localização em antebraço, diâmetro venoso menor que 2 a 3 mm e uso de protamina se correlacionaram positivamente com o evento4. Uma segunda avaliação estudou a correlação de hiperplasia intimal e estenoses venosas em avaliação pré e pós-operatórias com falência de maturação5. Apenas as estenoses venosas no pós-operatório se correlacionaram com falência de maturação e seu efeito não pôde ser distinguido de outros indicadores, como fluxo e diâmetro venoso em 6 semanas. Até o momento, os achados corroboram com a importância dos fatores que afetam diretamente a hemodinâmica da fístula em sua maturação.

O segundo ponto discutido por Rodrigues e cols. são a segurança e a eficácia da confecção de fístulas pelo nefrologista. A nefrologia intervencionista e sua participação em procedimentos endovasculares são realidades bem documentadas na literatura, que comprova a segurança e eficácia desses especialistas. O autor alcançou 78% de patência imediata e 69,2% de patência tardia. A taxa de complicação foi de 3,6%. Esses resultados são comparáveis com os da literatura mundial. Mishler avaliou a literatura sobre a participação do nefrologista na criação de acessos em 8 países, mostrando desfechos consistentes com os de outros especialistas. É interessante o relato de um serviço espanhol que obteve redução da média do tempo de espera de 103 para 25 dias e redução do uso de cateteres em pacientes incidentes de 63% para 19%6. O acesso precoce ao nefrologista e o início de HD por fístula reduzem a mortalidade, segundo relato brasileiro de Diegoli e cols7.

No Japão, nefrologistas participam de aproximadamente 30% dos tratamentos endovasculares, criação de fístula e próteses. Segundo relato pessoal do Dr. Masanobu Gunji, nefrologista do Mito Saisekai General Hospital, em seu serviço 95% dos acessos são criados por ele. O tempo de espera para fístulas é de no máximo um dia e sua clínica tem zero pacientes utilizando cateteres centrais. Segundo o Dr. Gunji, os cirurgiões vasculares fazem os casos complexos e existem discussões de caso entre as especialidades. "Nós cooperamos", em suas próprias palavras.

O campo dos acessos vasculares é multidisciplinar e necessita de interação entre diversas especialidades. O relato de Rodrigues e cols. reforça que, após treinamento específico, o nefrologista é capaz de confeccionar fístulas arteriovenosas com sucesso, com baixas taxas de complicação. Isso não limita a participação nem a necessidade de cirurgiões vasculares dedicados ao manejo de acessos para HD, principalmente em casos mais complexos. Levando-se em conta os recursos disponíveis em cada serviço, a participação do nefrologista treinado tem o potencial de reduzir os tempos de espera e o tempo de exposição a cateteres centrais.

REFERÊNCIAS

1 Riella MC, Roy-Chaudhury P. Vascular access in haemodialysis: strengthening the Achilles' heel. Nat Rev Nephrol. 2013;9(6):348-357. doi:10.1038/nrneph.2013.76.
2 Beathard G a., Arnold P, Jackson J, Litchfield T. Aggressive treatment of early fistula failure. Kidney Int. 2003;64(4):1487-1494. doi:10.1046/j.1523-1755.2003.00210.x.
3 Rodrigues AT, Colugnati FAB, Bastos MG. Evaluation of variables associated with the patency of arteriovenous fistulas created by a nephrologist for hemodialysis Evaluation of arteriovenous fistulas created by a nephrologist for. Braz. J Nephrol 2018.
4 Farber A, Imrey PB, Huber TS, et al. Multiple preoperative and intraoperative factors predict early fistula thrombosis in the Hemodialysis Fistula Maturation Study. J Vasc Surg. 2016;63(1):163-170e6. doi:10.1016/j.jvs.2015.07.086.
5 Cheung AK, Imrey PB, Alpers CE, et al. Intimal Hyperplasia, Stenosis, and Arteriovenous Fistula Maturation Failure in the Hemodialysis Fistula Maturation Study. J Am Soc Nephrol. 2017;28(10):3005-3013. doi:10.1681/ASN.2016121355.
6 Mishler R, Yang Z, Mishler E. Arteriovenous Fistula Creation by Nephrologist Access Surgeons Worldwide. Adv Chronic Kidney Dis. 2015;22(6):425-430. doi:10.1053/j.ackd.2015.08.006.
7 Diegoli H, Silva MCG, Machado DSB, Cruz CER da N. Late nephrologist referral and mortality assotiation in dialytic patients. J Bras Nefrol. 2015;37(1):32-37. doi:10.5935/0101-2800.20150006.