versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.111 no.5 São Paulo nov. 2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180174
Uma declaração endossada por associações de especialidades médicas foi publicada em nosso país, recomendando a flexibilização do jejum antes do exame de sangue para a determinação laboratorial do perfil lipídico, incluindo Colesterol Total (CT), Lipoproteína de Alta Densidade-Colesterol (HDL-colesterol) e Triglicerídeos (TG), além do cálculo correspondente do Colesterol Não HDL (CT-HDL-colesterol).1 Considerou-se que os resultados de não jejum não diferiam clinicamente daqueles obtidos após jejum, e estudos prospectivos e metanálises têm demonstrado consistentemente que o não HDL-colesterol em um estado de não jejum seria pelo menos tão eficiente quanto a Lipoproteína de Baixa Densidade (LDL-colesterol) na predição da Doença Cardiovascular (DCV). Também foi recomendado que, quando TG > 4,52 mmol/L, a fórmula proposta por Martin et al.,2 deve ser utilizada para a estimativa de LDL-colesterol.
A declaração foi baseada no consenso europeu sobre o assunto publicado por Nordestgaard et al.3 No entanto, a aplicação automática desta abordagem no Brasil merece considerações mais profundas, considerando o impacto que ela pode causar no atendimento ao paciente. Além disso, está longe de ser um consenso entre cientistas e profissionais de laboratórios clínicos no país, como ficou evidente durante o 44º Congresso Brasileiro de Análises Clínicas, realizado de 11 a 14 de junho de 2017, e o 51º Congresso Brasileiro de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial, realizada de 26 a 29 de setembro de 2017.
De fato, um resultado de não HDL-colesterol em estado de não jejum seria pelo menos equivalente à LDL-colesterol para o estabelecimento de metas.4 No entanto, um valor de LDL-colesterol em não jejum, bem como a não HDL-colesterol em estado de não jejum, poderia ser menos sensível para a predição de DCV,5 especialmente em mulheres.6 Esta possível questão deve ser avaliada judiciosa e independentemente em nossa população específica.
Em segundo lugar, deve-se notar que o alvo do tratamento para a não HDL-colesterol é simplesmente 0,8 mmol/L (30 mg/dL) mais alto do que o respectivo alvo para LDL-colesterol.7 Isto foi estabelecido de maneira empírica, considerando-se um valor médio de 0,8 mmol/L para lipoproteína de densidade muito baixa (VLDL-colesterol). Obviamente, isso não é consistente com a realidade, especialmente em um estado pós-prandial. Por outro lado, os níveis-alvo de tratamento para a LDL-colesterol estão bem estabelecidos, baseados em grandes estudos prospectivos após décadas de sólido trabalho científico.
Terceiro, os principais motivos para a coleta de sangue sem jejum prévio, conforme sugerido pelo consenso europeu3 e pela declaração brasileira,1 parecem estar mais relacionados a questões comerciais do que científicas. A base lógica incluiu uma alegada “inconveniência por ter que retornar em uma consulta separada para obter o perfil lipídico em jejum [ ...], uma carga para o laboratório por ter um grande volume de pacientes que chegam para realizar testes pela manhã [...], uma carga para os médicos revisarem e tomarem decisões com base nos achados do perfil lipídico em uma data posterior [...]”, e uma hipótese de melhora “na adesão do paciente ao teste lipídico” .
Apenas a última motivação pode ter algum fundamento científico, mas ainda precisa ser provada. Deve-se notar também que os procedimentos de coleta de amostras de sangue no Brasil são bem diferentes daqueles praticados na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Nesses países, as amostras biológicas são frequentemente coletadas logo após a consulta com o médico, na clínica ou hospital; as amostras são coletadas em horários programados pela logística do laboratório, e o resultado é enviado diretamente ao médico. Os pacientes nem sabem o que é um laboratório clínico; eles apenas sabem que suas amostras de sangue são enviadas para algum lugar para serem analisadas por pessoas de quem eles não têm ideia quais são suas habilidades e formação. No Brasil, por lei, os resultados laboratoriais pertencem aos pacientes, e os pacientes não hospitalizados, muitas vezes, vão ao centro de coleta do laboratório, a menos que uma visita domiciliar seja agendada, para coleta de sangue ou outra coleta biológica, dias após a primeira consulta, onde recebem instruções adequadas sobre os requisitos pré-analíticos para cada teste solicitado. As realidades são completamente diferentes.
Quarto, precisamente derivado do ponto anterior, o impacto destas recomendações ainda não foi avaliado sobre o comportamento dos pacientes em relação ao jejum necessário para outros testes laboratoriais. E, pior ainda, já observamos movimentos de algumas corporações indicando que o jejum para qualquer teste de laboratório não seria mais necessário. Do ponto de vista técnico e científico, as amostras de sangue em não jejum não são adequadas para a medição de vários analitos que são influenciados pelas refeições, como hemograma, hemoglobina, albumina, bilirrubina, fosfato, cálcio, magnésio, potássio,8 insulina, hormônio do crescimento, glucagon, cloreto, pH urinário e também aqueles afetados por variações diurnas, como Hormônio Adrenocorticotrófico (ACTH), catecolaminas, Hormônio Estimulante da Tireoide (TSH), Paratormônio (PTH), renina, aldosterona, Alanina (ALT), Aspartato Aminotransferase (AST), fosfatase alcalina, nitrogênio ureico e ferro,9 para citar alguns. Como foi dito anteriormente,10 em Medicina de laboratório clínico, nenhuma amostra seria preferível a uma amostra ruim, se alguém deseja alcançar padrões rigorosos, ao fornecer aos médicos informações laboratoriais confiáveis. O impacto geral da amostra de sangue proposta coletada sem jejum sobre a eventual rejeição das amostras do paciente ainda não foi determinada, devido à presença de outros exames laboratoriais solicitados que precisam de jejum e/ou coleta matinal.
E quinto, finalmente, a fórmula de Martin sugerida ainda usa TG em seus cálculos, um parâmetro que tem sido demonstrado por muitos autores como não estando correlacionado com LDL-colesterol ou CT. Martin et al.,2 fizeram um enorme esforço matemático para alcançar um resultado satisfatório para incluir TG no cálculo. E, o mais importante, esta equação precisa ser validada ou, pelo menos, avaliada em outras populações, antes de ser universalmente recomendada. Por exemplo, a fórmula de Martin proposta, assim como a nossa, foi avaliada em comparação com as novas fórmulas propostas para estimativa de LDL-colesterol no Irã, e a primeira demonstrou não agregar valor às estimativas em uma pequena coorte.11
De qualquer forma, a LDL-colesterol continua sendo um parâmetro frequente solicitado em laboratórios clínicos na rotina médica e, provavelmente, continuará sendo assim. Portanto, métodos precisos para sua estimativa são necessários quando sua medição direta não está disponível. Uma equação simples e precisa, desenvolvida e avaliada na população brasileira, já foi desenvolvida.12 Deve-se notar que essa equação funciona igualmente bem, por exemplo, em populações da Alemanha e do Reino Unido,13 mas não tão bem em outras, como na África do Sul,14 Espanha15 e Tailândia.16 Parece que o debate sobre qual método utilizar para a determinação da LDL-colesterol em cada população em particular do globo está mais aberto do que definido.17
Infelizmente, a história está repleta de exemplos que demonstram que quando os interesses corporativos vão de encontro à ciência deficiente, os únicos perdedores são a própria ciência e o cuidado com o paciente. É aparente e digno de preocupação que o “consenso” brasileiro tenha recomendado o uso de uma equação para a estimativa de LDL-colesterol que não foi validada na população local, e que foi movido por razões que são dirigidas mais por conveniência do que por uma ciência rigorosa e imparcial.