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Formação médica na Atenção Primária à Saúde: experiência com múltiplas abordagens nas práticas de integração ensino, serviço e comunidade

Formação médica na Atenção Primária à Saúde: experiência com múltiplas abordagens nas práticas de integração ensino, serviço e comunidade

Autores:

Marcelo Torres Peixoto,
Washington Luiz Abreu de Jesus,
Rosely Cabral de Carvalho,
Marluce Maria Araújo Assis

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.23 supl.1 Botucatu 2019 Epub 16-Maio-2019

http://dx.doi.org/10.1590/interface.170794

Introdução

O SUS, enquanto sistema público e universal, demanda das universidades brasileiras a formação de profissionais cada vez mais comprometidos com uma perspectiva humanista e de qualidade, pautada nos princípios da integralidade e da equidade e que se coadunem com as necessidades de saúde da população e dos serviços, nos diferentes contextos e com os distintos papéis dos sujeitos que protagonizam a formação profissional nesse campo1 e que sigam diretrizes condizentes com as demandas atuais de regulação do trabalho e da educação em saúde, bem como para a gestão de pessoas, no âmbito público2,3.

Esse ideário, consolidado a partir da Reforma Sanitária Brasileira e seus movimentos constitutivos4,5, conforma-se como um legado de discussões em torno das necessidades de formação profissional em saúde construída contraditoriamente no último século, principalmente a partir do modelo flexneriano, que privilegiou o cenário hospitalar e a formação especializada.

A formação médica tradicional se insere nessa perspectiva de valorização da especialidade e superespecialidade que são incorporadas pelo mercado de trabalho “em distintas modalidades, levando a uma estratificação técnica e social do trabalho médico”6 (p. 124). Assim, observam-se diferentes modalidades de trabalho médico: “assalariados, autônomos individuais, organizados em cooperativas de diferentes tipos e médicos empresários que atuam como prestadores de serviços, tanto no âmbito do SUS como no do setor privado”6 (p. 124).

O trabalho médico é expresso no cotidiano dos serviços de saúde como constituinte das relações entre os diferentes saberes e práticas, envolvendo outros profissionais de saúde e usuários, na concepção do processo saúde-doença e no modo como os serviços se organizam, para atender às demandas/necessidades da população. Além disso, “o fazer saúde estará sempre relacionado às condições de vida e a suas múltiplas dimensões: social, biológica, ético-política”7 (p. 444).

No tocante à APS, pode-se dizer que é um espaço privilegiado de formação para os profissionais de saúde, de acordo com os pressupostos orientadores do SUS, uma vez que se caracteriza como porta de entrada preferencial da rede de atenção à saúde, acolhendo os usuários e famílias, buscando estabelecer vínculos e responsabilização pela atenção, individual e coletiva8. É um nível de atenção e um modelo de gestão que visa coordenar o cuidado na rede, de modo longitudinal, abrangente e interdisciplinar, valorizando a pessoa e respeitando seu contexto sociocultural e histórico9.

A formação e a qualificação na APS se associam à busca pela garantia da universalidade e integralidade do SUS, pois compreende um território adstrito, a partir do enfoque familiar e comunitário, enquanto espaço de construção coletiva, no qual os diversos sujeitos estão envolvidos na produção dos diferentes modos de proporcionar o cuidado em saúde10.

Estudos sobre experiências internacionais11,12, realizados em vários países, vêm demonstrando que o cuidado realizado na APS produz resultados positivos na atenção às necessidades das pessoas, impactando também nos processos de qualificação profissional. No Brasil, alguns estudos13,14 que avaliaram a qualidade dos serviços, por meio de seus atributos e que utilizaram o Instrumento de Avaliação da Atenção Primária (PCATool), revelam que o fator mais importante de qualidade dos serviços está relacionado a uma melhor formação e qualificação de seus profissionais. Nesse sentido, é de grande interesse dos gestores admitir profissionais com formação adequada para o trabalho nesse nível de atenção. Contudo, mesmo após significativas mudanças epidemiológicas e avanços nas políticas e práticas de APS no Brasil, nos últimos anos, existem obstáculos à sua consolidação, tanto sociopolíticos e estruturais quanto relacionados à organização do trabalho15,16.

Além da Medicina, outras profissões também têm buscado diversificar seus campos de atuação, principalmente no que concerne à APS. No entanto, essa discussão precisa ser aprofundada, pois, além de uma demanda social, há uma necessidade real de readequação dos currículos dos cursos de graduação na área de Saúde17. Os resultados desse amplo processo acadêmico e social produziram um conjunto de proposições de mudanças nos currículos de formação médica que influenciou as premissas das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)18, instituídas em 2014, e têm orientado a implantação de novos cursos de Medicina por meio de mudanças nos Projetos Políticos Pedagógicos de instituições estabelecidas no cenário brasileiro.

O presente artigo busca discutir a formação médica em uma instituição do interior da Bahia, tomando como base orientadora a APS e as DCN para os cursos de Medicina. Contextualiza-se a experiência das Piesc, explicitando a dinâmica das relações entre os estudantes, professores, profissionais de saúde e usuários do SUS envolvidos com o processo mútuo de aprendizagem, em um mapa conceitual.

Situando o curso de Medicina da Universidade Estadual de Feira de Santana e os novos desafios para a formação do médico: um olhar metodológico

Analisar um curso de Medicina no semiárido baiano, sob a forma de estudo de caso, representa integrar análises críticas articuladas a extratos teóricos e práticos de uma proposta de formação médica, na linha do tempo, garantindo oportunidades significativas de aprendizagem sobre assuntos e questões de interesse19. Essa experiência está centrada na aprendizagem ativa e crítica em que o estudante de Medicina tem o papel de protagonista. Desde os primeiros dias de sua formação, é estimulado a pensar, refletir, discutir, analisar e agir sobre as temáticas e os conteúdos relacionados com a realidade sociossanitária local e na qual está inserido. Esse é o ponto de partida necessário para a construção de práticas integrais e coerentes com o SUS.

O trabalho apresenta os desafios iniciais de um grupo de 12 professores médicos, enfermeiros e cirurgiões-dentistas, mestres e doutores em Saúde Coletiva e Medicina, mediadores do processo de ensino-aprendizagem, que atuavam como facilitadores da aprendizagem, de maneira mútua e integrada no planejamento das atividades ensino. Dessa forma, o curso de Medicina da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) foi implantado em 2003 com oferta de trinta vagas anuais, mantidas até o momento atual (ano de 2018), sendo orientado pelas DCN adotadas pelo Ministério da Educação (MEC), em 200120. O curso tomou como baliza metodologias ativas no processo de educar-aprender-refletir-cuidar, mais especificamente, a Aprendizagem Baseada em Problemas e a Metodologia da Problematização.

Assim, o Projeto Político Pedagógico vislumbra a formação do futuro médico engajado nos territórios sociais, nos quais emergem os problemas e necessidades locais do SUS, com eixos de visão humanista e aderência às políticas de saúde, no contexto municipal, estadual e nacional. O curso é estruturado em dois momentos. O ciclo básico, que é vivenciado nos quatro primeiros anos, organiza-se em três eixos: 1) Atividade em grupos tutoriais; 2) Habilidades e atitudes clínicas; e 3) Práticas de integração ensino, serviço e comunidade. No ciclo profissionalizante, nos dois últimos anos do curso, o estudante exerce sua prática no internato médico, por meio da realização de atividades clínicas, na forma de estágio supervisionado.

As Piesc apresentam na base do seu aprendizado uma metodologia de ensino ativa, que influencia positivamente a compreensão e o olhar do educador e educando para o contexto social, a partir da educação problematizadora, como parte da vivência de experiências significativas que envolvam campos de conhecimento interdisciplinares. As combinações dos diferentes olhares sinalizam para uma perspectiva crítica, uma abertura para o diálogo, tendo como horizonte práticas criativas e inovadoras que buscam as conexões entre homem-mundo-sociedade-educação, entrelaçadas21.

A educação problematizadora orienta-se pelo Arco de Maguerez22, na ideia de teorização/elaboração de respostas, para um olhar da realidade e dos problemas analisados, como fios condutores do processo de aprendizagem, articulando o planejamento dos temas a serem discutidos de forma participativa e dialógica, valorizando os diferentes núcleos de conhecimentos e práticas, pautado no trabalho em equipe, com reflexão contínua do papel de cada profissional, aderente à ideia de um trabalho interprofissional23.

A bússola das Piesc nasce do processo de formação de profissionais de Saúde Coletiva da região de Feira de Santana, que desenvolveram projetos de planejamento local, com elaboração de instrumentos de intervenção eficientes e viáveis, nos territórios sociais circunvizinhos à universidade. Pode-se dizer que o acúmulo de experiências dos cursos de graduação de Enfermagem e Odontologia forneceram régua e compasso para o recém-criado curso de Medicina, com a adoção da APS como um dos eixos balizadores do processo de formação.

Em síntese, a formação no curso de Medicina da UEFS busca compreender o processo saúde-doença-cuidado, a partir de determinantes sociais, culturais, históricos, biológicos, comportamentais, psicológicos, ecológicos e éticos, atuando nos níveis individual e coletivo; prestando atenção em toda a linha da vida, da gestação ao envelhecimento; buscando sempre a integralidade da atenção à saúde, com ações de promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação; e compreendendo a Atenção Primária como eixo norteador do cuidado, em sua dinâmica relacional: estudante, professor, equipe de saúde e pessoas que necessitam da atenção24.

Resultados e discussão

As Piesc são o principal componente curricular do curso de Medicina da UEFS, situadas no espaço social de intervenção da APS. As práticas operadas pelos estudantes são mediadas pelos professores e integradas com os profissionais da Estratégia de Saúde da Família (ESF), do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) e membros da comunidade local. Discutem-se saberes, habilidades, atitudes e valores, articulando os diferentes olhares sobre os problemas/necessidades demandados pelos diferentes sujeitos (pessoas, famílias e comunidade) e suas relações com os profissionais que buscam atendê-los, no exercício cotidiano do cuidado, em suas diferentes facetas e complexidades.

A diferença no contexto dessa realidade pode ser denotada pela ideia de coletivo articulado, não no sentido de agrupamento de pessoas, mas em um movimento inventivo de valorização das singularidades, sem perder a ideia do todo. Um processo contínuo de desterritorialização, no qual cada pessoa, em sua complexidade e multiplicidade, busca a cogestão com produção de subjetividades25.

As Piesc se propõem a contribuir na formação médica para APS, desvelando a complexidade do processo saúde-doença-cuidado, ao longo de toda a linha da vida. O objetivo é formar um médico que entenda o conceito ampliado de saúde e saiba acolher e estabelecer vínculos de responsabilização, na coordenação das ações necessárias para melhorar a qualidade de vida das pessoas/famílias/comunidades.

O ideário das Piesc sobre a formação médica na APS se alinha com as concepções da Academia Europeia de Professores de Medicina Geral e Familiar, que propõem seis categorias de competências nucleares para o ensino de Medicina de Família: gestão em cuidados primários, cuidados centrados na pessoa, aptidões para a resolução de problemas específicos, abordagem abrangente, orientação comunitária e abordagem holística26.

No início do curso, em 2003, o planejamento das atividades de ensino-aprendizagem das Piesc teve como referência as DCN publicadas em 2001, cujos conteúdos essenciais para a formação do médico deveriam abordar o processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade, de forma articulada com a realidade epidemiológica e profissional, proporcionando práticas integrais. Desse modo, o curso propicia interação ativa do aluno com usuários e profissionais de saúde, desde o início de sua formação, possibilitando-o lidar com problemas reais e assumindo responsabilidades crescentes, como agente prestador de cuidados e atenção27.

Na trajetória de novos ciclos incorporados no desenvolvimento das Piesc, os professores adotaram uma postura de vanguarda e visão crítica dos problemas de saúde das pessoas/famílias dos territórios trabalhados ao amadurecerem as atividades de ensino-aprendizagem e formação, tendo como referência as mudanças das diretrizes, protocolos e das políticas de saúde implantadas pelo Ministério da Saúde, no âmbito da atenção primária, e considerando as necessidades epidemiológicas e sociais das comunidades locais. Assim, foi possível incorporar novos conhecimentos e práticas implantados e/ou atualizados pelo SUS e, com isso, ampliar a resolutividade das ações desenvolvidas pelas Piesc na ESF, em um processo contínuo e dialogado de reestruturação curricular.

As Práticas de Integração Ensino, Serviço e Comunidade são desenvolvidas em 16 Unidades de Saúde da Família (USF), durante os quatro primeiros anos do curso, com carga horária de 150h/ano (4 horas semanais). A turma de trinta alunos é dividida em quatro grupos e cada um é alocado em uma USF. Dessa forma, é possível construir vínculos e assumir responsabilidades com a equipe de saúde da família, com os profissionais do Nasf e com as pessoas/famílias/comunidade.

Nos dois primeiros anos, nas Piesc I e II, o foco central é a construção do conhecimento que tem como referência a dinâmica da comunidade, a partir das balizas teórico-conceituais da Saúde Coletiva, cuja trajetória se confunde com a própria construção do SUS, constituindo-se em um campo de saberes e práticas sociais, multiprofissional e interdisciplinar. Dessa maneira, o objeto de intervenção é a saúde, no âmbito dos grupos e classes sociais e suas práticas voltadas para a análise de situações de saúde da população, incorporando o conhecimento produzido sobre os determinantes sociais e biológicos da saúde-doença, a formulação de políticas e a gestão de processos voltados para o controle dos problemas28.

No terceiro e quarto anos, nas Piesc III e IV, o foco do aprendizado são as pessoas/famílias, a partir do olhar da Medicina Geral de Família e Comunidade, especialidade médica que privilegia a APS, sendo considerada estratégica na conformação dos sistemas de saúde. O médico de família deve ser responsável pelo primeiro contato, cuidar de forma longitudinal, integral e coordenada da saúde de uma pessoa, considerando seu contexto familiar e comunitário29.

O processo de aprender fazendo, refletindo e ressignificando possibilitou desenhar um mapa conceitual (figura 1), com definição de objetivos, atividades teóricas e práticas e produtos finais.

Nas atividades teóricas, os debates são problematizados a partir de uma questão-guia e alinhados às políticas, protocolos e diretrizes do SUS. As capacitações e oficinas são desenvolvidas por professores com diferentes formações (Medicina, Odontologia, Enfermagem e Sociologia) e profissionais da rede SUS, com expertises sobre os temas geradores.

As atividades práticas são mediadas pelos professores e acompanhadas pelos profissionais da ESF e Nasf, propiciando interlocução e integração com as pessoas/famílias/comunidade dos territórios. Todas as atividades, individuais ou coletivas, são discutidas e pactuadas com todos os sujeitos envolvidos no processo de cuidado.

No fim de cada ano letivo, os professores revisitam os componentes do mapa conceitual e/ou as atividades realizadas, a partir das fichas de avaliação respondidas pelos estudantes, das necessidades dos serviços de saúde e dos problemas/agravos/riscos de saúde das pessoas/famílias/comunidade, tornando a ferramenta do planejamento pedagógico e da avaliação das Piesc dinâmica e contextualizada.

Dessa forma, as figuras da episteme evocadas nos diagramas apresentados no mapa conceitual têm sistemas postulados nos campos teóricos/práticos e nas racionalidades da dimensão social e política de organização da saúde, no SUS e da formação médica brasileira30. Constitui-se em um mosaico de aprendizagens, antes e durante o processo de vivência, presente na sociedade, na promoção da saúde e no cuidado de pessoas/famílias em territórios sociais de intercâmbios da realidade histórica, social e dialética postulado e defendido por Santos (2004)31.

Uma questão que merece discussão refere-se à criação do Programa Mais Médicos (PMM), em 2013, que tem a finalidade de fortalecer e ampliar a formação de médicos para o SUS, com o propósito de diminuir a carência de médicos no país; fortalecer a atenção básica em saúde; aprimorar a formação médica; ampliar a inserção do graduando nas unidades de saúde do SUS; e fortalecer a política de educação permanente com a integração ensino-serviço32.

As ações do PMM, na graduação em Medicina, estão direcionadas para o aumento da oferta de vagas, com o estabelecimento de critérios, para a abertura de novos cursos; e novos parâmetros para as DCN, redefinindo o perfil do médico a ser formado e fortalecendo o SUS, como cenário prioritário para formação profissional e com ênfase na atenção primária à saúde e urgência/emergência32.

Figura 1 Mapa conceitual da construção do conhecimento nas práticas de integração ensino, serviço e comunidade do curso de Medicina da Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, Brasil 

Por conseguinte, as novas DCN de 2014 estabelecem a necessidade de articulação entre conhecimentos, habilidades e atitudes, em três áreas específicas: atenção, gestão e educação em saúde. O futuro médico deve considerar na Atenção à Saúde “as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética”18 (p. 2). A Gestão em Saúde intenciona “compreender os princípios, diretrizes e políticas do sistema de saúde e participar de ações de gerenciamento e administração”18 (p. 3). Já a Educação em Saúde busca comprometer-se com a “formação inicial, continuada e em serviço, com autonomia intelectual e compromisso social”18 (p. 4).

O mapa conceitual das Piesc revela que as atividades pedagógicas teóricas e práticas contemplam as diretrizes do MEC18,27 e estão em consonância com as políticas de saúde adotadas pelo Ministério da Saúde. Ao inserir o estudante, desde o primeiro ano do curso, no cotidiano de uma USF, dialogando com os profissionais de saúde, com líderes comunitários e usuários do sistema de saúde, é estabelecida uma nova forma de protagonismo no processo de aprender, cuidar e produzir conhecimento6.

No primeiro ano do curso, nas Piesc I, buscamos desenvolver competências relativas ao compromisso social do médico; formação de valores ético-humanísticos; conhecimento da realidade do território da USF, identificando os problemas/agravos/riscos e práticas de saúde existentes; e elaboração de planos de intervenção que são discutidos e pactuados com a equipe de Saúde da Família e os membros da comunidade. Dessa forma, converge-se com o artigo 14 das DCN, segundo o qual a investigação de problemas de Saúde Coletiva “comporta o desempenho de análise das necessidades de saúde de grupos de pessoas e as condições de vida e de saúde de comunidades, considerando dimensões de risco, vulnerabilidade, incidência e prevalência das condições de saúde”18 (p. 9).

Nas Piesc II, os alunos desenvolvem competências relativas ao planejamento local, com operacionalização de ações e instrumentos de intervenção adequados e viáveis à realidade, conjuntamente com a comunidade e a equipe da USF e do Nasf, tendo como estratégias reuniões/oficinas comunitárias e rodas de conversa; espaços de conflitos; e consensos interprofissionais. Essas atividades contemplam o artigo 15 das DCN, que aborda a participação do educando na discussão e construção de projetos de intervenção em grupos sociais, considerando sempre a autonomia e aspectos culturais, com estímulo à inserção de ações de promoção e educação em saúde, em todos os níveis de atenção, com ênfase na atenção primária18.

As vivências das Piesc I e II sedimentam o conhecimento no campo da Saúde Coletiva, com base nas ações do planejamento estratégico, quando, a partir do diagnóstico situacional, os diversos sujeitos sociais (estudantes, professores, equipe de saúde, usuários e comunidade) constroem as várias explicações para a realidade do território social e negociam soluções viáveis de serem realizadas, monitoradas e avaliadas33.

As atividades das Piesc III e IV são voltadas para as famílias/pessoas, a partir da elaboração, discussão, pactuação e execução de Projetos Terapêuticos Familiares (PTF), com a realização de ações integrais (individuais e coletivas) de promoção da saúde; identificação de riscos e vulnerabilidades; prevenção de doenças e agravos; diagnóstico; tratamento; e manutenção da saúde na USF (consultas médicas), no domicílio (atividades educativas) e em serviços de referência (acompanhamento de procedimentos clínicos, sociais e de imagem), de modo articulado com a rede de atenção à saúde.

A utilização dos PTF reforça a prática evocada no artigo 5 das DCN:

[...] buscando o cuidado centrado na pessoa, na família e na comunidade, ênfase no trabalho interprofissional, com o desenvolvimento de relação horizontal, compartilhada, respeitando-se as necessidades e desejos da pessoa sob cuidado, família e comunidade, a compreensão destes sobre o adoecer, a identificação de objetivos e responsabilidades comuns entre profissionais de saúde e usuários no cuidado18. (p. 3)

O PTF constitui-se como instrumento de operacionalização da gestão do cuidado, buscando o provimento e/ou a disponibilização das tecnologias de saúde, de acordo com as necessidades singulares de cada pessoa, em diferentes momentos de sua vida34. É um movimento de coprodução e cogestão do processo terapêutico de pessoas/famílias que funciona como um dispositivo de integração e organização das equipes de saúde35. Sua utilização no cotidiano das Piesc concretiza o cuidado compartilhado entre estudantes, professores, equipe de saúde e pessoas/famílias e permite a construção de competências e habilidades essenciais para o médico atuar na APS e na ESF.

Além de estar em sintonia com as DCN e Políticas Públicas de Saúde, o mapa conceitual das Piesc encontra-se em consonância com as diretrizes para o ensino da APS na graduação em Medicina propostas pela Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) e Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC)29.

As referidas diretrizes estabelecem três dimensões de conhecimento para o ensino em APS. Na abordagem individual, o aluno deve “conhecer e utilizar a abordagem clínica centrada na pessoa integral, complexa, interdisciplinar, longitudinal e resolutiva, baseado em evidências científicas, mas singularizando o processo de cuidado”29 (p. 144-145). Na abordagem familiar, deve lidar com as distintas fases do ciclo de vida; reconhecer a estrutura e a dinâmica familiar; utilizar instrumentos do diagnóstico familiar; e identificar a influência das relações intrafamiliares no processo de saúde-doença-cuidado29. Na abordagem comunitária, deve conhecer e trabalhar com instrumentos de diagnóstico de saúde da comunidade; identificar a organização da sociedade/comunidade e de seus determinantes sociais no processo saúde/doença; identificar e respeitar a diversidade cultural; compreender que o território é dinâmico; desenvolver ações de vigilância em saúde; e participar de atividades de educação popular em saúde29.

A experiência das Piesc nos últimos 15 anos consistiu em participação dialógica e articulada às necessidades das comunidades e do processo de formação médica. No entanto, as dificuldades e tensionamentos estavam presentes, principalmente na compreensão pelos alunos sobre a importância do SUS e da APS para a sua formação; na articulação do processo de trabalho entre Piesc, ESF e Nasf; na pactuação e operacionalização das atividades dos PTF agregando os diferentes olhares sobre os problemas priorizados e na adesão das pessoas/famílias a um novo processo de cuidado baseado em um modelo de cogestão.

Esses entraves exigiram dos diferentes sujeitos negociações e avaliações contínuas, que só foram possíveis por conta do trabalho longitudinal e interprofissional23 das Piesc, que propiciou a construção de vínculos, com gestão e responsabilização pelo cuidado, elementos necessários à formação médica na APS e coerentes com os preceitos do “aprender fazendo”21.

Considerações finais

As Piesc buscam contribuir para a formação de um médico voltado às necessidades do SUS, compreendendo, como aponta Almeida Filho36, ser indispensável os sentidos da interdisciplinaridade da docência e dos campos teóricos e práticos na produção do conhecimento sobre um problema concreto e complexo.

O exercício da prática médica nas Piesc contempla a Saúde Coletiva e a Medicina Geral de Família e Comunidade, tendo como baliza o mapa conceitual (figura 1), e segue as proposições das DCN (2001 e 2014) e as orientações do SUS. Constitui-se, portanto, o relato da experiência vivida, que aborda o desenvolvimento da formação médica e demarca as práticas com as comunidades, famílias e pessoas na dimensão das vulnerabilidades e do cuidado, em parceria com a ESF e as redes de atenção à saúde, no âmbito local.

A vinculação das atividades de ensino-aprendizagem à realidade de saúde e às práticas do trabalho em equipe, marcadas pela reflexão do que fazer e como fazer de forma compartilhada, apontam para a responsabilização do cuidado, importante pressuposto da formação em saúde, em particular, do médico, na APS. Nesses cenários, a articulação da universidade aos serviços de saúde frente às necessidades e aos problemas da comunidade/famílias/pessoas é um grande desafio.

O trabalho das Piesc apresenta uma agenda de novas perspectivas e potencialidades embasada no fortalecimento do vínculo com os profissionais da ESF/Nasf e ampliação do trabalho interdisciplinar. Constata-se que as demandas dos PTF necessitam de continuidade, como parte da rede dos serviços de saúde, para garantir a resolubilidade das ações pensadas, planejadas e executadas. De certo modo, o desenvolvimento de projetos terapêuticos compartilhados depende do grau de responsabilização dos sujeitos envolvidos na gestão e no ato do cuidado. Significa formar profissionais de saúde, e, em especial, médicos, que incorporem novos modos de se fazer saúde, abrindo possibilidades de encontros criativos, para problematizar e refletir continuamente os processos de produção do pensar e fazer saúde.

As diretrizes curriculares dos cursos de Medicina de 2014 ampliaram a discussão político-pedagógica sobre a formação médica, alcançando todo o território nacional e compelindo todos os cursos de graduação em Medicina a rediscutirem suas bases curriculares. Isso sinaliza a importância da APS como coordenadora do cuidado no SUS, pois exige novos arranjos institucionais e a ampliação das estratégias que possam formar profissionais de saúde comprometidos com práticas integrais, de qualidade e resolutivas.

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34 Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):589-99.
35 Peixoto MT, Carvalho RC, Vilasboas ALQ. Projeto terapêutico familiar: uma experiência de atenção integral em uma unidade de saúde da família num munícipio do semiárido baiano. Rev Saude Colet Uefs. 2017; 7(2):35-43.
36 Almeida Filho N. Interdisciplinaridade na universidade nova: desafios para a docência. In: Cervi G, Rausch RB, organizadores. Docência universitária: concepções, experiências e dinâmicas de investigação. Blumenau: Meta Editora; 2014. p. 21-8.