versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.9 Rio de Janeiro set. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015219.18852016
O artigo de autoria de Gastão Wagner de Sousa Campos e Nilton Pereira Júnior intitulado “A Atenção Primária e o Programa Mais Médicos do Sistema Único de Saúde” nos faz refletir sobre os desafios na construção da Atenção Primária à Saúde e das redes assistenciais no Brasil. Os autores ressaltam o advento do Programa Mais Médicos (PMM) como uma significativa iniciativa do Governo federal, articulado com Estados e Municípios, para o enfrentamento de desafios da APS no país e apontam avanços, potencialidades e limites desta política.
Gostaríamos de comentar e destacar algumas preocupações com foco em um dos aspectos discutidos no artigo: a formação adequada dos profissionais de saúde, em especial dos médicos para a APS.
O apropriado provimento e a devida qualificação profissional, em especial de médicos, para as equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) constitui um dos desafios para a estruturação da APS no Brasil. A quantidade de médicos por habitante no Brasil em 2015 (2,11 médicos/1000 habitantes), segundo estudo recente sobre demografia médica organizado por Scheffer et al.1, é baixa se comparada a padrões internacionais como a França (3,0 médicos/1000 habitantes); Reino Unido (2,7 médicos/1000 habitantes) e Suécia (4,0 médicos/1000 habitantes)2, países que, como o nosso, oferecem sistemas universais de saúde. A distribuição dos médicos pelo território nacional é desigual em relação às regiões do país com mais da metade dos médicos na região Sudeste e com concentração de 55% nas capitais das unidades federativas1.
Como destacam os autores do artigo, o PMM apresenta-se como política de enfrentamento destas questões. O segundo eixo de estruturação do PMM, o de Formação Profissional, propõe soluções a médio e longo prazos, atuando sobre as graduações e residências médicas, tanto em relação à formação quanto à expansão de vagas. A meta anunciada do Governo Federal com o PMM é a criação de 11,5 mil novas vagas de graduação e 12,4 mil vagas de residência até 20173, seja por meio de abertura de novas vagas em cursos de graduação e programas de residência médica já existentes, seja por meio de novos cursos e programas.
O eixo da formação profissional tem importância para o fortalecimento da APS no Brasil, uma vez que o provimento emergencial com médicos estrangeiros possui caráter limitado e a consolidação da iniciativa depende da fixação de médicos brasileiros.
Especificamente sobre a graduação em Medicina, além da expansão do número de profissionais formados, o PMM busca alternativas que modifiquem o perfil de formação e que incentivem a interiorização dos médicos.
O artigo 4° da Lei no. 12.871 de 2013 estabelece a exigência de implantação efetiva das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) (2014) para o funcionamento dos cursos de Medicina4. Uma das diretrizes da lei detalhada nas DCN foi a obrigatoriedade de 30% da carga horária do internato do curso médico ser realizado na APS e em serviços de Urgência e Emergência do SUS4. Diferentemente das DCN publicadas em 2001, as novas trazem um prazo para sua implantação, exigindo que todas as escolas médicas estejam adequadas a elas até 20185.
Nos dois anos iniciais do PMM, foi autorizada a criação de 5,3 mil novas vagas de graduação médica, sendo 1,7 mil em universidades públicas (32%) e 3,6 mil em instituições privadas em todas as regiões do País (68%)6. Em 2015, o índice de vagas de graduação médica autorizadas por 10 mil habitantes, nas diversas regiões brasileiras foi: Centro-Oeste (1,00 vagas); Nordeste (0,98 vagas); Norte (1,05 vagas); Sudeste (1,20 vagas) e Sul (1,14 vagas) e a média nacional (0,81 vagas)3.
Se observarmos, por exemplo, o Estado do Rio de Janeiro, constatamos que a maior parte das vagas autorizadas são em municípios do interior fluminense, o que se coaduna com um dos objetivos do PMM, a interiorização dos profissionais médicos. Entretanto, todas essas vagas, e a maior parte delas em âmbito nacional, são em instituições privadas. Scheffer e Dal Poz7 analisaram a tendência crescente, nas últimas décadas, da privatização do ensino superior no País e questionaram a possibilidade de garantia de qualidade e acesso democrático nos cursos médicos privados. Essa tendência também nos preocupa na medida em que fragiliza a estabilidade deste processo e a relação necessária destas escolas com a rede pública de serviços de saúde. Uma experiência recente de falência de escola médica no Rio de Janeiro expôs a dependência de investimentos públicos para sua manutenção e os transtornos causados na rede de saúde onde seus alunos tinham inserção8.
De forma semelhante, o PMM também atua sobre os programas de residência médica. A principal intervenção sobre a estruturação da residência médica em âmbito nacional realizada pela política é a obrigatoriedade a partir de 2018, para todos os programas de Residência Médica (exceto nove especialidades de Acesso Direto), da realização de um ano de residência em “Medicina Geral de Família e Comunidade”4. Além disso, o PMM propõe a expansão dos programas de residência médica. Até dezembro de 2015, foram criadas 4.742 vagas em diversas especialidades em todo o Brasil3.
Considerando que alguns estudos apontam que a fixação dos médicos tem maior relação com o local de realização da residência médica, se comparado ao local da graduação1,9,10, ainda há uma concentração de vagas nos grandes centros urbanos e capitais. Para que o desejável processo de interiorização seja efetivado é necessário simultaneamente avançar na interiorização das residências.
Quanto às especialidades, o fortalecimento da APS depende da formação contínua de profissionais qualificados para a ESF. Nesse sentido, notase a progressiva institucionalização e expansão da Medicina de Família e Comunidade (MFC) enquanto especialidade médica, incluindo o aumento significativo nos números de programas de residência daquela especialidade pelo Brasil.
Cabe, contudo, ressaltar que a taxa de ocupação das vagas dos programas de residência em MFC no Brasil, em 2015, foi de 26,3%. De um total de 1.520 vagas, apenas 400 foram ocupadas, dado que nos preocupa, pois julgamos tal especialidade estratégica para a consolidação da APS e a expansão de vagas sem ocupação perderia o sentido do provimento médico para a ESF11. Aspectos relativos aos vínculos trabalhistas e à carreira destes médicos nos parecem relevantes na solução deste problema como ressaltaram Campos e Pereira Junior.
Concluindo, são inegáveis os avanços provocados pelo PMM, todavia, tendências observadas na sua implementação, aqui destacadas, podem obviar seus efeitos estruturantes sobre a formação médica. Cabe-nos, portanto, vigiar e agir!