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Formação profissional e violência sexual contra a mulher: desafios para a graduação em enfermagem

Formação profissional e violência sexual contra a mulher: desafios para a graduação em enfermagem

Autores:

Francisca Alanny Rocha Aguiar,
Raimunda Magalhães da Silva,
Indara Cavalcante Bezerra,
Luiza Jane Eyre de Souza Vieira,
Ludmila Fontenele Cavalcanti,
Antonio Rodrigues Ferreira Júnior

ARTIGO ORIGINAL

Escola Anna Nery

versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465

Esc. Anna Nery vol.24 no.1 Rio de Janeiro 2020 Epub 25-Nov-2019

http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2019-0135

INTRODUÇÃO

A discussão acerca da violência de gênero contra a mulher tem tomado vultosa importância no mundo, a partir de inúmeras situações vivenciadas por esta população. A compreensão desse fenômeno desafia centros de pesquisas em diversos países, especialmente, na tentativa de contribuir com governos para seu enfrentamento.1-4 Ao longo da história, a violência contra a mulher tem sido um instrumento ativo de discriminação que tem permitido construir, consolidar e solidificar essa desigualdade, a fim de obter o controle, a subordinação e impedir a sua plena emancipação.1-5

Nesse entendimento, a Convenção Interamericana para 'Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher' assume que esse tipo de violência corresponde a qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.5

Reconhecer a complexidade desse enfrentamento é basilar. Estudo realizado com 11 enfermeiras distritais em Centros de Atenção Primária à Saúde, em Estocolmo, Suécia, sobre a última vez que essas profissionais tinham atendido mulheres em situação de violência perpetrada por parceiro íntimo, evidenciou que as participantes hesitavam em perguntar sobre ocorrências de violências junto a essas mulheres, ainda que identificassem e reconhecessem sinais e sintomas de exposições à violência.6

Diante do cenário de bruscas transformações sociais, esfacelamentos de vínculos e retrocessos nas políticas públicas, torna-se crucial a construção de diálogos sobre a temática durante a formação profissional de futuros enfermeiros que cuidarão das mulheres em diferentes contextos.7-9

Apropriar-se do conhecimento sobre a tipologia, as explicações das violências e suas repercussões contribuem para equacionar a atenção à saúde e a garantia de direitos, bem como ofertar cuidado centrado na pessoa, visto que as violências se manifestam nos mais distintos contextos, com inclusão do ambiente universitário.10 Têm sido recorrente na literatura relatos de profissionais do setor saúde e de outros setores de políticas públicas sobre lacunas significativas na abordagem do tema no decorrer da formação profissional.10,11

Com base nessa constatação, verifica-se que a temática violência sexual (VS) contra a mulher é pouco reconhecida como parte integrante dos conteúdos de disciplinas ofertadas nos cursos de graduação na área de saúde.10,11 A "cultura do estupro", ainda presente na sociedade contemporânea, impacta no modo de pensar e agir da sociedade em diversos contextos.

Neste artigo, buscou-se articular os constructos teóricos da 'violência de gênero' defendida por Saffioti12 e da 'cultura do estupro' proposta por Sousa.13 Sobre violência de gênero, Saffioti apreende o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos, ante a função patriarcal em que os homens determinam a conduta de outras categorias sociais e recebem autorização ou a tolerância da sociedade. No tocante à 'cultura do estupro', Souza13 a expressa como um aglomerado de violências simbólicas que fomentam a legitimação, a tolerância e o estímulo à violação sexual.

Nesse contexto, a formação profissional carreia limitações centradas no paradigma clínico-biológico, em uma educação permanente descontextualizada, e na prática acrítica nos serviços de saúde. Nesse cenário, a atuação profissional em casos de violência é conduzida pela imperícia, pelo improviso, com base nas vivências e na sensibilidade pessoal, comprometendo a qualidade da assistência prestada.14

No Brasil, os documentos oficiais orientam as prioridades que devem ser consideradas na construção dos objetivos para a educação cidadã. Toma-se como marco a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, e os Parâmetros Curriculares Nacionais e Estaduais (1998). Em 2001 promulgaram-se as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) como embasamento do projeto político pedagógico direcionados para a formação profissional.15

As DCN exigem dos cursos de graduação interação com as realidades sociais e as demandas que delas emanam, pois compreende a educação como instrumento para que o indivíduo possa se reconhecer como protagonista na modificação da sociedade e construção da democracia. Desta forma, orienta-se que as Instituições de Ensino, desde a educação básica até o ensino superior, direcionem os projetos pedagógicos para os direitos humanos. Este envolvimento extrapola conteúdos voltados para o letramento, e preocupa-se, sobretudo, com a formação das pessoas.16

Questões invisíveis na análise tradicional da saúde pública, as quais se concentram majoritariamente no comportamento individual e nos fatores de risco biológicos, tornam-se imperiosas para compor o centro da agenda de saúde global 2030, como o enfrentamento da violência contra a mulher, dentre essas, a VS.17,18

Embora o perfil descrito nas DCN do curso de graduação em Enfermagem preconize o desenvolvimento de competência, habilidade e atitude do enfermeiro na atenção à saúde da mulher em situação de violência e reconheça a subjetividade inerente às necessidades humanas, a sociedade demanda que as Instituições de Ensino Superior (IES) apresentem perfis profissiográficos que respondam às complexas demandas sociais.

Esse tipo de ação alia-se aos procedimentos técnicos e a um cuidado qualificado, pois permitiria que os profissionais compreendessem as repercussões negativas à saúde da mulher em uma situação tão singular,18 direcionando para atenção integral a essa mulher. Apesar de o Brasil dispor de instrumentos normativos, éticos e legais que asseguram os direitos a uma atenção integral, a exemplo da Norma Técnica19 e da Lei Maria da Penha,20 a atenção ainda não se efetivou, bem como as matrizes curriculares no campo da saúde não contemplam, satisfatoriamente, a discussão sobre violência de gênero e, menos ainda, sobre violência sexual.

É imprescindível ampliar os debates sobre a VS em espaços de formação profissional, especialmente em sociedades marcadas pela reprodução dos estereótipos de gênero e pela cultura machista. Nessa lógica, torna-se relevante identificar as concepções ancoradas nas matrizes curriculares dos cursos de Enfermagem, profissão que destaca-se, a cada dia, na oferta do cuidado.

Com efeito, as matrizes curriculares que balizam a formação de enfermeiros(as) devem abranger a reflexão e a ação sobre a complexidade subjacente às situações de VS, compreendendo-as nas múltiplas dimensões desse fenômeno. Portanto, investigar a abordagem da VS contra a mulher nos currículos dos cursos de enfermagem, na perspectiva de alunos, professores e gestores universitários, potencializará a recondução de rumos e reorientação de práticas pedagógicas.21

Desta forma, este artigo intenta: (i) compreender os sentidos da VS contra a mulher na visão de alunos, professores e gestores universitários da graduação em enfermagem; e (ii) entender de que modo os conteúdos sobre esta temática são abordados nos cursos de graduação em Enfermagem nas instituições de ensino superior.

MÉTODO

Estudo qualitativo,22 descritivo, que se aproxima dos sentidos da VS contra a mulher, decorrentes da experiência dos participantes na operacionalização dos conteúdos presentes nas matrizes curriculares e demais atividades acadêmicas na graduação em enfermagem.

O estudo realizou-se em duas IES, uma localizada em um município da região Norte do Estado do Ceará (denominada de IES A) e, outra, na capital (denominada de IES B). Participaram 27 integrantes do curso de Enfermagem, distribuídos em: cinco alunos, sete professores e três gestores universitários da IES A; cinco alunos, cinco professores e dois gestores da IES B. Os entrevistados foram selecionados de forma não intencional, considerando a diversidade e o acesso aos participantes da pesquisa. Os participantes foram convidados por meio de correio eletrônico e contato pessoal, entretanto, todas as entrevistas foram gravadas presencialmente.

Com relação à quantidade de participantes, buscou-se, inicialmente, atender à sistematização do desenho da pesquisa qualitativa, de caráter multicêntrico. Caso fosse necessário, poderiam ser convidados novos participantes. Entretanto, a pré-análise revelou a recorrência de conteúdos nas falas dos entrevistados, sinalizando saturação teórica sobre o tema.23

O critério para a participação dos alunos foi estar matriculado a partir do quinto período e participar de atividades extracurriculares, a exemplo de grupos de pesquisa, extensão, monitoria e iniciação científica. A inclusão destes critérios se justifica pela predição dos pesquisadores de que o aprendizado até o quinto semestre, somado à experiência de participação nessas atividades, amplia o embasamento teórico-prático, favorecendo a maturidade do aluno em analisar a inclusão ou não da temática em estudo. Ademais, as atividades de extensão merecem destaque, conforme recomenda a Portaria N.º 1.350/2018 do Ministério da Educação,24 a qual trata das 'Diretrizes para as Políticas de Extensão da Educação Superior Brasileira', cujo teor reafirma o seu diferencial relativo à difusão de conhecimentos filosóficos, artísticos, literários e científicos em benefício do aperfeiçoamento individual e coletivo.

Quanto aos professores, o critério foi ser enfermeiro, estar no exercício da docência com experiência mínima de um ano, ser responsável por disciplinas que, segundo os coordenadores dos cursos, apresentam conteúdo sobre violência nas ementas. E, quanto aos gestores, deveriam participar da coordenação de cursos, projeto de extensão, pesquisa, estágio, atividades em campos de práticas, além de estarem no exercício docente. Entretanto, os gestores participantes da pesquisa, embora também fossem docentes, não responderam às entrevistas de professores, constituindo-se, assim, como critério de exclusão. Todos os convidados aceitaram participar da pesquisa.

A escolha do curso de Enfermagem deve-se ao fato de ser reconhecido como uma prática social, pelo processo de trabalho centrado no cuidado individual e coletivo, comum à prática clínica, educacional, administrativa/gerencial, comprometido com a atenção ao indivíduo, família e comunidade, em contexto plural de necessidades e demandas.25 A escolha deve-se também pela importância deste profissional na atenção às mulheres em situação de VS.26

A IES A, instituição privada, localizada em um município com 188.233 habitantes vem apresentando avanços significativos na educação básica no cenário nacional.23 A IES B, fundação educacional, na capital do Estado, tem uma população de aproximadamente 2.680 milhões de habitantes. Ambas ofertam o curso no decorrer de 10 semestres, com carga horária equivalente, atendendo às DCN para a graduação em Enfermagem.

Realizada entre março e novembro de 2018, a coleta de dados deu-se mediante entrevistas semiestruturadas, aplicadas individualmente pela primeira autora, enfermeira, auxiliada por aluna de graduação, que recebeu treinamento prévio para execução desta atividade. A coleta de informações foi realizada nas dependências das IES, em sala reservada, com horário e dia agendados previamente, com duração média de 25 minutos.

Os participantes foram identificados pela letra P (professor), A (aluno) e G (gestor), seguido do número correspondente à ordem de participação nas entrevistas, acrescido da vinculação institucional à IES A ou B. As falas foram gravadas em smartphones, transcritas na íntegra pelas entrevistadoras que, após o término da coleta, comprometeram-se em divulgar o resultado da pesquisa para as IES participantes do estudo.

Adotou-se como referencial teórico-analítico para a discussão dos resultados a 'violência de gênero'12 e a 'cultura do estupro'.13 Para a orientação e organização das informações, utilizou-se a análise de conteúdo na modalidade temática.22 As temáticas surgiram após a distribuição, em quadro, dos discursos correspondentes dos entrevistados e da extração de unidades de sentido, posteriormente, unidades de contexto e, por fim, elaboração das temáticas: concepções sobre a VS contra a mulher; abordagem da VS contra a mulher na formação profissional; e limites e possibilidades da inserção do tema no currículo de enfermagem.

O projeto foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa das Instituições: Instituto Superior de Teologia Aplicada - INTA, sob parecer n.º 3.234.478, e da Universidade de Fortaleza com parecer de n.º 2.108.403. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS

Caracterização dos participantes do estudo

A pesquisa contou com 27 informantes-chave entre alunos, professores e gestores das duas instituições de ensino superior. Destes, 81% são do sexo feminino, com idades que variaram entre 21 e 52 anos, com idade média de 33,1 anos. No tocante ao estado civil, 41% (11) são solteiros, 48% (13) são casados e 11% (3) são divorciados. Quanto à religião, 89% referem ser católicos. Entre docentes e gestores, o exercício da docência variou de 4 a 13 anos.

Concepções sobre a VS contra a mulher

Mostra-se recorrente nas falas a reiteração de que a VS contra a mulher visível na sociedade é a que se evidencia pelas manifestações físicas e/ou psicológicas. As falas apontam para a gravidade do fenômeno na medida em que associam o conceito de violência à morte e lesão. Consideraram ainda a complexidade e sobreposição de violências que circundam a mulher ao situar, também, as agressões verbais, morais, além da violência patrimonial:

Ato que consiste em morte ou uma lesão (...) uma violência física, psicológica, que acontece contra a maioria das mulheres. (A3 IES - A)

Pode ser uma agressão física, como uma agressão verbal e moral, que atinge essa mulher; até a violência patrimonial pode ser um tipo de violência para essa mulher. (P4 IES - A)

Também se observou uma reprodução da cultura machista, responsabilizando a mulher pelas violências sofridas a partir das relações de dominação estabelecidas:

Momentos de violência insignificantes que ela vai deixando passar e isso vai tomando um outro rumo dentro da vida dela, [...] eu acho que a mulher é violentada porque ela se deixa ser violentada. (G1 IES - A)

Eu acredito que também vai muito da percepção e da permissão da mulher. (G3 IES - A)

No entanto, a compreensão de outros participantes sobre a VS contra a mulher apontou para uma maior aproximação com os avanços conceituais e legislativos, reconhecendo a permanência das relações de poder e opressão, que negam a autonomia feminina e o consequente exercício dos direitos sexuais e reprodutivos:

A violência sexual contra a mulher vai além do ato físico em si. Antes eu pensava que era só o estupro, ligado ao corpo, mas hoje eu acho que até você falar alguma coisa, chamar ela de algum termo que ela não goste, para mim, isso é violência sexual. (A5 IES - B)

Considero qualquer ação, na qual a pessoa, valendo-se de uma posição de poder, fazendo o uso de força física ou coerção, intimidação ou alguma influência psicológica, ela obriga outra pessoa a ter ou presenciar ou participar de alguma maneira de interações sexuais ou algo que possa de qualquer modo ferir sua sexualidade. (P1 IES - B)

É todo e qualquer ato sexual que ele não consentido, independentemente de ser com o parceiro ou não. (P2 IES - B)

É tudo aquilo que ela é obrigada, não deu a permissão para que aconteça. (G1 IES - B).

Os participantes compreendiam que a VS contra a mulher é consequência de relações de poder, força e dominação na sociedade, que trata homens e mulheres de forma assimétrica e que se perpetua por gerações:

Vejo a violência contra a mulher como se fosse algo injusto, porque a gente vive há muito tempo numa sociedade machista. (A2 IES - B)

A mulher sempre foi submetida a isso. [VS] (A5 IES -A)

Os participantes enfatizam a multifatorialidade na gênese das violências contra a mulher, em que uma das manifestações, a VS, muitas vezes é "legitimada" pela "dominação masculina" através da distribuição desigual de poder, culturalmente aceita na sociedade.

As causas são multifatoriais, não necessariamente é só um, mas eu vou destacar alguns princípios que é o processo cultural, que coloca o homem com status e poder. (P2 IES - A)

Definiria [...] com uma única palavra: covardia. O preconceito de uma sociedade que vem sempre desvalorizando a mulher, achando que a mulher é sempre inferior. (G3 IES - A)

Abordagem sobre VS contra a mulher na formação profissional

Abordagens teóricas e metodológicas ainda incipientes sobre a VS contra a mulher na graduação da Enfermagem mostraram-se recursivas nas falas dos alunos. Ainda que identificada a inserção do tema no âmbito da pesquisa e das atividades de extensão como componentes da formação profissional, na compreensão dos alunos, o tema surge diluído em módulos que abarcam conteúdos dispersos ou apresentado como uma temática que demanda abordagem transversal, inscrita na matriz curricular.

Ao considerar a lacuna teórico-conceitual na graduação de Enfermagem, os depoimentos dos participantes atestam a ausência ou incipiência, desconhecimentos, sobre a VS contra a mulher:

Estou no sexto semestre e nenhuma aula foi dada sobre este assunto. (A1 IES - A)

Não, violência a gente não aborda muito. Violência não é abordado basicamente de nenhuma forma durante a academia agora. (A3 IES - B)

Não, não tem disciplina! Eu já estudei porque eu participei da liga de violência, então eu comecei a estudar sobre isso. (A4 IES - B)

Por outro lado, foram observadas falas dos alunos que recordam dessa abordagem, mesmo de modo superficial e incluindo os vários tipos de violência contra a mulher. Foi salientado que alguns docentes falaram até sobre a Lei Maria da Penha, indicando, desse modo, abordagem acerca dos aspectos legais que circundam a VS:

Foram abordados de forma bem sucinta os tipos de violência doméstica [...] contra a mulher. Até abordaram sobre a Lei Maria da Penha, mas foi bem superficial. (A5 IES - A)

Não focou exatamente no assunto, mas alguns dos meus professores, quando falam sobre saúde coletiva, que aborda vários temas, já abordou vários assuntos, inclusive sobre violência sexual. (A3 IES - A)

Ao reportar-se ao ensino, pesquisa e extensão que materializam o diferencial de IES na formação profissional, preparando profissionais para acolherem as demandas sociais, foram reconhecidos pelos professores e alunos(as) a existência de programas e projetos de extensão, com abordagens sobre a temática e, nessas atividades, os(as) alunos(as) têm possibilidades de exercerem um "tímido" protagonismo:

Em alguns momentos, existem conferências sobre a assistência de enfermagem a mulher em situação de violência e visita técnica à rede de apoio à mulher em situação de violência, direcionado pelo professor. (P1 IES - B)

Na época que eu estava nos estágios, a gente foi desenvolver uma das ações em uma das unidades de saúde que tratavam sobre violência sexual contra a mulher. (A2 IES - A)

Na LIGA [de estudo] de violência, eu comecei a estudar sobre isso. (A4 IES - B)

As falas dos professores reforçam que as discussões e possíveis aprofundamentos do assunto podem emergir nas atividades de pesquisa, prioritariamente em grupos de estudo e/ou de pesquisa, cujos temas articulam-se ao enfrentamento e às ocorrências da VS. Os eixos temáticos desses grupos abordam de diferentes modos os direitos sexuais e reprodutivos, como também as repercussões na saúde mental da mulher e da família:

Sei que tem um grupo de pesquisa que é Saúde Sexual e Reprodutiva, e que eu acredito que deva ser abordado esse tema. (P1 IES - A)

Meu grupo de pesquisa em Saúde Mental, a gente aborda profundamente a violência, não apenas a abordagem teórica, mas [...] também produz pesquisas a esse respeito. (P2 IES - A)

Nas falas dos gestores dos cursos de Enfermagem identifica-se um discurso consensual de que o tema se apresenta como transversal nas matrizes curriculares, salientando que essas discussões são retomadas nos módulos e/ou disciplinas direcionadas à saúde da mulher de uma forma geral. Os participantes acrescentam que a existência de seminários fomenta novos debates sobre o tema.

Dentro das disciplinas dos vários cursos de graduação, nós temos disciplinas transversais, são as disciplinas que tratam de assunto desse tipo, questão do racismo, da violência contra a mulher, e também têm as disciplinas que são direcionadas à saúde da mulher e, em determinados momentos da disciplina, fazem-se seminários abordando a violência sexual. (G1 - IES A)

Na Saúde da Mulher é trabalhado isso, a violência contra a mulher. Quando você trabalha também a Saúde Coletiva, você trabalha as diversas áreas da violência, também pode ser trabalhado no Processo Saúde e Doença transversalmente; mas, assim, eu acho que tem as disciplinas, os conteúdos curriculares diretos como a Saúde da Mulher e tem os transversais, que essa violência pode ser trabalhada. (G2 IES - A)

Bom, se eu entender conteúdo curricular como alguma disciplina específica eu diria que não, mas se eu entender conteúdo curricular como conteúdo que pode ser trabalhado em uma ou em diversas disciplinas, eu diria que sim, porque existe a transversalidade e não só no curso de enfermagem, mas em todos os cursos. Nós temos esses conteúdos curriculares transversais que abordam vários temas, e um desses temas é exatamente essa questão da conscientização sobre a violência contra a mulher e a violência de modo geral. Então eu responderia que sim, nós temos conteúdos, não em forma de disciplinas, mas em forma de temas transversais, que abordam essas questões. (G3 IES - A)

Um gestor esclarece a implantação do currículo integrado e a inclusão de temas complexos, anteriormente discutidos de forma pontual ou, simplesmente, não debatidos, para atravessar a estrutura curricular no decorrer da formação acadêmica. Dentre esses temas, a violência, de um modo geral, foi selecionada e vem alcançando êxito nessas abordagens.

Desde 2012, a gente implantou um currículo integrado, com muitos conteúdos que até então eram vistos de maneira muito pontual ou, muitas vezes, não visto, e a gente está conseguindo permear por vários semestres algumas temáticas, e uma das temáticas que na época o curso escolheu como temática transversal foi a violência de maneira geral. Hoje, ela é discutida desde o terceiro semestre. (G1 IES - B)

Dificuldades e possibilidades da inserção do tema no currículo de Enfermagem

Ao discorrerem sobre as dificuldades da inserção do tema nas matrizes curriculares dos cursos de Enfermagem, alunos e professores centralizaram as falas nos tabus que envolvem a sexualidade feminina. Estes referem-se ao desafio da mulher exercer múltiplos papéis na sociedade e desfrutar de sua autonomia no exercício da sexualidade.

Eu acho que existe ainda muito tabu, aí quando envolve a mulher, aí existe mais tabu ainda, porque está falando de violência e falando contra a mulher e ainda falando sobre sexualidade. (A1 IES - B)

Você já cresce dentro daquele ambiente machista, cheio de tabu e acha que falar sobre sexualidade é uma coisa assim sobrenatural. Então, é difícil você passar dentro de sala de aula para o aluno essa questão da sexualidade e da violência, porque tem mulher que acha que...? É casada e tem que ser submissa e pronto. Isso é uma violência. (A2 IES - B)

Em qualquer contexto, trazer à tona discussões que envolvem o tema da VS, é complexo. O tema é construído e reproduzido a partir de uma cultura enraizada nas relações de poder e imbricada com outas questões sociais, também desafiadoras. Considerando que se trata de um curso que na sua trajetória é predominantemente feminino, cujos envolvidos também estão inseridos nos contextos das desigualdades de gênero, o professor aponta a dificuldade na abordagem do tema.

É uma temática difícil de ser abordada, porque envolve questões culturais que são muito fortes e questões sociais, que acabam sobressaindo no debate. O que eu consigo perceber é que nossos grupos de alunos são predominantemente femininos. (P2 IES - B)

Soma-se a isto, a polêmica que se instala no ambiente da sala de aula ao constatar ou supor que falar sobre a VS possa confrontar ou inquietar alunas que vivenciaram situações violentas em algum momento de suas vidas. Esta preocupação é expressa nas falas de professores e gestores dos cursos de uma das instituições.

É um tema muito polêmico, então, às vezes, a gente mexe com o emocional de algumas alunas, porque algumas já passaram por essa situação. (P3 IES - A)

Inclusive nós já tivemos casos de violência sexual por parte dos nossos acadêmicos, que a gente realmente teve que intervir, porque estava também dificultando o aprendizado. A gente chegou a descobrir que era por isso. Então assim, é um assunto altamente delicado em que envolve muito o lado da família, o lado pessoal. A gente já vivenciou tanto o problema como também já vivenciamos a dificuldade de tocar nesse assunto dentro de uma turma por se tratar de um assunto polêmico. (G1 IES - A)

Esta gestora reafirma a dificuldade por parte dos professores de abordarem o tema deslocando o sentido e a compreensão das subjetividades e das experiências apropriando-se dos conceitos, dispositivos técnicos e legais. Nessa situação, firma-se o pacto do silêncio:

Vários docentes preferem não tocar no assunto, e o discente que, por sua vez, já passou por algo que vá lembrar ou que vá tocar na ferida do que aconteceu, também não vai querer que toquem. Então a dificuldade se dá por isso, o docente não mexe e o aluno, por sua vez, que tenha alguma sequela disso, também não quer que fale, e acaba não sendo um assunto muito discutido dentro da universidade. (G1 IES - A)

Identifica-se um entendimento que, embora reconheça a importância da cultura e do machismo como causa da VS, distorce a abordagem sobre o tema na formação profissional culpabilizando a mulher pela reprodução do machismo.

Eu acho que tem a questão cultural, a gente ainda vive numa sociedade que é machista. Então, mesmo a mulher é extremamente machista. Eu acho que tem a questão cultural ainda, de que briga de marido e mulher ninguém mete a colher! (G1 IES - B)

Por outro lado, visualiza-se na fala de um professor a inquietação com as demandas sociais, aqui representada pela VS contra a mulher, que precisa ser compreendida pela sociedade, quanto às múltiplas causas e repercussões. Esta compreensão perpassa as relações institucionais nos espaços macro e micropolíticos, que urgem por implicações de profissionais na busca do seu enfrentamento.

A dificuldade maior que eu vejo é de a violência ser enxergada como problema de saúde pública mesmo. Ainda pelo setor saúde, apesar de alguns anos estar em pauta essa discussão [...] essa preferência pelo modelo ainda biomédico de saúde ainda permanece. Um desafio é gerar nos professores e alunos essa visão mais ampla em diversos espaços e cenários. (P1 IES B)

Importante pontuar que alunos e professores manifestam o desejo de que o tema deva ser discutido para além das salas de aula, torne-se visível e se estenda à comunidade, onde mulheres fazem parte de um contexto cultural, cuja desigualdade de gênero prevalece e influencia opiniões e comportamentos. Com esta preocupação de disseminar debates sobre o tema nos espaços extramuros, alunos e professores apontam caminhos possíveis nas discussões sobre a VS, mesmo com um caráter ainda repressivo, desconsiderando a necessidade de empoderamento e protagonismo da mulher no enfrentamento à VS:

Deveria ser retratado isso na comunidade, porque muitas mulheres sofrem violência e a gente não sabe, porque muitas delas não denunciam. Então isso seria bom levar para comunidade, fazer uma blitz quem sabe de orientação, falar sobre essas leis de forma dinâmica, para causar impacto para essas mulheres, para elas saberem denunciar e saberem dos seus direitos. (A5 IES - A)

Acrescentam a urgência de discutir sobre o tema no decorrer da formação profissional em todas as disciplinas, preparando-os para lidar com as realidades complexas, a partir de um conhecimento científico e técnico qualificado. Do modo como vem sendo abordado na fala de um aluno, pouco acrescenta, porque 'o que aprendeu, todo mundo sabe':

Eu acredito que isso deve ser enfatizado desde o início da graduação, porque você escuta falar da violência da mulher só na disciplina de saúde da mulher em diante [...] (A2, IES - B)

Eu acho que em cada disciplina deveria falar um pouquinho sobre a violência, por exemplo, saúde da mulher, falar um pouco sobre a violência contra a mulher, na saúde da criança e do adolescente, falar também sobre a violência. Porque não é só a sexual, tem a psicológica, a física, a violência do idoso. Eu acho que em todas as disciplinas ou em quase todas deveriam abordar o assunto. Falar pelo menos um pouco, porque as pessoas iam se familiarizando mais, porque falar rapidamente em uma disciplina, eu acho muito breve, assim não tem como aprender. Eu não aprendi quase nada, eu aprendi o básico que eu acho que qualquer pessoa sabe. (A4 IES - B)

A gente tem que avançar nessa discussão, conversar mais sobre isso, para ir quebrando essas barreiras que existem até com os profissionais, para falar sobre a temática. (P5 IES - B)

Identifica-se também a preocupação de um gestor sobre como reconhecer cenários institucionais para abordar o tema da VS na IES, acrescentando que inexiste apropriação do conhecimento no curso de Enfermagem. Este conhecimento está sedimentado na formação do assistente social, porque as construções sociais estão presentes nos currículos destes cursos.

Eu acho que a dificuldade maior está em reconhecer os espaços dentro da instituição para poder inserir disciplinas, fórum e momentos de discussão. Acho que a dificuldade é a gente ter propriedade do assunto para poder difundir o conhecimento, as ações dentro da instituição, então acho que a dificuldade está aí. Se você pegar o serviço social, ele é muito forte, assim, ele trabalha muito bem isso, porque faz parte do seu conteúdo, lá da sua construção mesmo, as relações sociais [...] (G5 IES - A)

A fala alerta para a insuficiência de discussões, no curso de Enfermagem, sobre temas que desafiam à sociedade. Esta ausência fragiliza a formação de profissionais qualificados para atender mulheres em situação de VS que vivenciam diferentes contextos sociais.

DISCUSSÃO

As concepções apresentadas carecem de debates complexos e com maior amplitude nas IES, para influenciar na qualificação da formação profissional de enfermeiros(as) no que concerne ao conhecimento acerca da VS contra a mulher.

Vale ressaltar que, embora a maioria dos participantes da pesquisa seja do sexo feminino, a reprodução do discurso e concepções patriarcais nas falas femininas convergem para o assujeitamento da mulher ante a naturalização de atitudes e pensamentos caracterizados como um fenômeno social de amplitude global, ou seja, a fonte do discurso não interfere na forma de analisar o objeto de estudo ao diferenciar o gênero dos respondentes. Esta compreensão pode ser identificada na verbalização da gestora 1 e do gestor 3, ambos da IES A, conforme transcritos nos resultados.

É do conhecimento de que a VS contra mulheres evidencia-se como fenômeno complexo e multidimensional, podendo acarretar impotência de profissionais em conduzir situações que envolva o tema, pois é notório o déficit de conhecimento quanto aos aspectos sociais e psicológicos de indivíduos vitimizados e condições clínico-biológicas.27

Na trajetória acadêmica, universitários identificaram como violento os comportamentos que causavam danos visíveis ou físicos, referindo a violência corporal como a mais reconhecida, as violências moral e psicológica contra mulheres foram as mais presentes no namoro entre os respondentes, seguidas pela sexual, física e patrimonial.28 Estes resultados alertam para a importância da inclusão de debates igualdade de gênero respeito aos limites estabelecidos nas relações interpessoais.

Há resistências culturais em abordar a questão com as pacientes, prevalencendo o modelo biológico, em detrimento dos preceitos da integralidade, atribuindo, muitas vezes, o reconhecimento da VS à lesão física e superficial.25,29-31 Diante dessa premissa, pondera-se a necessidade de qualificação da formação profissional com foco nos interesses sociais e de saúde da população. Para isso, é importante garantir a inserção da temática violência de gênero e suas diferentes expressões no currículo mínimo, baseado na necessidade da comunidade, reconhecendo que as IES têm papel importante para ampliar a discussão nos espaços acadêmicos, e possibilitar a compreensão da construção desigual entre os gêneros.30,31

Constata-se a carência sobre a inclusão de conteúdos que discorram sobre a VS identificada a partir das vivências de alunos durante as práticas disciplinares. No entanto, os gestores das IES consideraram a multidisciplinaridade que circunda o tema e revelaram que a abordagem do conteúdo se dá de forma transversal na graduação, além de ser contemplado, também, em algumas estratégias de pesquisa e extensão.

Identificou-se que a inclusão da VS nos currículos ficaria à mercê da subjetividade do professor, pois como se constatou em algumas falas docentes deste estudo, debater temas complexos e interligados aos problemas sociais e que envolvem abordagens sobre sexualidade e questões de gênero são contrárias à visão de mundo desses professores.

Nesse sentido, a incipiência dessa discussão32 decorre da carência do tema da VS nos currículos acadêmicos de Enfermagem e outras áreas da Saúde e Serviço Social, cujas consequências implicam na fragmentação do atendimento adequado, potencializado pelo desconhecimento das mulheres em situação de violência sexual.

Em contraponto, em outros depoimentos os participantes do estudo mencionaram algumas orientações para disseminar a temática da VS contra a mulher como um agravo no campo da saúde, sendo necessário despertar a sociedade e os profissionais que atendem mulheres em situação de VS para esse tema.

O enfermeiro em muito pode contribuir no cuidado às mulheres em situação de VS, pois desempenha um papel central no acesso aos serviços de saúde, podendo ser o primeiro contato dessa mulher na busca pela rede de proteção e cuidado. Portanto, é fundamental que este profissional esteja sensível ao acolhimento com uma escuta qualificada, a identificação de sinais e sintomas não verbalizados e ao gerenciamento de uma atenção integral e resolutiva.

Estudos realizados envolvendo a prática de enfermeiros no enfrentamento da VS contra mulher recomenda: promover ações de prevenção e enfrentamento à VS, com divulgação dos núcleos e dos centros de referência; buscar, junto aos gestores, maior atenção para este tema; solicitar treinamentos, material didático e ações junto à comunidade; incluir, de forma sistemática, o estudo da VS durante a graduação de enfermeiros, garantindo aos estudantes oportunidade de participarem do atendimento às mulheres em situação de violência; e capacitar profissionais das Unidades Básicas de Saúde para que saibam lidar com a temática de forma segura e decisiva.17,25,33,34

Entretanto, estudo35 realizado com profissionais de saúde de um serviço de atenção primária para analisar as práticas profissionais na atenção à saúde da mulher em situação de violência, alerta para a 'psicologização da violência'. Os autores relatam que os profissionais entendem que o melhor e mais indicado atendimento para essas mulheres é o encaminhamento para os serviços de psicologia e saúde mental, pois, segundo eles, a resolução das questões relacionadas com as situações vivenciadas pelas mulheres em situação de VS estaria direcionada ao serviço de Psicologia, reconhecido como qualificado a abordar situações complexas.35,36

Esse posicionamento reflete a fragilidade na formação em saúde que, apesar de compartilhar campos de atuação, não integram conteúdos e práticas colaborativas, capazes de reduzir a fragmentação da atenção a indivíduos, família e comunidade.31,34-36

Detecta-se em algumas falas posturas que demandam uma reflexão crítica sobre as dificuldades de abordagem sobre o tema VS contra a mulher, não somente nos cenários das instituições de ensino, mas ampliando-se à sociedade brasileira. Assim, acentua-se a importância do preparo de profissionais para abordagem integral e na perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivo, capaz de promover a integração de saberes e práticas derivadas de diferentes campos de conhecimentos, que se complementam e apresentam interceções para promoção da saúde da mulher.

Contribui para esta discussão, estudo realizado no município de Fortaleza (CE), Brasil, que, a partir dos discursos dos participantes, verificou que o atendimento prioritário às situações de VS com mulheres era imputado ao assistente social, considerando a formação ancorada nos direitos sociais,34 reiterando achados identificados nesta pesquisa em que os currículos de enfermagem não preparam, de uma forma geral, para os futuros profissionais lidarem com fenômenos que aportam o setor saúde e que detém raízes nos determinantes sociais.

Manter os obstáculos e silenciar diante de realidades que permeiam os territórios e os pontos de atenção à saúde no curso da formação acadêmica é manter a reificação de uma cultura desigual que nega os direitos e a autonomia dos sujeitos. É retroagir nas conquistas e avanços na construção de marcos teóricos e legais no enfrentamento à VS contra a mulher.

Destaca-se, ainda, a dificuldade de educadores em encontrar espaços de discussão, adotando curto tempo para o diálogo de tópicos psicossociais em atenção à saúde de mulheres. No entanto, faz-se necessário identificar barreiras que impeçam a abordagem suficiente sobre a violência de gênero no âmbito da saúde de mulheres, para inspirar soluções e adotá-las aos currículos.36

Nesse sentido, a análise dos depoimentos discentes sugere opções para superar os problemas e dificuldades de abordar o tema nos cenários de ensino-aprendizagem e práticas, a exemplo de incorporar o conteúdo de violência contra a mulher transversal a todas as disciplinas, desde o início da graduação. Soma-se a isso, o reforço nas falas sobre a necessidade de disseminar orientações sobre as leis, os serviços existentes e a rede de proteção e apoio nas comunidades, por meio das atividades de extensão, módulos de prática e exercício profissional, empoderando as mulheres para desconstruir as desigualdades de gênero.

O processo de formação acadêmica, com base nas DCN, necessita estar fundamentado na perspectiva de tornar o sujeito capaz de pensar reflexiva e criticamente, inovando e criando, com autonomia, soluções para os desafios apresentados no cotidiano. Assim, este processo constitui-se no desenvolvimento de um cidadão crítico, capaz de enfrentar as rápidas mudanças do conhecimento e respectivos reflexos no mundo do trabalho.

Estudos37-39 apontam que a dificuldade dos profissionais de saúde em lidar com a violência na prática cotidiana ocorre por não perceberem determinados episódios como situações de violência e pelo receio de sinalizar para a equipe os casos identificados, evoluindo para um atendimento esvaziado e com descontínuo tratamento, o que acarreta uma segunda violência nos atendimentos, os quais deveriam acolher e apontar o caminho para proteção, com garantia de direitos.

Ao considerar a impotência perante os casos de violência, compreende-se também a necessidade de capacitação sobre os estudos de gênero aos profissionais, para proporcionar autonomia e atuação efetiva diante de tais situações, não se restringindo ao encaminhamento, diante da ausência de agravos físicos30,35 e/ou atendimento esporádico.40

Esse estudo deve ser ampliado para outras instituições de ensino superior de outros estados e regiões, no intuito de abranger as discussões e diversidades na abordagem do tema em múltiplas matrizes curriculares na formação acadêmica do futuro enfermeiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema da VS contra a mulher nas IES vem sendo abordado de forma fragmentada e diferenciada em diferentes contextos acadêmicos. Os envolvidos na investigação consideram difícil a abordagem da temática, devido ao seu caráter multifacetado, envolvendo questões subjetivas e culturais acerca das desigualdades de gênero.

No entanto, a pesquisa revela possibilidades de inserção de espaços de reflexão sobre a temática na formação de enfermeiros, a qual deve ser iniciada desde o início da graduação, transversalizando todo o curso e estendendo-se para a comunidade, por meio da disseminação de práticas que empoderem as mulheres para o enfrentamento da VS, permitindo, assim, a desconstrução das desigualdades de gênero presentes na sociedade.

Com efeito, a implementação das abordagens às violências contra a mulher, enfatizando a violência sexual como uma das mais implacáveis manifestações da violência de gênero, no decorrer da formação profissional e na práxis, potencializa a ressignificação da cultura patriarcal e aponta possibilidades para o enfrentamento da cultura do estupro.

Ainda que a investigação tenha contemplado somente duas IES da região Nordeste, este estudo abre novos horizontes para ampliar e aprofundar a discussão sobre a temática nos espaços acadêmicos no Brasil. Os achados subsidiam novas discussões e alinham-se ao momento oportuno em que se discute a reorientação das diretrizes curriculares para os cursos da saúde.

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