versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782
J. Pediatr. (Rio J.) vol.93 supl.1 Porto Alegre 2017
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2017.06.021
Alergia alimentar grave refere-se à resposta imunológica anormal a um determinado alimento em hospedeiro suscetível, faz com que apresente síndromes clínicas ameaçadoras da vida.1 Essas reações são reproduzíveis a cada vez que o alimento é ingerido e, na maioria das vezes, independe da dose.1 Compreende anafilaxia precipitada por alimentos, que é mediada pela IgE, e a forma aguda da síndrome da enterocolite induzida por proteínas alimentares (FPIES - Food Protein-Induced Enterocolitis Syndrome), que, supõe-se, é mediada por células.2
Reação anafilática ao ovo e ao peixe foi descrita desde o século XVI e XVII. Em décadas atrás, era um evento raro, mas houve aumento progressivo da prevalência, a ponto de, nos dias atuais, a alergia alimentar grave ser a principal causa de atendimentos nas emergências por anafilaxia.3 Leite, ovo, amendoim, castanha, nozes, trigo, gergelim, crustáceos, peixes e frutas são alguns dos alimentos que podem precipitar emergências alérgicas. No Brasil, inquérito direcionado a alergiologistas apontou alergia alimentar como a segunda causa de anafilaxia. Os principais incriminados foram o leite de vaca e clara de ovo, entre lactentes e pré-escolares, e os crustáceos entre crianças maiores, adolescentes e adultos.4 Em metanálise da literatura, a incidência estimada de fatalidade em países ricos, por anafilaxia alimentar em menores de 19 anos, foi de 3,25 por milhão de pessoas/ano.5 O estabelecimento precoce do diagnóstico e do tratamento correto e imediato pelo pediatra urgentista é capaz de evitar a letalidade e efetivamente salvar vidas.
O objetivo deste artigo é instrumentalizar o médico no manejo diagnóstico e terapêutico das formas graves de alergia alimentar. A partir da busca ativa na base de dados Medline com os termos severe food allergies, anaphylaxis and food allergy e food protein induced enterocolitis nos últimos dez anos e a busca incluiu os campos título, resumo ou palavra-chave. Foram selecionados para leitura completa os artigos de revisão e de recomendação que fossem úteis, segundo a avaliação dos autores, para fundamentar o escopo do artigo.
As duas situações em relação à alergia alimentar que levam o paciente à emergência são a anafilaxia alimentar e a síndrome da enterocolite induzida pela proteína alimentar, entidades clínicas com apresentação e manejo diferentes e que serão abordadas neste artigo de forma sequencial. Contudo, em ambas as abordagens, a ênfase será na fisiopatologia e nos aspectos associados, no diagnóstico, no tratamento de emergência e na orientação do paciente.
Anafilaxia alimentar é a reação grave mediada por IgE ao alimento, em que ocorre vasodilatação generalizada e ameaçadora da vida. A liberação de mediadores vasoativos na circulação sanguínea pode levar ao colapso vascular e à anafilaxia e ao choque. A vasodilatação é acompanhada de hipotensão e hipoperfusão, que pode comprometer órgãos nobres como cérebro e coração e resultar em isquemia e morte. Quando os sintomas cardiovasculares, como a hipotensão e choque, e os neurológicos, como confusão mental, perda de consciência e relaxamento de esfíncteres, estão presentes, o risco de morte é elevado. A administração de adrenalina e a elevação dos membros inferiores, ao restabelecer o tônus vascular e o retorno venoso, são medidas salvadoras da vida.4
A anafilaxia ocorre com aumento progressivo da permeabilidade vascular em que sintomas relativamente menores aparecem mais precocemente e prenunciam uma condição potencialmente fatal. Tudo se inicia com a exposição a um alérgeno alimentar, o qual forma uma ligação bivalente com a IgE específica que se encontra fixada nos receptores de alta afinidade dos mastócitos, os quais, através dos canais iônicos, levam a uma ativação reticular e conduzem à liberação de mediadores, tais como a histamina (principal mediador do eritema e do prurido), e de vários outros potentes mediadores vasodilatadores neo e pré-formados, que na derme superficial e profunda e no tecido celular subcutâneo causam edema que resulta em urticária e angioedema. No sistema digestório, acarretam náuseas, vômitos e diarreia e, no trato respiratório, causam coriza intensa, espirros, tosse, broncoespasmo, edema laríngeo e até mesmo apneia.4,6,7
A presença de urticária generalizada com angioedema, muitas vezes, é o sintoma inicial e indica que a vasodilatação e a broncoconstrição são iminentes e o paciente deve ser reconhecido e tratado com urgência para restabelecer o tônus vascular.8,9 A associação com asma aumenta a gravidade da reação e a resposta ao tratamento é bem mais difícil. Foi observado que em até 75% dos pacientes com anafilaxia fatal houve presença de asma concomitante.6,7,9
Algumas vezes, o quadro de alergia alimentar grave se desenvolve durante o exercício em associação com um alimento especifico (até quatro horas após a ingestão), caracteriza a anafilaxia induzida pelo exercício dependente de alimento. O exercício pode promover uma maior absorção do alérgeno inadequadamente processado e/ou promover a degranulação de basófilos e mastócitos sensibilizados ou ainda promover um excesso de síntese de metabólitos do ácido araquidônico.10 Nesse caso, a anafilaxia é resultante da associação do alimento e do exercício, enquanto o alimento e o exercício, quando acontecem isolados, são bem tolerados. O trigo é o mais comum, mas outros grãos, nozes e outros alimentos também têm sido incriminados.4,10
A anafilaxia induzida pelo exercício dependente do alimento pode ser precipitada por fatores associados como o consumo de anti-inflamatórios especialmente ligados à aspirina e pelo uso de álcool, que é comum entre os adolescentes.10,11
A gravidade das reações alérgicas alimentares vai depender da quantidade de alérgeno ingerido, da estabilidade do mesmo contra a digestão e da permeabilidade epitelial.10,11 Fatores associados, tais como idade, uso de medicamentos no início da reação, persistência de rinite alérgica grave, história de prévia anafilaxia, exercício e doenças intercorrentes, merecem ser considerados.10,11 A dose e o tipo de alérgeno alimentar que é sensibilizante e causa alergia alimentar grave podem variar entre indivíduos e até podem variar em um mesmo indivíduo em diferentes ocasiões. Quando o alérgeno alimentar encontra-se oculto, pode resultar em identificação tardia do agressor e maior risco para os pacientes.11
Os adolescentes apresentam maior risco de anafilaxia fatal por maior dificuldade em seguir a dieta de isenção. Doenças infecciosas agudas facilitam a degranulação dos mastócitos e favorecem o aparecimento de anafilaxia alimentar grave em presença do alérgeno especifico. Da mesma forma, banho quente em excesso e uso de medicação para febre, por alterar a permeabilidade intestinal, podem predispor a reações mais graves.11
Nos lactentes, a proteína do leite de vaca é o mais comum precipitante de anafilaxia por alimentos, mas as proteínas do ovo, da soja e outras também podem ser incriminados.1,4 Nos escolares e adolescentes, predominam a alergia aos crustáceos, peixes, amendoim, nozes e castanhas como situações potencialmente ameaçadoras à vida.4 O trigo é o precipitante mais comum de anafilaxia induzida pelo alimento dependente de exercício, através de uma fração proteica contida no glúten, a 5-ômega gliadina.10
O diagnóstico da anafilaxia alimentar é relativamente fácil. É importante ressaltar que, por ser uma reação alérgica potencialmente fatal, deve ser tratada como uma emergência médica, com a administração imediata de adrenalina, e assim o diagnóstico já deve vir associado com a prontidão do tratamento para que o resultado seja favorável.6,7 A anafilaxia alimentar ocorre de forma súbita geralmente em minutos ou poucas horas após a ingestão de alimento com a presença de prurido intenso com placas eritematosas generalizadas que tendem a confluir frequentemente. Esse quadro pode ser acompanhada de angioedema de lábio, ocular ou até mesmo de língua e úvula, seguido de acometimento adicional de pelo menos um dos seguintes sistemas orgânicos: respiratório (dispneia, sibilos/broncoespasmo, estridor, hipoxemia), cardiovascular (hipotensão, hipotonia, choque), gastrintestinal (náuseas, vômitos, dor abdominal) e neurológico (confusão mental, lipotimia, perda de consciência). Em até 20% dos casos a anafilaxia pode ocorrer com dois ou mais desses sistemas orgânicos envolvidos, mas sem comprometimento cutâneo, o que torna o diagnóstico muito mais difícil.4,6 A anafilaxia deve ser diferenciada principalmente da síndrome vaso-vagal (nesse caso, a pele encontra-se fria, pálida e úmida), da crise aguda de asma grave e da urticária aguda generalizada pós-alimentar, que, como mencionado anteriormente, já pode ser considerada e manejada como anafilaxia.4,6,8,9,11
Embora urticária e angioedema sejam sinais comuns de reações alérgicas aos alimentos, especialmente durante a evolução para anafilaxia, é importante frisar que a sua ausência não exclui a possibilidade de uma alergia alimentar grave. Em até 20% dos casos de anafilaxia alimentar pode não existir envolvimento de sintomas cutâneos e a falta desses sintomas pode resultar no reconhecimento tardio e retardo no tratamento e aumento da letalidade.8
Além da anafilaxia alimentar clássica, é importante reconhecer a anafilaxia induzida pelo exercício dependente de alimento. Os sintomas iniciais são fadiga, calor, vermelhidão, prurido e urticária, que, algumas vezes, podem ceder quando o paciente interrompe a atividade física e descansa; outras vezes, quando o exercício continua, podem aparecer angioedema, sintomas gastrintestinais, edema de laringe, broncoespasmo, hipotensão e choque.10
Quando houver dúvidas no diagnóstico de anafilaxia, a dosagem de triptase colhida durante ou logo após a resolução do evento, quando disponível, pode ser usada para confirmar o diagnóstico a posteriori. A dosagem da IgE específica para os componentes alergênicos alimentares posteriormente deve ser feita.4
O manejo da anafilaxia deve ser de imediato, o paciente deve receber oxigênio sob máscara ou cateter e ser colocado em decúbito dorsal com membros inferiores elevados (posição de Trendelenburg), a adrenalina deve ser administrada por via intramuscular no vasto-lateral da coxa. A punção venosa deve ser feita assim que possível para manutenção da volemia, mas sempre após fazer os três procedimentos fundamentais mencionados, sem perda de tempo. Na dúvida, a droga deve ser prontamente administrada para prevenir anafilaxia fatal e, especificamente, para alergia alimentar, é salvadora da vida e reduz a probabilidade de admissão hospitalar.7 O mecanismo de ação ocorre através do efeito alfa-adrenérgico que reverte a vasodilatação periférica, reduz significativamente o edema da mucosa, a obstrução das vias aéreas superiores (edema de laringe), bem como a hipotensão e o choque, além de reduzir os sintomas de urticária/angioedema. Suas propriedades β-adrenérgicas aumentam a contratilidade do miocárdio, o débito cardíaco e o fluxo coronariano, além de produzir potente ação broncodilatadora.4,6 A via intramuscular é preferível porque atinge concentrações de pico mais rápidas do que a via subcutânea e é dez vezes mais segura do que a via intravenosa em bolus e sem acarretar qualquer risco de perda de tempo e a rica vascularização desse músculo permite que, mesmo em estado de insuficiência circulatória, a medicação seja prontamente absorvida com aparecimento de efeito imediato.4,6,12
A tabela 1 contém as orientações para condução de anafilaxia alimentar na urgência. A adrenalina deve ser usada na dose de 0,01 mg/kg por via intramuscular (IM) até a dose máxima de 0,3 mg/kg em crianças. Se a resposta inicial for insuficiente, logo após cinco a 15 minutos, a dose pode ser repetida uma ou mais vezes. Estima-se que até 20% dos pacientes tratados podem necessitar de segunda dose. A administração tardia pode levar a um aumento do risco de hospitalização, de insuficiente perfusão cardíaca, de encefalopatia hipóxico-isquêmica e de morte. A ação farmacológica inclui também palidez transitória, tremor, ansiedade e palpitações, que, embora percebidas como efeito adverso, são semelhantes à reação fisiológica de estresse agudo.7
Tabela 1 Conduta e principais agentes terapêuticos no tratamento da anafilaxia
Conduta/Agente terapêutico | Recomendaçoes | |
---|---|---|
Manter sinais vitais | Checar A (vias aéreas), B (respiração), C (circulação) e M (mente - sensório) | Manter posição adequada (decúbito dorsal com MMII elevados). Levantar-se ou sentar-se subitamente está associado a desfechos fatais ("síndrome do ventrículo vazio"). |
Adrenalina 1:1000 (1mg/ml) |
Crianças: 0,01mg/kg até o máximo de 0,3 mg IM na face anterolateral da coxa. Adolescentes: 0.2-0,5 mg (dose máxima) IM na face anterolateral da coxa. |
Administrar imediatamente e repetir se necessário a cada 5-15 minutos. Monitorar toxicidade (frequência cardíaca) Adrenalina em diluições de 1:10.000 ou 1:100.000 somente deve ser administrada via EV nos casos de parada cardiorrespiratória ou profunda hipotensão que não respondeu à expansão de volume ou múltiplas injeções de epinefrina IM. |
Expansão de volume Solução salina ringer lactacto |
Crianças: 5-10ml/kg EV nos primeiros 5 minutos e 30ml/kg na primeira hora Adolescentes: 1-2 litros rapidamente EV |
Taxa de infusão é regulada pelo pulso e pressão arterial. Estabelecer acesso EV com o maior calibre possível. Monitorar sobrecarga de volume |
Oxigênio (O2) | Sob cânula nasal ou máscara | Se Sat O2< 95%, há necessidade de mais de uma dose de adrenalina |
EV, endovenoso; IM, intramuscular.Adaptado e modificado de Lockey et al.12
O uso de medicamentos secundários é descritos na tabela 2. Sabe-se que os anti-histamínicos previnem o prurido e a urticária, mas não aliviam os sintomas respiratórios, a hipotensão nem o choque. Assim, da mesma forma que os corticoides, são medicamentos adjuvantes que não são indicados para tratamento inicial. O corticoide pode ajudar na prevenção da fase secundária da anafilaxia, que pode reaparecer em até 12-24 horas após o evento inicial, mas essa apresentação bifásica é bem menos comum na anafilaxia por alergia alimentar. Caso haja asma em crise, o uso de beta-2 inalado deve ser considerado.7
Tabela 2 Medicamentos secundários no tratamento da anafilaxia
Agente | Recomendação | |
---|---|---|
β2-Agonistas Sulfato de salbutamol |
Via inalatória: Aerosol dosimetrado com espaçador (100 mcg/jato) Crianças: 50 mcg/Kg/dose = 1jato/2kg; Dose máxima: 10 jatos Adolescentes 4-8 jatos, a cada 20 min, Nebulizador: solução para nebulização: gotas (5 mg/mL) Crianças: 0,07-0,15 mg/kg a cada 20 minutos até 3 doses Adultos/adolescentes 2,5-5,0 mg, a cada 20 min, por 3 doses Dose máxima: 5 mg |
Para reversão do broncoespasmo |
Anti-histamínicos Prometazina Difenidramina Ranitidina |
Crianças: 1 mg/kg EV até máximo 50 mg Adolescentes: 25-50 mg EV Crianças: 1 mg/kg Adolescentes: 12,5-50 mg EV em até 10 minutos |
Agentes anti-H1 associados a anti-H2 podem ser mais eficazes do que os anti-H1 isolados Dose oral pode ser suficiente para episódios mais brandos Papel secundário e ainda não bem determinado. |
Esteroides Metilprednisona Prednisona |
1-2 mg/kg/dia EV 0,5-1 mg mg/kg/dia VO máximo 40 mg |
Padronização de doses não estabelecida Prevenção de reações bifásicas? |
anti-H1, anti-histamínico H1; anti-H2, anti-histamínico H2; EV, endovenoso; IM, intramuscular; VO, via oral.Adaptado e modificado de Lockey et al.12
Em paciente com antecedentes de anafilaxia muito grave, é recomendado iniciar o tratamento com adrenalina logo após a provável ingestão e aparecimento do primeiro sintoma (mesmo quando leve, tais como coceira da face/boca ou sintomas leves de desconforto gástrico ou náuseas), porque a evolução rápida para anafilaxia grave é esperada e habitual.7 A mesma conduta é prudente e recomendável para as crianças em risco de evoluir para anafilaxia alimentar com asma não controlada.11
Uma vez feito o atendimento ao paciente, é fundamental identificar o possível alimento agressor. O paciente com anafilaxia deve permanecer 12-24 horas em observação, pois pode ocorrer resposta tardia secundária e também deve ser aconselhado a evitar exercícios nos próximos sete dias. A prescrição de corticoide oral (prednisona ou prednisolona na dose de 1-2 mg/kg/dia máximo de 40 mg/dia) por cinco a sete dias e de anti-histamínicos de segunda geração por, no mínimo, sete dias (exemplo: fexofenadina em doses de 2,5 ml duas vezes ao dia para menores de seis anos, 5 ml duas vezes ao dia para maiores de seis anos ou um comprimido de 120 mg duas vezes ao dia para adolescentes) é recomendável. É ainda prudente a recomendação de evitar atividade física na semana seguinte ao episódio.4
Para a anafilaxia induzida pelo exercício dependente de alimento, que ocorre principalmente em adolescentes, também encaminhar o paciente a um especialista. Em nível ambulatorial, irá ser verificado se a IgE específica ao possível alimento implicado é positiva e se há ausência de sintomas na ingestão desse alimento na ausência de atividade física e ausência de sintomas durante o exercício sem ingestão do alimento incriminado.10
O manejo posterior da alergia grave, IgE mediada por alimento, consiste principalmente na dieta de isenção por determinado período. A proposição de imunoterapia alérgeno-específica para anafilaxia alimentar, especialmente com leite assado na forma de bolo ou biscoito (baked milk), para prevenir anafilaxia, ainda persiste como um tratamento experimental em avaliação.3,13
Uma importante recomendação à família do paciente que sofreu anafilaxia grave é a necessidade de portar adrenalina autoinjetável. Esses dispositivos estão disponíveis em doses fixas (0,15 mg crianças até 30 kg; 0,3 mg para crianças maiores/adolescentes) e estão indicados especialmente nos casos de risco elevado de exposição antigênica. Infelizmente, os prazos de validade desses dispositivos são limitados, o custo é elevado e não estão disponíveis no Brasil e em outros países.4
Quando não for possível dispor de adrenalina autoinjetável, doses preparadas e montadas de adrenalina, de acordo com o peso do paciente, em seringas de insulina, pelo profissional de saúde, adequadamente protegidas da luz solar e bem acondicionadas, podem ser oferecidas ao paciente e/ou aos parentes adequadamente treinados. Um esquema que pode ser usado de forma simples e segura por via intramuscular é o seguinte: até 10 kg, 0,1 ml IM, de 10-20 kg, 0,2 ml IM e acima de 20 kg, 0,3 ml IM. Da mesma forma, alertar para o cuidado de não perder a dose ao manusear a seringa, bem como explicar que, a cada 2-3 meses, deve haver substituição para evitar perda de efeito do medicamento pela exposição ambiental.7,14
É importante que a família, os professores e os líderes comunitários reconheçam cada vez mais os sinais precoces e que saibam manejar a anafilaxia com adrenalina autoinjetável ou mesmo providenciar e treinar o uso da medicação montada em seringa quando essa apresentação não estiver disponível (tabela 3).14,15
Tabela 3 Recomendações preventivas de anafilaxia por alimento para a família, professores e líderes comunitários
Recomendações |
---|
- A família, a escola e a comunidade devem colaborar para evitar exposição do paciente ao alérgeno alimentar. |
- Critérios e treinamento para reconhecer e manejar precocemente os sintomas de provável anafilaxia são desejáveis e possíveis de ser aplicados na família, na escola e na comunidade. |
- Pacientes com história anterior de anafilaxia devem portar adrenalina autoinjetável. |
- Em casos de risco elevado e sem disponibilidade de adrenalina autoinjetável, portar adrenalina montada em seringa de insulina encoberta após treinamento pode ser conduta válida. |
- Paciente com anafilaxia induzida pelo exercício dependente de alimento deve evitar atividade física por quatro horas após o alimento indutor, que na maioria das vezes é o trigo. |
- Paciente com anafilaxia induzida pelo exercício dependente de alimento também deve evitar fatores precipitantes da reação, tais como álcool e uso de AINES, em especial a aspirina, quando ingerir o alimento alergênico. |
- Pacientes em risco de anafilaxia devem ter uma placa de metal no braço ou um cartão que identifique a qual alimento é alérgico. |
A patogenia das alergias alimentares não IgE mediadas ainda não foi esclarecida, pelo fato de que endoscopias e biópsias não são rotineiramente feitas. A FPIES tem sido a mais investigada; vários estudos sugerem um papel chave das células T, com secreção de citocinas pró-inflamatórias que podem alterar a permeabilidade intestinal.2 Embora neutrofilia e trombocitose ocorram em pacientes com FPIES aguda, o papel dessas células no mecanismo patogênico ainda não foi estabelecido. As IgEs contra o alimento causal não são tipicamente detectadas, porém, em um subgrupo de crianças, podem estar presentes na fase aguda ou durante sua evolução.16 Esses pacientes tendem a evoluir com um curso mais prolongado e, em alguns casos, a progredir para alergia IgE mediada.2 A via neuroendócrina parece ter um papel na patogênese da FPIES, baseada na eficácia da ondansetrona, receptor antagonista da serotonina (5-HT3), no manejo da reação aguda da FPIES.17,18
A FPIES aguda caracteriza-se por vômitos incoercíveis, palidez e/ou letargia dentro de 1-4 horas após a ingestão do alimento. Diarreia pode ocorrer dentro de 5-10 horas após a ingestão, particularmente no lactente jovem com fenótipo mais grave (menos de 30% são crianças maiores de um ano). O evento de FPIES aguda pode ser a primeira manifestação ou pode ocorrer quando o alérgeno alimentar for introduzido após um período de exclusão em pacientes portadores da forma crônica; seria um episódio de FPIES aguda na forma crônica da doença. A FPIES crônica compartilha características clínicas com a enteropatia induzida por proteínas alimentares, como síndromes de má absorção, anemia, diarreia e vômitos em crianças menores de nove meses; entretanto, nesses pacientes, a diarreia é um sintoma mais proeminente, mas não leva a distúrbios metabólicos e desidratação grave como na FPIES aguda. A FPIES ocorre também em crianças maiores e adultos, por exposição a peixe ou camarão. Ao contrário do que ocorre na proctocolite induzida pela proteína alimentar, a FPIES é rara em crianças em aleitamento materno exclusivo.19
A FPIES devida a alimentos sólidos ocorre, tipicamente, mais tarde do que leite de vaca e soja, provavelmente relacionada ao tempo de introdução na dieta da criança. A maioria dos pacientes de FPIES reage a um único alimento (65-80%), geralmente LV ou soja. Contudo, os pacientes com FPIES por LV/soja podem reagir aos sólidos. Nos Estados Unidos, até 50% dos pacientes com LV/soja reagem a ambos os alimentos e cerca de um terço dos pacientes com LV e/ou soja reage aos sólidos.19
A maioria das crianças com FPIES a sólidos reage a vários alimentos; particularmente àqueles com FPIES ao arroz, à aveia ou à cevada apresentam sintomas relacionados a outros grãos. Pacientes com FPIES a múltiplos alimentos são menos comuns no Japão, Austrália e Itália. Essas diferenças podem refletir hábitos alimentares específicos de cada país e reforçam a hipótese de que introdução precoce de LV e soja é um fator de risco para FPIES a essas proteínas e alimentos em idades mais tardias.19
Baseia-se na história clínica, no reconhecimento de sintomas clínicos, na exclusão de outras etiologias e no teste de provocação oral (TPO) sob supervisão médica. Embora TPO seja o padrão-ouro, a maioria dos pacientes não precisa ser submetida à confirmação, especialmente se têm uma história de reações graves e se tornarem assintomáticos após a eliminação da proteína suspeita. No entanto, os testes de desencadeamento são necessários para determinar a resolução da FPIES ou para confirmar FPIES crônica.20 Os critérios diagnósticos para FPIES são apresentados na tabela 4.
Tabela 4 Critérios atuais usados para diagnóstico de FPIES
1. Idade menor de dois anos na primeira apresentação (frequente, mas não obrigatório) |
2. Exposição ao alimento suspeito desencadeia vômitos em jato, palidez, letargia em 2-4 horas Os sintomas duram poucas horas e se resolvem, usualmente, em 6 horas. Diarreia pode estar presente, menos frequente, e surge em 5-10 horas |
3. Ausência de sintomas que sugerem uma reação IgE mediada |
4. A exclusão na dieta da proteína envolvida resolve os sintomas |
5. A reexposição ou teste de provocação oral desencadeia os sintomas em 2 a 4 horas |
Duas exposições são necessárias para estabelecer o diagnóstico definitivo sem necessidade de fazer o teste de provocação |
O diagnóstico diferencial de FPIES é extenso e inclui doenças infecciosas, outras alergias alimentares e obstrução intestinal, bem como doenças neurológicas e metabólicas (tabela 5). Os episódios iniciais são, muitas vezes, diagnosticados como gastroenterite aguda viral ou sepsis, quando ocorre letargia profunda, hipotensão e têm uma contagem elevada de leucócitos com desvio à esquerda. Muitas outras condições também podem ser consideradas no diagnóstico diferencial, especialmente nos lactentes com episódios de vômitos repetidos e prolongados. Distúrbios metabólicos estão presentes e levam à desidratação, à letargia, bem como a acidose metabólica.21
Tabela 5 Principais situações clínicas no diagnóstico diferencial de FPIES
Infecções | Alergia | Distúrbios do trato digestório | Outras |
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Gastroenterite viral | Outras alergias alimentares não IgE mediadas | Doença do refluxo gastroesofágico | Distúrbios neurológicos (encefalopatia, ou hemorragia) |
Sepsis | Doença de Hirschprung | Cardiopatias (miocardiopatias, arritmias, cardiopatias congênitas) |
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Gastroenterite bacteriana (Shigella, salmonella, campilobacter, Yersínia) |
Reação IgE mediada aguda (anafilaxia) | Invaginação intestinal | Intoxicação exógena |
Volvo | Erros inatos do metabolismo | ||
Estenose hipertrófica do piloro | Meta-hemoglobinemia congênita. | ||
Doença celíaca | |||
Enterocolite necrosante Divertículo de Meckel |
O tratamento da FPIES aguda na emergência é baseado em três pontos principais:18,19:
Ressuscitação hidroeletrolítica - 10-20 ml/kg de peso em bolus de soro fisiológico;
Administração de metilprednisolona - 1 mg/kg de peso IV máximo de 60-80 mg;
Ondansetrona IV ou IM - 0,15 mg /kg/peso.
Após essas condutas iniciais na emergência o paciente deve ser mantido hospitalizado, em venóclise de manutenção, para hidratação e reposição de perdas, monitoramento dos sinais vitais (pulso, temperatura, tempo de enchimento capilar, frequência cardíaca e pressão arterial). Doses adicionais de ondansetrona podem ser necessárias, assim como correções dos distúrbios hidroeletrolíticos, baseadas nas perdas. Exames complementares devem ser solicitados: hemograma com plaquetas, ionograma, gasimetria.
O manejo da alergia alimentar não IgE é empírico pelas evidências limitadas e controvérsias em muitas áreas de sua fisiopatologia. A dieta de exclusão da(s) proteína (s) dos alimentos é fundamental. Na FPIES, o aleitamento materno exclusivo deve ser preservado. As fórmulas de hidrolisado proteico são em geral bem toleradas, embora em torno de 20% dos pacientes possam necessitar de fórmulas à base de aminoácidos.20.O acompanhamento com um especialista está indicado para os cuidados específicos, especialmente para orientação nutrológica e controle dos sintomas durante e logo após internamento.