versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.1 São Paulo jan./mar. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170004
A doença renal crônica (DRC) é um importante problema de saúde pública, devido a sua elevada prevalência e morbimortalidade,1 especialmente de causas cardiovasculares (DCV).2 Além disso, à medida que a DRC progride, é observada uma piora importante na qualidade de vida dos indivíduos e um aumento exponencial nos custos de tratamento.3 Portanto, reduzir a progressão da DRC para os estágios mais avançados e atenuar o risco cardiovascular são dois dos principais objetivos do tratamento desta enfermidade.4,5
Está bem estabelecido que o controle da pressão arterial (PA) e a redução da proteinúria são pilares importantes para a preservação da função renal e das complicações associadas à DRC6 e o sódio ingerido é um fator de risco modificável que tem sido associado com ambas as complicações. Ademais, além do seu conhecido efeito direto na sobrecarga volêmica,7,8 há evidências de que o consumo excessivo de sódio afeta diretamente os sistemas vasculares, mediando fatores como inflamação, estresse oxidativo, disfunção endotelial e rigidez arterial.9-11
De fato, além de um melhor controle da PA e da proteinúria em estudos que testaram a diminuição do consumo de sódio em pacientes com DRC,7,12 foi também evidenciado que o consumo elevado de sódio esteve associado à piora da função renal e a desfechos cardiovasculares nesta população.13,14
Apesar da grande importância, a avaliação do consumo de sódio na prática clínica é complexa e monitorada com baixa frequência. Um número reduzido de estudos que realizaram esta avaliação em pacientes em DRC indicou que 60% a 90% dos pacientes consomem mais que 6 g de sal ao dia,15-17 ingestão máxima recomendada pela National Kidney Foundation Kidney Disease Outcomes Quality Initiative (NKF/KDOQI).
A baixa frequência em que o consumo de sódio é avaliado se deve à reconhecida inacurácia dos métodos de avaliação da ingestão alimentar18 e à inconveniência das coletas sequenciais da urina de 24 horas.19 De fato, a excreção urinária de sódio em 24 horas é considerado o método padrão ouro pela OMS, já que a excreção renal reflete quase que totalmente o consumo de sódio.20
Coletas de urina noturna ou de amostra casual ou isolada têm sido propostas como alternativas por serem mais fáceis que a coleta de 24h.20 A validade desta medida para representar a ingestão de sódio é controversa, especialmente na DRC, em que a excreção destes solutos pode estar alterada.21 Até o presente momento, houve pouca pesquisa nesta área, entretanto estudos recentes forneceram resultados favoráveis deste método como um marcador da ingestão de sódio em pacientes com DRC.22-24
Não encontramos estudos realizados com pacientes brasileiros que tiveram como objetivo desenvolver ou validar os métodos de estimativa de excreção de sódio de 24h a partir de amostras de urina. Então, a princípio testamos duas fórmulas disponíveis na literatura estrangeira: uma fórmula simples desenvolvida a partir de dados da coorte inglesa do Renal Risk in Derby (RRID) para uma população de pacientes com DRC estágio 3,23 e a fórmula desenvolvida por Tanaka et al. em 200224 a partir de dados de indivíduos japoneses.
Porém, quando comparamos a excreção de 24h estimada pelas fórmulas com a excreção de sódio mensurada dos nossos participantes, a performance de ambas foi insatisfatória: P30 (proporção de estimativas com diferença inferior a 30% do mensurado) de 27,5% com a fórmula RRID e 40% com a de Tanaka et al.
Assim, o objetivo deste trabalho foi o de desenvolver uma nova fórmula para estimar a excreção de sódio de 24h a partir da concentração de sódio em amostra isolada da segunda urina do dia em um grupo de pacientes brasileiros com DRC na fase pré-dialítica.
Os participantes cujos dados foram utilizados para o desenvolvimento deste trabalho participaram de um estudo prospectivo, randomizado e controlado, que teve como principal objetivo avaliar o impacto de uma intervenção nutricional para a redução do consumo de sódio em pacientes com DRC pré-dialítica, intitulado SALTED.25
Os dados para este trabalho foram extraídos da avaliação basal do estudo. O projeto foi desenvolvido na Clínica de Nefrologia do Santa Casa de Misericordia de Curitiba da Universidade Católica do Paraná entre junho de 2010 e abril de 2013. Pacientes com DRC pré-dialítica em qualquer estágio e independente da etiologia foram incluídos.
Os critérios de exclusão eram pacientes em tratamento dialítico, gestantes, menores de 18 anos, além de pacientes com descompensação aguda (infecções, doença autoimune ativa, descompensação cardíaca ou hepática). Participantes assinaram Termo de Consentimento e a investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa local.
Na primeira visita, os pacientes de ambos os grupos receberam um frasco esterilizado e foram instruídos para fazer a coleta da urina de 24 horas (protocolo estabelecido) no dia anterior à consulta agendada do estudo. Os pacientes foram orientados a comparecer à consulta em jejum.
No dia da consulta, o paciente trazia a urina de 24h e foi coletada também, nesta consulta, amostra isolada da segunda urina do dia e amostra de sangue. Todos os participantes foram cuidadosamente orientados sobre como efetuar a coleta de urina de 24h corretamente e o procedimento foi conferido pelo avaliador no momento da entrega. O sódio urinário foi mensurado nas amostras de urina de 24 horas, por meio de método automatizado (Architect CI-8200 - Abbott Diagnostics).
A taxa de filtração glomerular foi estimada pela formula de MDRD.
A mesma metodologia utilizada para o desenvolvimento da fórmula do estudo RRID foi empregada neste trabalho.23 Foram identificados os potenciais determinantes do sódio urinário de 24h por meio de testes de correlação para as variáveis contínuas e teste t para as categóricas. Teste de Pearson ou Spearman foram empregados de acordo com a distribuição das variáveis.
As variáveis que apresentaram associação significante com o sódio urinário de 24h foram incluídas em uma análise de regressão, tendo como variável dependente o mesmo. Uma fórmula para estimar o sódio urinário de 24h foi extraída dos coeficientes provenientes da equação de regressão. A acurácia da fórmula foi testada por meio do cálculo do P30 (proporção de estimativas com diferença inferior a 30% do mensurado).
Para avaliar a habilidade da fórmula em discriminar excreção de sódio superior a 2,4, 3,6 e 4,8 g/dia (correspondente a 6, 9 e 12 g de NaCl), foram obtidos sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo (VPP) e valor preditivo negativo (VPN). Foi gerada uma curva ROC também para avaliação de sensibilidade e especificidade, bem como para obtenção de área sob a curva. O gráfico de Bland and Altman foi utilizado para avaliar os limites de concordância entre o sódio urinário mensurado e o estimado. O software de estatística IBM SPSS versão 21 foi utilizado para análise dos dados.
As características demográficas e bioquímicas dos participantes estão demonstradas na Tabela 1. A maior parte era do sexo masculino e tinha mais que 60 anos (66%). Mais da metade foi classificada com DRC estágio 3 (depuração de creatinina entre 30 e 60 ml/min) e 88% tinham excreção diária de sódio superior a 2,4 g/dia.
Tabela 1 Principais características da população estudada (N = 51)
Sexo masculino (%) | 55 |
Idade (anos) | 64,5 ± 1,0 |
IMC (kg/m2) | 29,0 ± 5,3 |
Taxa de filtração glomerular (ml/min) | 38,4 ± 15,4 |
DRC estágio 2 (%) | 10 |
DRC estágio 3 (%) | 59 |
DRC estágio 4 (%) | 29 |
DRC estágio 5 (%) | 2 |
Sódio urinário de 24h (g/dia) | 4,2 ± 1,6 |
< 2,4 g/dia (%) | 12 |
2,4 a 3,6 g/dia (%) | 31 |
> 3,6 g/dia (%) | 57 |
IMC: índice de massa corporal; DRC: doença renal crônica.
Correlações significativas foram encontradas entre o sódio urinário de 24h com o peso (r = 0,31; p < 0,05) e com o sódio da amostra de urina (r = 0,40; p < 0,01) e a excreção de sódio foi significativamente maior nos homens quando comparada à das mulheres (4,8 ± 1,7 versus 3,7 ± 1,2 g/dia; p < 0,05).
Estas três variáveis foram incluídas como variáveis em uma análise de regressão e todas foram consideradas determinantes independentes do sódio urinário de 24h. A partir dos coeficientes da equação de regressão, uma fórmula foi extraída para estimar a partir destas três variáveis a excreção urinária de 24h de sódio:
Mulheres: Sódio urinário de 24h estimado (g/dia) = 0,15 + (peso em kg x 0,03) + (sódio da amostra de urina em g/L x 0,63) |
Homens: Sódio urinário de 24h estimado (g/dia) = 0,96 + (peso em kgx0,03) + (sódio da amostra de urina em g/Lx 0,63) |
A diferença entre o sódio mensurado e o excretado foi de -0,01 g/dia (Figura 1). A correlação entre o sódio mensurado e estimado foi moderada (r = 0,57; p < 0,001), porém o resultado de teste P30 identificou que a fórmula tem uma acurácia baixa (61%). Assim, com o intuito de avaliar a habilidade da fórmula em identificar indivíduos com consumo de sódio acima do recomendado, foi calculada a sensibilidade, especificidade, VPP e NPV para os pontos de corte (2,4, 3,6 e 4 g/dia), como demonstrado na Tabela 2.
Tabela 2 Testes de avaliação da performance da fórmula em detectar consumo de sódio em excesso para os diferentes pontos de corte
Sódio (g/dia) | Sensibilidade | Especificidade | VPP | VPP |
---|---|---|---|---|
2,4 | 97 | 0 | 88 | 88 |
3,6 | 91 | 47 | 77 | 73 |
4,8 | 70 | 58 | 65 | 63 |
VPP: valor preditivo positivo; NPV: valor preditivo negativo.
Uma curva ROC foi gerada com o ponto de corte em que foi identificada a melhor performance (3,6 g/dia) e foi obtida uma área sob curva de 0,69 com sensibilidade 0,91 e especificidade 0,53 (Figura 2).
Apesar de importante, a avaliação do consumo de sódio na prática clínica é difícil principalmente devido à inconveniência das coletas da urina de 24 horas. A principal contribuição deste trabalho foi o desenvolvimento de uma fórmula simples, que demonstrou uma elevada sensibilidade em detectar indivíduos com consumo de sódio elevado por meio de amostra da segunda urina do dia.
Como já mencionado, tanto a fórmula de Tanaka et al.24 como a equação desenvolvida por nosso grupo para estimar o consumo de sódio de pacientes ingleses com DRC foram testadas e ambas não demonstraram uma performance adequada na nossa população.
A fórmula de Tanaka et al.24 foi desenvolvida em 2002 a partir de amostras de urina coletadas a qualquer momento provenientes de 591 japoneses participantes do estudo INTERSALT e as variáveis da equação incluem concentrações urinárias de sódio e creatinina, além da idade, peso e estatura.
Esta fórmula foi testada por Ogura et al.15 em 96 pacientes também japoneses, com DRC em vários estágios (média da taxa de filtração glomerular: 53 ± 27 mL/min) que forneceram amostra de urina coletada igualmente a qualquer momento.
Os autores encontraram uma correlação moderada entre sódio mensurado e o estimado de 0,52; p < 0.01 e uma melhor performance para detectar pacientes com consumo de sódio superior a 170 mmol/dia, correspondente a 4 g diárias (área sob a curva 0,83). Diferenças na etnicidade, função renal e método de coleta da amostra podem explicar a baixa performance da fórmula de Tanaka na nossa amostra.
Com relação à fórmula do estudo RRID, apesar das duas amostras contarem exclusivamente com indivíduos com DRC, além do tempo de coleta da amostra ter sido diferente (primeira versus segunda urina do dia) outros fatores que podem ter influenciado o resultado negativo em nossos participantes incluem: na amostra brasileira havia participantes em outros estágios da DRC e, mais importante, o consumo médio de sódio era bem superior ao dos ingleses (4,2 ± 1,6 versus 2,8 ± 1,4 g/dia).
A fórmula para o estudo RRID foi desenvolvida com o objetivo de estimar o consumo de sódio da própria população do estudo de mais de 1700 participantes que não tinham análise de urina de 24h. Similar ao presente estudo, a acurácia da fórmula também foi baixa (P30 = 60%), mas a sensibilidade em detectar indivíduos com consumo de sódio acima da recomendação de 2,4 g/dia foi também elevada (85%).
Assim, para as análises subsequentes, o consumo de sódio foi analisado como variável categórica: participantes com consumo adequado (até 2,4 g/dia) ou com consumo excessivo (> 2,4 g/dia).23 Foram identificados os determinantes do consumo em excesso de sódio,17 bem como a relação com fatores de risco de progressão da doença renal e de doenças cardiovasculares26 e os efeitos da diminuição do consumo para níveis adequados após um ano de acompanhamento.27
Os resultados observados (relação com pressão arterial e proteinúria) foram semelhantes aos de estudos melhor controlados,7,12 que utilizaram sódio de urina de 24h como metodologia, o que aumentou a confiabilidade deste método de avaliação.
No presente trabalho, apenas 12% dos participantes tinham um consumo dentro das recomendações (2,4 g/dia), enquanto que no estudo RRID 42% se enquadravam neste perfil. Este fato pode ter impossibilitado a utilização do mesmo ponto de corte, pois a especificidade encontrada foi de 0%, ou seja, a fórmula não foi capaz de detectar pacientes com consumo inferior a 2,4 g/dia.
Portanto, já que a maior parte dos participantes tinha um consumo bem acima do recomendado, a utilização de um ponto de corte mais alto de consumo pode ser mais útil do ponto de vista clínico. De fato, o consumo de sódio dos participantes do estudo foi semelhante ao da população brasileira.
De acordo com os resultados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2008-2009, a disponibilidade domiciliar de sódio ajustada para consumo de 2.000 kcal era de 4,7 g/pessoa/dia, o equivalente a 11,7 g de sal diárias.28 Ao contrário do que acontece nos países mais ricos, a maior parte do sódio disponível para consumo em nosso país provém do sal de cozinha e de condimentos à base de sal (74,4%).28
As diferenças em relação ao momento da coleta da amostra de urina foram testadas em um estudo transversal com pacientes com DRC pré-diálise, no qual três amostras de urina foram coletadas em momentos diferentes (manhã, tarde e noite) e a melhor correlação com o sódio da urina de 24h foi encontrada com a média de sódio das amostras dos 3 momentos (r = 0,48; p < 0,001) comparada às amostras analisadas isoladamente.22
As limitações deste trabalho incluem um número de participantes relativamente pequeno, a utilização de uma única amostra de urina coletada no dia posterior à coleta de 24h e a fórmula não ter sido validada em outras populações.
Além disso, não pudemos avaliar a adequação da coleta de urina de 24h por meio da razão creatininúria/peso por termos tido problemas técnicos com a mensuração deste parâmetro. Porém, a conferência do avaliador, o volume urinário e a excreção de sódio condizente com a população brasileira aumentam a nossa confiança que a coleta foi realizada adequadamente pelos participantes.
Em conclusão, uma fórmula simples foi desenvolvida para identificar indivíduos com consumo de sódio acima de 3,6 g/dia (9 g de sal de cozinha). Mais pesquisas são necessárias para avaliar a performance deste método em outras populações.