versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.85 no.1 São Paulo jan./fev. 2019
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2017.10.013
A perda auditiva tem um alto impacto socioeconômico 1-3 e a perda auditiva congênita afeta aproximadamente 1/1.000 crianças nascidas nos Estados Unidos;4 57% desses casos têm origem genética 5,6 e, desses, 70% são de perda auditiva não sindrômica. 1,7 As mutações no gene GJB2 que codificam a proteína β-2 do intervalo da junção, a conexina 26, são a causa mais comum de perda auditiva não sindrômica genética em diferentes partes do mundo.8 A mutação mais comum no gene GJB2 é a 35delG, a qual, no estado de homozigose, geralmente resulta em perda auditiva grave a profunda.9
No entanto, a mutação 35delG não é igualmente prevalente em todas as etnias. Além disso, quando essa deleção ocorre no estado de heterozigose, com expressão monoalélica, a origem da deficiência auditiva pode não ser atribuída diretamente a essa mutação. Assim, a possibilidade de outras mutações estarem diretamente associadas a perda auditiva deve ser investigada, especialmente em países multiétnicos como o Brasil.10 O sequenciamento baseado no DNA do gene GJB2 pode ajudar a identificar novas mutações associadas à surdez hereditária.
Este estudo teve como objetivo identificar diferentes mutações no gene GJB2 em pacientes com perda auditiva neurossensorial grave ou profunda não sindrômica de origem genética putativa, negativos ou heterozigotos para a mutação 35delG. Os pacientes participantes receberam tratamento na Clínica de Saúde Auditiva do Serviço de Otorrinolaringologia em um hospital universitário terciário no Brasil.
Este estudo foi feito em um hospital universitário terciário entre setembro de 2011 e agosto de 2014 e foi aprovado pelo comitê de ética de pesquisa hospitalar (043/11). As populações-alvo eram pacientes da Clínica de Implantes Cocleares, Serviço de Otorrinolaringologia, com surdez neurossensorial mista grave a profunda não sindrômica, de origem genética putativa, negativos ou heterozigotos para a mutação 35delG do gene GJB2. Os pacientes com surdez não sindrômica de origem genética putativa foram aqueles cujos exames clínico, audiológico e de imagem (tomografia computadorizada e ressonância magnética) não apresentaram evidência de outras causas conhecidas de surdez. Pacientes ou responsáveis legais que não concordaram em assinar o termo de consentimento livre e informado e /ou responder as perguntas do estudo foram excluídos. Todos os pacientes foram incluídos no estudo pelo autor principal.
As etnias dos participantes foram identificadas por eles ou por seus responsáveis legais como latino-europeia, não latino-europeia, judaica, nativa, turca, negra, asiática e outras, de acordo com a classificação de etnias do Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas (Eclamc).11 Foi perguntado a todos os pacientes ou seus guardiães legais se havia outros casos de surdez na família e a presença de consanguinidade.
Dos 530 pacientes atendidos nesse período, 100 preencheram os critérios de participação no estudo. Todos os participantes selecionados, ou seus responsáveis legais, assinaram livremente os formulários de consentimento informado e foram submetidos à coleta de sangue para análise de DNA. O DNA foi extraído do sangue periférico com os kits PureLink™ Genomic DNA (Thermo Fisher Scientific, Waltham, MA, EUA). Após amplificação e purificação, os genomas foram sequenciados com o ABI Prism Big-Dye Terminator Cycle Sequencing Kit™ (Applied Biosystems, Foster City, CA, EUA) e os fragmentos foram montados com o software Sequencing Analysis versão 3.7 (Applied Biosystems) e alinhados com o software CLC Sequence Viewer 6 (CLCBio, Aarhus, Dinamarca) e Mutation Surveyor® (Softgenetics LLC., State College, PA, EUA).
A nomenclatura para a descrição das variantes de sequência baseou-se no código de três letras para as sequências de aminoácidos precedidas de "p", de acordo com as recomendações da Human Genome Variation Society (HGVS). Da mesma forma, as variantes de sequência heterozigótica composta também foram descritas de acordo com as recomendações da nomenclatura HGVS. No caso da mutação 35delG, optamos por usar a nomenclatura baseada em sequências de nucleotídeos, porque essa é amplamente aceita. No entanto, na descrição das mutações 35delG heterozigóticas compostas, usamos a nomenclatura baseada em sequências de aminoácidos, isto é, p.(Gly12Valfs*2), para seguir a nomenclatura padrão da HGVS.
A patogenicidade foi determinada com as ferramentas de análise de SIFT (Sorting Intolerant from Tolerant) e Polyphen-2 (Polymorphism Phenotyping v2) e informações disponíveis nos seguintes bancos de dados: 1000 genomes Project,12 Connexin-Deafness Homepage13 e Deafness Variation Database da Universidade de Iowa, USA.14
A comparação das variáveis entre os subgrupos com e sem variantes de GJB2 foi avaliada pelo teste de qui-quadrado.
A idade média dos participantes do estudo foi de 14,8 anos (variação de 1-59 anos) e 51% dos participantes eram do sexo masculino. Entre os 100 participantes, 84 não apresentavam a mutação 35delG e o restante era heterozigoto para 35delG.
A tabela 1 mostra a caracterização étnica dos participantes, 67% dos quais relataram ascendência europeia, enquanto 57% indicaram descendência negra. Nenhum participante relatou etnia judaica, turca ou asiática. Não houve associação estatisticamente significante (p = 0,35) entre as diferentes etnias avaliadas e a presença de variantes do gene GJB2 (tabela 2).
Tabela 1 Etnia dos pacientes
Etnia | n = 100 |
---|---|
Latina-europeia | 35 |
Negra/Latina-europeia | 29 |
Negra | 23 |
Nativa/Latina-europeia | 5 |
Nativa | 3 |
Nativa/Negra | 3 |
Não latina-europeia | 1 |
Negra/Não latina-europeia | 1 |
Tabela 2 Etnia e presença de variantes do gene GJB2
Etnia | Total (n = 100) | Com variantes de GJB2 (n = 14) | Sem variantes de GJB2 (n = 86) | p | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | ||||
Latina-europeia | 35 | 35,0 | 3 | 21,4 | 32 | 37,2 | |||
Negra | 23 | 23,0 | 3 | 21,4 | 23,3 | ||||
Negra/Latina-europeia | 29 | 29,0 | 7 | 50,0 | 22 | 25,6 | 0,35 | ||
Outras | 13 | 13,0 | 1 | 7,1 | 12 | 14,0 |
Dos 37 participantes que relataram história familiar de perda auditiva, três tinham uma variante do gene GJB2; cinco relataram consanguinidade, dos quais apenas um tinha uma variante do gene GJB2. Como mostrado na tabela 3 , 14 participantes apresentaram variantes do gene GJB2 diferentes de 35delG - nove variantes - inclusive três pacientes que eram heterozigotos para a mutação 35delG. Dessas outras variantes, três eram patogênicas, duas eram não patogênicas, três ainda são indeterminadas e uma era uma variante não descrita anteriormente. As características de cada variante estão descritas na tabela 4.
Tabela 3 Perfil dos participantes com alterações de sequenciamento
Caso | Variante encontrada | Mutação 35delG heterozigótica | Etnia | Idade (anos) | Tipo de perda auditiva |
---|---|---|---|---|---|
14 | p.(Trp172*) | Sim | Negra/Latina-europeia | 3 | Congênita |
16 | p.[(Val27Ile)(;) [(Arg127Leu)] | Não | Negra/Latina-europeia | 1 | Congênita |
30 | p.(Lys168Arg) | Não | Latina-europeia | 7 | Congênita |
35 | p.(Val27Ile) | Não | Negra | 5 | Congênita |
45 | p.(Met34Thr) | Não | Negra | 47 | Súbita |
48 | p.(Ser199Glnfs*9) | Não | Negra/Latina-europeia | 4 | Congênita |
49 | p.[(Ile196Thr)(;) [(Lys168Arg)] | Não | Negra/Latina-europeia | 4 | Congênita |
53 | p.(Ser199Glnfs*9) | Sim | Latina-europeia | 5 | Congênita |
62 | p.(Val167Met) | Não | Negra | 4 | Congênita |
64 | p.(Lys168Arg) | Não | Nativa/Negra | 5 | Congênita |
65 | p.(Met34Thr) | Sim | Negra/Latina-europeia | 47 | Progressiva |
79 | p.(Val27Ile) | Sim | Latina-europeia | 16 | Progressiva |
82 | p.(Arg75Trp) | Não | Negra/Latina-europeia | 3 | Congênita |
100 | p.(Val27Ile) | Não | Negra/Latina-europeia | 2 | Congênita |
Tabela 4 Variantes encontradas no sequenciamento do gene GJB2
Variante encontrada e dados | Descrição | Efeito | SIFT | Polyphen-2 | Fonte* | Tipo de variante |
---|---|---|---|---|---|---|
Patogênica | ||||||
p.(Trp172*) | Substituição de uma guanina por uma adenosina na posição 516 | Substituição do triptofano por um códon de parada na posição 172 | Não avaliável | Não avaliável | Da Vinci | Nonsense |
p.(Arg75Trp) rs28931 593 | Substituição de uma citosina por uma timina na posição 223 | Substituição de arginina por triptofano na posição 75 | 0,0 | 1,0 | Da Vinci 1000 genomes Deafness Variation | Missense |
p. (Val167Met) rs11103 3360 | Substituição de uma guanina por uma adenosina na posição de nucleotídeo 499 | Substituição de valina por metionina na posição 167 | 0,04 | 0,168 | Deafness Variation 1000 genomes (possivelmente patogênica) | Missense |
Não patogênica | ||||||
p.(Val27Ile) rs22740 84 | Substituição de uma guanina por uma adenosina na posição 79 | Substituição de valina pela isoleucina na posição 27 | 0,21 | 1,0 | Da Vinci 1000 genomes Deafness Variation | Missense |
p.(Ile196Thr) | Substituição de uma citosina por uma timina na posição 587 | Substituição de isoleucina por treonina na posição 196 | 0,01 | 0,922 | Benigna em Deafness Variation | Missense |
Variante encontrada e dados | Descrição | Efeito | SIFT | Polyphen-2 | Fonte* | Tipo de variante |
Indeterminada | ||||||
p.(Met34Thr) rs3588762 2 | Substituição de uma timina por uma citosina na posição 101 | Substituição de metionina por treonina na posição 34 | 0,01 | 0,38 | DaVinci 1000 genomes Deafness Variation | Missense |
p.(Lys168Arg) rs2001043 62 | Substituição de uma adenosina por uma guanina na posição 503 | Substituição da lisina pela arginina na posição168 | 0,29 | 0,074 | Benigna em 1000 genomes patogenicidade desconhecida em Deafness Variation | Missense |
p.(Arg127Leu) rs1110331 96 | Substituição de uma guanina por uma timina na posição de nucleotídeo 380 | Substituição de arginina por leucina na posição 127 | 0,04 | 0,277 | Patogênica em Deafness Variation benigna em 1000 genomes |
Missense |
Não descrita | ||||||
p.(Ser199Glnfs*9) | Duplicação do segmento CAGTG na posição 596 | Substituição de serina por glutamina na posição 199 e inserção de um quadro de leitura e códon de parada |
Não avaliável | Não avaliável | Não descrita | Frameshift |
Dos 100 pacientes com perda auditiva neurossensorial grave a profunda, 14 apresentaram uma ou mais dentre nove variantes no gene GJB2 além de 35delG, inclusive três que eram heterozigotos para 35delG. Três dessas mutações são patogênicas, uma é uma variante não relatada anteriormente (p.[Ser199Glnfs * 9]) e uma é um caso de heterozigosidade composta não relatada anteriormente, com 35delG, (p.[(Gly12Valfs*2)](;)[(Ser199Glnfs*9)]).
Vários estudos em diferentes populações relataram a prevalência das principais variantes do gene GJB2 em pacientes com surdez. 7,15 Nosso estudo é o primeiro a identificar as variantes de GJB2 em uma amostra etnicamente caracterizada, com deficiência auditiva profunda, proveniente de uma população multiétnica brasileira. Além disso, detectamos uma variante anteriormente não classificada e um caso de heterozigosidade composta ainda não relatada.
Apesar da bem conhecida associação entre etnia e mutações do gene GJB2,8 não encontramos uma associação estatisticamente significante entre as alterações genéticas e a etnia no grupo estudado. Aparentemente, quando dividimos a população em grupos étnicos, o tamanho da amostra foi insuficiente para detectar resultados significantes.
Depois da 35delG, o polimorfismo p.(Val27Ile) foi a variante do GJB2 mais prevalente na população estudada, com uma frequência de 4,0%. Essa variante é considerada não patogênica e tem sido relatada em vários estudos, tanto em indivíduos com audição normal quanto em deficientes auditivos.16
A variante p.(Met34Thr) da conexina 26 foi descrita pela primeira vez como dominante patogênica por Kelsell et al. em 1997.17 Mais tarde, esses achados foram questionados e sugeriu-se que ela poderia ser não patogênica. 16,18-21 Em nossa população de estudo, encontramos um caso, com perda auditiva profunda, de p.(Met34Thr) em heterozigosidade composta com 35delG, p.[(Gly12Valfs*2)](;)[(Met34Thr)]. Essa apresentação foi documentada anteriormente: um grande estudo multicêntrico feito por Snoeckx et al. (2005)22 encontrou 38 indivíduos com perda auditiva neurossensorial que eram heterozigotos compostos para p.[(Gly12Valfs*2)](;) [(Met34Thr)] e 16 homozigotos para p.(Met34Thr) que também tinham deficiência auditiva. Por outro lado, Feldmann et al. (2004)23 encontraram quatro indivíduos com audição normal que eram heterozigotos compostos para p.[(Gly12Valfs*2)](;)[(Met34Thr)] e caracterizaram essa variante como não patogênica. A presença deste tipo de associação em indivíduos com audição normal sugere que essa alteração não tem potencial patogênico.
Um participante em nosso estudo apresentou a variante p.(Trp172*) em heterozigosidade composta com 35delG (p.[(Gly12Valfs*2)];[(Trp172*)]). A variante p.(Trp172*), em homozigosidade, foi descrita pela primeira vez em um indivíduo brasileiro com perda auditiva neurossensorial bilateral grave a profunda.24 Mais tarde, Christiani et al. (2007)25 descreveram um receptor de implante coclear com perda auditiva neurossensorial grave a profunda bilateral que também era um heterozigoto composto para p.[(Gly12Valfs*2)];[(Trp172*)], como o participante em nosso estudo. O genótipo dos pais do paciente em nosso estudo foi feito e ambos eram indivíduos com audição normal e verificamos que um dos pais era heterozigoto para 35delG e o outro para p.(Trp172*), indicou que essas variantes podem não ser patogênicas em heterozigosidade.
Até hoje, a variante p.(Val167Met) foi detectada somente em indivíduos de ascendência negra e apenas a forma homozigótica foi descrita como patogênica. 26-28 Em nosso estudo, detectamos essa variante em um participante negro do sexo masculino, com surdez congênita, mas em estado heterozigoto. Assim, ou a perda auditiva desse paciente foi causada por mutações (não identificadas) em um gene diferente ou a mutação p.(Val167Met) também é uma mutação autossômica dominante.
Detectamos a heterozigosidade composta p.[(Val27Ile)(;) [(Arg127Leu)] em um de nossos participantes (nº 16). A variante p.(Arg127Leu) foi inicialmente descrita por Tang et al. (2006)29 em estado heterozigótico em dois indivíduos com audição normal, um asiático e um hispânico. No entanto, o baixo número de casos dessa variante relatados até agora impede uma definição em relação a sua patogenicidade. Assim, a origem da perda de audição no caso 16 de nosso estudo não pode ser atribuída a essas variantes, seja em combinação com p. (Val27Ile) ou isoladamente, e pode ter origem em alterações em outro gene.
A variante p.(Arg75Trp), encontrada em um de nossos participantes, foi detectada pela primeira vez em um caso de perda auditiva dominante autossômica associada a queratodermia palmoplantar, que foi caracterizada como perda auditiva não sindrômica (DFNA3).30 Entretanto, a variante p.(Arg75Trp) foi posteriormente detectada como uma mutação de novo (sem história familiar de perda auditiva) em uma criança com perda auditiva profunda bilateral e sem distúrbios da pele,31 exatamente como no caso descrito em nosso estudo.
No nosso estudo, três alelos foram detectados com a variante p.(Lys168Arg): em um caso, estava associada à variante p. (Ile196Thr), enquanto que nos outros dois casos a variante heterozigótica não estava associada a outras variantes. Putcha et al. (2007) detectaram a variante p.(Lys168Arg) a uma frequência de 0,3% (7/1796) em pacientes com deficiência auditiva.6 Entretanto, Samanich et al. (2007) detectaram a variante p.(Lys168Arg) em heterozigose tanto em pacientes com deficiência auditiva neurossensorial quanto em controles com audição normal e descreveram-na como não patogênica.28 A variante p.(Ile196Thr), encontrada em um paciente em heterozigosidade composta com p.(Lys168Arg), é uma variante do tipo missense que causa alterações nas sequências de aminoácidos do último domínio transmembrana da conexina 26, mas é descrita como benigna na base de dados Deafness Variation.12
A variante p.(Ser199Glnfs*9) é uma variante do tipo frameshift não reportada anteriormente, detectada em dois participantes do estudo, em um deles como um caso de heterozigosidade composta não relatada anteriormente com 35delG (p.[(Gly12Valfs*2)(;)[(Ser199Glnfs*9)]). Como a p.(Ile196Thr), essa variante também altera as sequências de aminoácidos do último domínio transmembrana da conexina 26. Nenhum dos dois participantes com essa variante tinha história familiar de surdez ou consanguinidade. Outra variante foi detectada anteriormente na posição 199, a variante missense p.(Ser199Phe), que é descrita como patogênica em estado de homozigose na base de dados Deafness Variation.12
O estudo do gene GJB2 nessa população multiétnica demonstrou variantes anteriormente não descritas ou raramente descritas. Esse fato sugere que uma avaliação completa desse gene através de sequenciamento genético, em vez de apenas identificar mutação 35delG, deveria ser a regra. Além disso, novos estudos, que possam investigar outros genes, como o GJB6, devem ser feitos para identificar a etiologia da perda auditiva nesses pacientes.