versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.27 no.3 São Paulo maio/jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152014162
Os indivíduos com deformidades dentofaciais (DDF) possuem características miofuncionais que variam de acordo com o tipo de desproporção que apresentam( 1 ), ocorrendo adaptações do sistema estomatognático quanto a sua morfologia e funcionalidade. Esses indivíduos desenvolvem, ao longo da vida, adaptações e compensações para o desempenho das funções orofaciais (FOF)( 2 - 5 ). Em uma revisão bibliográfica, observou-se que sujeitos com prognatismo e retrognatismo apresentam adaptações em todas as funções realizadas pelo sistema motor oral, no período pré-cirurgia ortognática( 6 ).
No Padrão Facial II, quanto às FOF, podemos encontrar respiração de modo oral pelo perfil facial convexo( 1 , 5 ). Um estudo publicou que 90,9% dos indivíduos com má oclusão esquelética classe II apresentaram mastigação unilateral crônica( 7 ), mastigação realizada com movimentos de des lize anterior da mandíbula, na intenção de aumentar o espaço intraoral, e em ciclos mastigatórios rápidos e reduzidos( 2 ); deglutição apresenta-se bastante adaptada, com deslize mandibular anterior, movimento póstero-anterior de língua, interposição de língua e participação da musculatura perioral( 2 , 6 ), e bastante dificultada pela falta de vedamento labial( 8 ); fala com adaptações aos fonemas sibilantes ou frica tivos, os quais são acompanhados de deslize mandibular excessivo e articulados com a língua projetada entre os dentes( 9 ). Também pode apresentar fala "pastosa" como consequência da diminuição da atividade muscular geral e pelo uso inadequado das "caixas de ressonância", tornando a ressonância hiponasal( 10 ).
As FOF em indivíduos com Padrão Facial III podem apresentar alterações respiratórias, frequentemente oral ou oronasal, justificadas pelo perfil côncavo e pela face longa, comum aos prognatas( 6 ). A função mais adaptada é a mastigação, caracterizando-se em movimentos verticalizados com utilização do dorso da língua para amassamento do alimento e pouca utilização dos músculos mastigatórios( 1 , 5 , 6 ). Pesquisadores publicaram que 63,6% dos sujeitos com classe III esquelética apresentaram mastigação unilateral crônica( 7 ); deglutição geralmente realizada com várias adaptações, como interposição lingual, participação da musculatura perioral, anteriorização da cabeça e incoordenação entre deglutição e respiração( 2 ), dificultada pela falta de vedamento labial e por deslize anterior da mandíbula( 2 ); a fala pode manifestar alterações na articulação dos sons, como distorção durante a produção do fonema /s/, sendo o sigmatismo de sibilantes a alteração de fala mais frequentemente encontrada( 11 ).
Além das repercussões funcionais destacam-se também as alterações da harmonia e da esté tica da face, podendo causar implicações psico lógicas, sociais e profissionais para os pacientes e, consequentemente, interferir na qualidade de vida (QV) do indivíduo( 6 ). Alguns pesquisadores apontam a DDF como a mais grave, pelas consequências físicas, econômicas, sociais e psicológicas, podendo prejudicar a QV dessas pessoas( 12 ).
A partir de uma revisão de literatura sobre o impacto da má oclusão na QV, pesquisadores observaram que a má oclusão e seu tratamento podem afetar a saúde física em termos de dor (disfunção temporomandibular - DTM, trauma dental e da gengiva), fala e mastigação( 13 ). Em termos de saúde psicológica, é relatado prejuízo no autoconceito e, socialmente, pode afetar a atratividade percebida pelos outros e aceitação social e intelectual( 14 , 15 ). Alguns autores concluíram que há controvérsias sobre o impacto da má oclusão e seu tratamento sobre a QV, fazendo-se necessária uma avaliação mais abrangente e rigorosa, empregando instrumentos padronizados, validados e confiáveis( 13 ).
Pesquisadores relataram que os instrumentos para verificar a QV sobre a saúde geral e oral são úteis na determinação de tais mudanças durante a trajetória do tratamento( 16 ). Em um estudo foi verificada tendência ao declínio dos escores considerando os resultados do pré-operatório em relação ao pós-cirúrgico, em que os indivíduos haviam relatado alto impacto sobre a QV medido pelo Oral Health Impact Profile (OHIP-14) antes da cirurgia ortognática( 17 ).
Portanto, a literatura tem contemplado as características miofuncionais orofaciais de indivíduos com DDF, bem como as percepções dos próprios pacientes em relação ao estado da saúde oral, na busca de melhor compreensão quanto às suas necessidades. Contudo, não foram encontrados estudos que relacionassem o desempenho das FOF à condição de QV em saúde oral nessa população, uma vez que a maioria dos trabalhos publicados se refere aos resultados obtidos após a cirurgia ortognática. Portanto, o objetivo deste estudo foi verificar a influência do Padrão Facial nas FOF e na QV, bem como a relação entre as condições miofuncionais orofaciais e a QV em saúde oral em indivíduos com DDF.
Foram analisadas as documentações de indivíduos que fizeram parte da amostra do projeto de pesquisa intitulado: "Efeito da cirurgia ortognática sobre o sistema miofuncional orofacial e cervical", aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Instituição de Ensino onde o projeto foi desenvolvido, sob o processo n° 049/2009. Constou a concordância expressa dos indivíduos recrutados, os quais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Os critérios de inclusão foram: idade entre 18 e 40 anos, apresentar deformidade dentofacial diagnosticada pelo cirurgião como bucomaxilofacial e estar em fase de tratamento ortodôntico preparatório para cirurgia ortognática. Os de exclusão foram ter sido submetido a outras cirurgias ortognáticas, apresentar sinais fenotípicos de síndromes, histórico de problemas neurológicos e psiquiátricos e nível de compreensão insuficiente para responder aos questionários. Esses dados foram obtidos por meio de entrevista dirigida sobre esses aspectos.
Participaram do estudo 36 indivíduos, idade entre 18 e 40 anos (média=27,22), distribuídos em 3 grupos seguindo a classificação do Padrão Facial( 18 ): Padrão I (n=12), Padrão II (n=12) e Padrão III (n=12), sendo 7 mulheres e 5 homens em cada grupo.
Os dados da presente pesquisa foram coletados dos prontuários e da documentação fotográfica e de filmagem dos participantes do estudo. Foram considerados os aspectos história clínica, exame miofuncional orofacial e registros por fotografia e filmagem das provas propostas no protocolo MBGR( 19 ), cuja coleta de dados foi realizada por uma pesquisadora, fonoaudióloga, devidamente treinada e calibrada para a execução dos procedimentos.
Para a análise das FOF, foi necessária a opinião de outras três fonoaudiólogas, especialistas em Motricidade Orofacial, com experiência mínima de três anos de atuação na área. Tais profissionais foram solicitadas a analisar as fotos e filmagens dos indivíduos armazenadas em CD-ROM, acompanhadas de uma lista de orientações e de um arquivo Microsoft Excel(r), no qual todos os aspectos do Protocolo MBGR a serem considerados eram contemplados, incluindo as possibilidades de respostas e os respectivos escores atribuídos. As análises foram realizadas separadamente por cada especialista, tendo sido considerado o resultado concordante entre, no mínimo, duas delas. Quando não houve concordância entre as três avaliadoras, as profissionais analisaram conjuntamente e chegaram a um resultado consensual.
As FOF foram avaliadas a partir de provas estabelecidas pelo protocolo MBGR( 19 ), com escores especificados no próprio protocolo, considerando o valor zero adequado e os valores superiores, alterados. Quanto maior a pontuação, pior o desempenho. Na respiração (escores 0-9), verificaram-se o modo e o tipo; na mastigação (escores 0-10), verificaram-se padrão mastigatório (bilateral simultâneo ou alternado, unilateral preferencial ou unilateral crônico), presença ou ausência de contrações musculares não esperadas; na deglutição (escores 0-17), verificou-se a deglutição de sólidos e de líquido dirigida, considerando: selamento labial, postura da língua, postura do lábio inferior, contenção do alimento, contração dos músculos orbicular e mentual, movimento de cabeça e coordenação da deglutição; na fala (escores 0-6), por meio da amostra de fala espontânea, contagem de números de 0 a 20 e nomeação de figuras, foram analisados: a abertura de boca, o movimento labial e mandibular e a precisão articulatória.
Para verificar a QV, foi aplicada a versão traduzida e adaptada para o Português Brasileiro do instrumento de pesquisa OHIP-14( 20 ), composto por 14 questões que mensuram a percepção do indivíduo a respeito do impacto de suas condições orais sobre o seu bem-estar nos últimos meses. O escore total obtido correspondeu à soma da pontuação de todas as questões, sendo a resposta máxima individual representada por 56 pontos. Quanto maiores os escores obtidos, piores as FOF e a QV.
Os resultados obtidos foram transcritos e organizados em planilhas do Microsoft Excel(r). As comparações entre os grupos em relação às FOF e aos Padrões Faciais foram verificadas por meio do teste de Kruskal-Wallis. Para a correlação entre os escores do Protocolo MBGR e do OHIP-14, foi utilizado o teste de correlação de Spearman, considerando nível de significância de 5%.
Para todas as FOF estudadas e aspectos da QV considerados, houve diferença significativa (p<0,05) ao comparar os Padrões Faciais I e II, e os Padrões I e III, não tendo sido encontrada diferença significativa entre os Padrões II e III (Tabela 1). Em relação às FOF, foi possível observar respiração oral ou oronasal tanto no Padrão II como no III, enquanto a maioria dos indivíduos com Padrão I apresentou respiração nasal; nos indivíduos com Padrões II e III a mastigação foi unilateral crônica ou unilateral preferencial; a deglutição mostrou-se adaptada com pressionamento da língua nos dentes ou anteriorização de língua, movimento de cabeça associado, contração excessiva do músculo mentual, orbicular dos lábios e da musculatura perioral. Quanto à fala, foram encontrados distúrbios fonéticos, presença de desvio mandibular e acúmulo de saliva nas comissuras labiais. Para o grupo com Padrão I, as funções de mastigação, deglutição e fala mostraram-se adequadas.
Tabela 1. Distribuição dos resultados referentes a média, desvio padrão e valores de p obtidos para os indivíduos com os diferentes Padrões Faciais estudados, em relação aos escores das funções orofaciais do protocolo MBGR e aos escores de qualidade de vida do protocolo Oral Health Impact Profile
Variáveis | Padrão Facial I | Padrão Facial II | Padrão Facial III | Valor de p* |
---|---|---|---|---|
Respiração | 0,00±0,00b | 1,66±0,77a | 0,87±0,57a | 0,00 |
Mastigação | 0,75±0,96b | 1,75±1,13a | 1,91±0,99a | 0,024 |
Deglutição | 2,25±2,17b | 11,58±3,53a | 8,83±2,75a | 0,00 |
Fala | 0,33±0,88b | 5,83±3,56a | 1,50±1,62a | 0,00 |
OHIP-14 | 1,08±1,92b | 16,50±10,68a | 17,67±10,71a | 0,00 |
Letras distintas traduzem diferença significativa entre os Padrões Faciais
*p=0,05 (estatisticamente significativo) Legenda: OHIP-14 = Oral Health Impact Profile
O que mais caracterizou o grupo DDF foram os sentimentos de vergonha, desconforto e alto nível de estresse em relação à sua condição. Portanto, esses aspectos podem ser tomados como indicadores de problemas de QV. Em termos de escore, tais problemas foram seguidos por aqueles relacionados a dificuldades com a alimentação, com a fala e para relaxar, além de irritabilidade e dor na boca.
Verificou-se correlação linear significativa (r=0,666; p<0,05) entre os escores obtidos por meio da avaliação das FOF do protocolo MBGR e da QV em saúde oral com o uso do protocolo OHIP-14, demonstrando que quanto piores as FOF, pior também a QV (Figura 1).
Este trabalho revelou que indivíduos Padrões II e III apresentaram escores significantemente maiores quanto à presença de alterações na respiração, mastigação, deglutição e fala, e impacto na QV em relação ao Padrão I, havendo diferença significativa entre os Padrões I e II, como também entre os Padrões I e III. Na literatura são escassos os estudos que comparam os padrões faciais em relação às FOF e, principalmente, à QV, sendo que, geralmente, os achados são descritivos.
A busca pelos fatores causais das alterações morfológicas da face tem sido vastamente descrita na literatura, sendo a respiração oral um importante aspecto a ser considerado( 21 - 23 ). Neste estudo, a respiração apresentou-se oral ou oronasal nos Padrões II e III, corroborando outros estudos( 1 , 6 ).
Foi verificada mastigação unilateral crônica, seguida da unilateral preferencial nos Padrões II e III, em que houve contração excessiva do mentual e da musculatura perioral, enquanto no Padrão I ocorreu mastigação bilateral alternada ou unilateral preferencial. Os prejuízos mastigatórios podem estar relacionados à diminuição da força da musculatura elevadora da mandíbula no período pré-cirúrgico, sendo que o reduzido número de contatos oclusais nesses pacientes pode prejudicar a força de mordida e a performance mastigatória( 24 ). Um estudo descreveu que os indivíduos retrognatas apresentam deslize mandibular anterior para aumentar o espaço intraoral, além de os ciclos mastigatórios serem mais rápidos e reduzidos( 6 ), e isso se dá por adaptações às possibilidades esqueléticas( 25 ).
A deglutição apresentou-se adaptada, com anteriorização e pressionamento da língua nos dentes, movimento de cabeça associado, principalmente no Padrão II, enquanto no Padrão III houve maior ocorrência de contração do orbicular, mento e musculatura perioral, seguida da anteriorização de língua, corroborando outros estudos( 2 , 5 , 6 ). A videofluoroscopia em indivíduo classe III esquelética permitiu evidenciar o posicionamento habitual da língua, as características fisiológicas das funções de mastigação e deglutição, observando-se alterações nos movimentos da língua e do palato mole e na depuração faríngea durante a deglutição( 26 ). Apesar de a presente pesquisa não ter utilizado exames instrumentais, a avaliação clínica possibilitou evidenciar adaptações na função de língua, dos lábios e do músculo mentual, permitindo caracterizar os indivíduos com DDF deste estudo.
A análise estatística evidenciou que indivíduos Padrão II apresentaram maior ocorrência de alterações na fala, tanto em relação ao Padrão I como ao Padrão III, porém não foram significativas. Corroborando a pesquisa atual, um estudo evidenciou pequena ocorrência de desvio mandibular em indivíduos classe III esquelética. Alterações de fala, como anteriorização da mandíbula e deslize mandibular anterior ou lateral, além da projeção de língua em classe II esquelética, as quais diferenciaram dos indivíduos classe I( 27 ).
Na avaliação da QV, verificou-se que os resultados obtidos pelos Padrões Faciais I, II e III apresentaram diferença estatisticamente significativa em relação ao OHIP-14, sendo que os indivíduos com DDF tiveram maior impacto na QV do que aqueles sem DDF, corroborando outros achados( 12 , 28 - 30 ). É razoável supor que os sentimentos de vergonha permeiam os turnos dialógicos e, dessa forma, os indivíduos com DDF podem experimentar alto nível de estresse e desconforto psicológico em relações interpessoais e de interlocução. Além disso, a alimentação também demonstrou estar prejudicada nesses indivíduos, podendo dificultar a participação dos mesmos em atividades sociais que envolvem essa função. Assim, a alimentação e a fala estendem-se também ao domínio social.
Não foram encontrados na literatura estudos que correlacionassem a gravidade dos distúrbios miofuncionais orofaciais com protocolos de QV em saúde oral, impossibilitando comparações com este estudo. Na atuação clínica é possível observar tal relação, em que verificamos alterações na estética facial, nas FOF e os relatos dos pacientes referindo suas dificuldades e o impacto ocasionado em sua QV. Muitas vezes, o paciente refere que não participa de eventos sociais devido a sua dificuldade na mastigação, ou então pela dor na face, e até mesmo não se expõe no trabalho por se sentir envergonhado diante de sua condição facial, o que provoca prejuízos sociais, emocionais, profissionais, entre outros.
Convém ressaltar que o presente estudo traz importante contribuição para a compreensão da relação entre as FOF e a QV em saúde oral em pacientes com DDF; contudo, é importante considerar as limitações da pesquisa no que se refere ao reduzido número de participantes incluídos na casuística, bem como a não utilização de exames instrumentais para avaliação objetiva de respiração, mastigação, deglutição e fala, tornando-se necessário o desenvolvimento de novas pesquisas. Por fim, investigar as modificações envolvidas em tais aspectos após o tratamento ortodôntico cirúrgico possibilitará compreender o impacto do tratamento odontológico e a necessidade da intervenção fonoaudiológica na área de motricidade orofacial para essa população.
O Padrão Facial influenciou o desempenho das FOF e a QV em indivíduos com DDF, tendo sido encontrada maior ocorrência de alterações para os Padrões Faciais II e III, quando comparados ao Padrão I. Houve relação entre os escores dos protocolos MBGR e OHIP-14, demonstrando que quanto piores as FOF, pior a QV em casos com DDF.