versão impressa ISSN 1809-2950
Fisioter. Pesqui. vol.21 no.2 São Paulo abr./jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1809-2950/63621022014
A distrofia muscular de Duchenne (DMD) é uma miopatia genética caracterizada pela perda progressiva da força muscular, de proximal para distal, acometendo primeiramente os membros inferiores e posteriormente os membros superiores. Esta fraqueza muscular progressiva causa alterações posturais e na marcha, levando o paciente à perda da deambulação2 - 4. Assim, a reabilitação do paciente com DMD objetiva retardar o progresso das deformidades e proporcionar melhor qualidade de vida, visando principalmente a manutenção da marcha por maior tempo possível4.
Diante disso, são vários os instrumentos de avaliação da marcha que visam entender as alterações biomecânicas e também o gasto energético para executá-la5. Buscando maior facilidade de mensuração do gasto energético na marcha de crianças, Rose et al.6 compararam o índice do gasto energético (IGE) pelo consumo de oxigênio com o índice de gasto energético pela frequência cardíaca (FC) e concluíram que, apesar de ambos poderem ser usados na avaliação de crianças normais e com paralisia cerebral, é preferível usar o índice obtido pela FC, dada a facilidade de aquisição dos dados.
O IGE, cujo resultado final é expresso em número de batimentos cardíacos por metro andado5, é normalmente relatado em crianças com paralisia cerebral6 - 9, porém são restritos os trabalhos em pacientes com DMD. Nestes pacientes, o gasto energético de repouso, avaliado pela calorimetria, é alvo da maioria dos estudos10 - 13.
Taktak e Bowker14 compararam o gasto energético na marcha de pacientes com DMD, entre dois tipos de órtese. O IGE foi calculado pela FC de marcha e de repouso, e pela velocidade média (Vm) da marcha em um circuito de 8 m. Outros autores15 avaliaram o gasto energético em pacientes com DMD pelos valores de FC e de Vm obtidos no teste de caminhada de 6 minutos. Porém, nenhum estudo comparou o gasto energético durante a marcha em pacientes com DMD com os dados Rose et al.1.
Avaliar o gasto energético da marcha pela adoção da FC poderá contribuir para o acompanhamento da progressão da doença e, assim, favorecer a eleição de condutas terapêuticas nos pacientes com DMD. Assim, este estudo de caso objetivou verificar se o modelo de Rose et al.1 é factível de ser aplicado na clínica como parâmetro indireto para indicar o gasto energético da marcha em crianças com DMD.
Participaram do estudo três pacientes atendidos pelo Ambulatório de Miopatias Infantis do Centro de Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (CER-HCFMRP-USP). Os critérios de inclusão foram: diagnóstico de DMD confirmado, idade acima de seis anos, deambulação comunitária independente, escore funcional semelhante (até dois pontos de diferença) na Dimensão 1 (D1) da Motor Function Measure (MFM)16 e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), pelo responsável. Os critérios de exclusão foram: presença de doenças cardiopulmonares ou cognitivo insuficiente para compreender os comandos do fisioterapeuta.
Os dados normativos referentes ao gasto energético na marcha pela análise indireta via FC para crianças saudáveis, propostos por Rose et al.1, foram usados para comparação dos resultados obtidos com os pacientes de DMD. Portanto, esses dados foram aqui discriminados como dados normativos de Rose et al.1.
A história clínica dos pacientes e os escores da MFM foram obtidos no Banco de Dados do Ambulatório de Miopatias Infantis do CER-HCFMRP-USP. Os pacientes selecionados, conforme os critérios de inclusão, foram convidados a participar do estudo e as avaliações foram agendadas para aqueles cujos responsáveis assinaram o TCLE.
Os pacientes foram avaliados no CEFER do campus de Ribeirão Preto da USP. Foram coletados: peso, altura, comprimento dos membros inferiores (CMMII) e gasto energético na marcha. Este estudo de caso é de caráter transversal e cada um dos testes (descritos abaixo) foi realizado sempre pelo mesmo examinador.
O peso foi avaliado na balança eletrônica Welmy® W200/5 e a altura em um estadiômetro (Tonelli®). Essas medidas foram obtidas com a criança descalça, em posição ortostática. O CMMII foi obtido, por uma fita métrica, com a criança em decúbito dorsal, a distância entre a espinha ilíaca anterossuperior e o maléolo medial. O índice de massa corporal (IMC) foi calculado por meio da divisão do peso pela altura ao quadrado. A composição corporal foi avaliada pela bioimpedância elétrica (Biodynamics 450).
Para a avaliação do gasto energético da marcha foi adotada metodologia semelhante à descrita por Rose et al.1, na qual as crianças deambularam em um circuito oval de 55 m, em 3 etapas, com duração de 2 minutos cada.
Inicialmente, com a criança sentada, foi coletada a frequência cardíaca de repouso (FCr) por meio do monitor de FC (Polar®). Na primeira etapa, a criança foi orientada a andar, pelo circuito, em uma velocidade confortável, com o comando verbal "ande normal, como você anda todo dia". Na segunda etapa, a criança foi orientada a andar em velocidade lenta: "ande bem devagarzinho". Na terceira, recebeu o comando: "anda o mais rápido que você puder, mas sem correr".
A frequência cardíaca de marcha (FCm) foi coletada nos últimos 30 segundos de cada etapa. Entre as etapas, as crianças descansaram por 3 minutos, ou até a FC retornar ao valor de repouso +/- 5 bat/min.
A Vm da marcha e o IGE, em cada etapa, foram calculados pelas fórmulas Vm=d/t e IGE=(FCm-FCr)/Vm, respectivamente, sendo que d é a distância total percorrida, em metros, e t é o tempo de duração de cada etapa do teste (2 min).
Foi realizada a análise descritiva (média) dos dados. Estes foram comparados, individualmente, aos dados normativos (média e desvio-padrão) de Rose et al. (que compreende crianças típicas de 6-8 anos) nas três etapas do teste (velocidades lenta, preferida e rápida).
As medidas das variáveis antropométricas (peso, altura, CMMII), a FC de repouso e a porcentagem de massa gorda aumentaram conforme a idade. Não houve diferença entre o comprimento do membro inferior direito e esquerdo. O escore da MFM diminuiu com o avanço das idades (Tabela 1).
Tabela 1 Características da amostra em relação às variáveis antropométricas, composição corporal e escore da medida da função motora
Idade | Peso | Altura | IMC | CMMII | Massa magra/ | Escore MFM* | FCr | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
(anos) | (kg) | (cm) | (cm) | massa gorda (%) | (bpm) | |||
1 | 6 | 19,5 | 115 | 14,7 | 53 | 89,5 / 10,5 | 71,7% (28) | 97 |
2 | 7 | 19,2 | 120 | 13,3 | 59 | 88 / 12 | 66,6% (26) | 98 |
3 | 8 | 24,4 | 127 | 15,1 | 66,5 | 72,5 / 27,5 | 61,5% (24) | 103 |
IMC: índice de massa corporal
CMMII: comprimento dos membros inferiores
MFM: medida da função motora
*Dimensão 1 (escore bruto)
bpm: batimentos por minuto
A Tabela 2 mostra que a distância percorrida, a FC de repouso e de marcha, a Vm e o gasto energético aumentaram conforme a progressão da etapa do teste, para todos os pacientes avaliados, exceto para o paciente 3, que percorreu a mesma distância e, assim, manteve a Vm nas etapas de velocidade lenta e confortável.
Tabela 2 Velocidade média e cálculo do gasto energético nas velocidades confortável, lenta e rápida, para os pacientes 1, 2 e 3
V lenta | V confortável | V rápida | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1 | 2 | 3 | 1 | 2 | 3 | 1 | 2 | 3 | |
DP (m) | 66,0 | 61,0 | 79,5 | 92,5 | 80,5 | 79,5 | 145,0 | 132,5 | 132,5 |
FCm (bpm) | 109 | 113 | 125 | 125 | 120 | 132 | 130 | 137 | 176 |
FCr (bpm) | 97 | 99 | 105 | 97 | 101 | 107 | 99 | 98 | 103 |
Vm (m/min) | 33 | 30,5 | 39,75 | 46,25 | 40,25 | 39,75 | 72,5 | 66,25 | 66,25 |
IGE (bat/m) | 0,36 | 0,45 | 0,50 | 0,38 | 0,47 | 0,62 | 0,45 | 0,58 | 1,10 |
V: velocidade
DP (m): distância percorrida em metros
FCm: frequência cardíaca de marcha
FCr: frequência cardíaca de repouso
bat/m: batimentos por minuto
Vm (m/min): velocidade média em metros por minuto
IGE (bat/m): índice do gasto energético em batimentos por metro
Os pacientes de maior idade apresentaram menores escores da MFM e maior gasto energético (Tabelas 1 e 2).
Considerando as médias e os desvios-padrão de crianças saudáveis1, o peso e o CMMII dos pacientes 1 e 2 foram menores, porém os valores do paciente 3 estavam dentro da normalidade. Para a altura, o paciente 1 foi o único que obteve resultado inferior ao grupo controle, os pacientes 2 e 3 apresentaram resultados semelhantes ao grupo saudável estudado por Rose et al.1. A FCr dos três pacientes foi maior que aquela obtida no grupo saudável estudado por Rose et al.1. A altura, o comprimento dos membros inferiores e a FCr aumentaram conforme a idade (Tabela 3).
Tabela 3 Comparação das variáveis antropométricas entre os pacientes e os dados normativos de Rose et al.1
Dados normativos | Pacientes | |||
---|---|---|---|---|
de Rose et al.1 | 1 | 2 | 3 | |
Idade (anos) | 6-8 | 6 | 7 | 8 |
Peso (kg) | 28 (5,7)* | 19,5 | 19,2 | 24,4 |
Altura (cm) | 127 (9,9)* | 115 | 120 | 127 |
CMMII (cm) | 66 (6,8)* | 53 | 59 | 66,5 |
FCr (bpm) | 83 (10)* | 97 | 98 | 103 |
*média (desvio-padrão)
CMMII: comprimento dos membros inferiores
FCr (bpm) : frequência cardíaca de repouso em batimentos por minuto
A Tabela 4 apresenta a comparação das velocidades médias e do gasto energético entre pacientes 1, 2 e 3 e dados normativos de Rose et al.1.
Tabela 4 Comparação da velocidade média e do gasto energético entre os pacientes e dados normativos de Rose et al.1
Vm (m/min) | IGE (bat/m) | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Lenta | Confortável | Rápida | Lenta | Confortável | Rápida | |
Dados Normativos | 35 (9,9)* | 65 (8,4)* | 93 (13,1)* | 0,75 (0,36)* | 0,48 (0,15)* | 0,60 (0,20)* |
de Rose et al.1 | ||||||
Paciente 1 | 33 | 46,25 | 72,50 | 0,36 | 0,38 | 0,45 |
Paciente 2 | 30,50 | 40,25 | 66,25 | 0,45 | 0,47 | 0,58 |
Paciente 3 | 39,75 | 39,75 | 66,25 | 0,50 | 0,62 | 1,10 |
Vm (m/min): velocidade média em metros por minuto
IGE (bat/m): índice do gasto energético em batimentos por metro
*média (desvio-padrão)
Todos os pacientes apresentaram Vm dentro do intervalo (média e desvio-padrão) dos dados apresentados por Rose et al.1, na etapa de velocidade lenta, e menor Vm nas velocidades confortável e rápida.
O gasto energético dos pacientes, em comparação à normalidade1, comportou-se de maneira diferente conforme a velocidade da marcha.
O paciente 1 apresentou gasto energético dentro do intervalo (média e desvio-padrão) dos dados normativos de Rose et al.1, na velocidade confortável e na velocidade rápida, e gasto energético inferior ao do intervalo (média e desvio-padrão) do grupo controle na velocidade lenta.
O paciente 2, gasto energético dentro do intervalo (média e desvio-padrão) dos dados normativos de Rose et al.1 nas três velocidades (lenta, confortável e rápida).
O paciente 3, gasto energético dentro do intervalo (média e desvio-padrão) dos dados normativos de Rose et al.1, nas velocidades lenta e confortável, e gasto energético superior na velocidade rápida.
A Figura 1 apresenta os valores para o gasto energético dos pacientes com DMD nas três velocidades (lenta, confortável e rápida). Houve aumento do gasto energético com a progressão da idade. Observa-se que o gasto energético dos pacientes 1 e 2 aumentou de maneira semelhante conforme a progressão da velocidade. Porém, o aumento do gasto energético do paciente 3 foi mais acentuado, principalmente da etapa de velocidade confortável para a rápida.
Diante da escassez de estudos sobre o gasto energético na marcha de pacientes com DMD, este trabalho objetivou verificar se o modelo de Rose et al.1 é factível para avaliar o gasto energético na marcha em crianças com DMD.
Assim como no estudo de Rose et al.1, foram obtidos dados antropométricos, e os valores de peso e altura dos pacientes avaliados foram semelhantes aos achados de outros autores14 , 17. Com base nos dados normativos de Rose et al.1, o peso e o comprimento dos membros inferiores dos pacientes 1 e 2 foram menores, e do paciente 3 foram semelhantes. Para a altura, apenas o paciente 1 obteve resultado inferior, os pacientes 2 e 3 apresentaram resultados semelhantes. Contrariamente, outros autores mostram que os pacientes com DMD têm menor peso e altura que crianças saudáveis2.
A progressão da DMD leva a um declínio funcional. Nesse sentido, a MFM é a ferramenta ideal de acompanhamento, sendo que sua versão em português apresenta alta confiabilidade16. De acordo com a literatura18, o escore da MFM diminuiu com a idade. Neste estudo de caso, pode ser observado aumento do gasto energético com o declínio funcional dos pacientes analisados (escores dos pacientes 1, 2 e 3 eram diferentes em 2 pontos entre eles). Estes dados podem sugerir uma relação inversa entre o escore da MFM e o gasto energético, ou seja, maiores escores na MFM, menores gastos energéticos na marcha.
No cálculo do gasto energético foram consideradas as frequências cardíacas e a Vm na marcha. Em conformidade com a literatura19, a FC de repouso dos pacientes avaliados foi maior que a do grupo saudável estudado por Rose et al.1. Este dado pode ser explicado pela disfunção do sistema nervoso autônomo, que ocorre precocemente em pacientes com DMD, causando diminuição da atividade parassimpática e/ou aumento da atividade simpática com a progressão da doença20. A diminuição da Vm confortável com o avanço da idade e o menor valor das velocidades (confortável e rápida) em relação às crianças saudáveis podem ser explicados pelas alterações na marcha do paciente com DMD com a progressão da doença. Em outro estudo2, não houve diferença entre a Vm da marcha dos pacientes com DMD e a do grupo controle. Contrariamente, Gaudreault et al.21 mostraram que a velocidade da marcha dos pacientes foi menor que a do grupo controle, e que a Vm habitual em pacientes com DMD não difere da velocidade lenta do grupo controle.
O gasto energético total engloba o gasto energético de repouso e o gasto em atividade. Em pacientes com DMD, o gasto energético de repouso é frequentemente avaliado. Alguns autores relatam que, nestes pacientes, o gasto energético de repouso é menor que o do grupo controle e enfatizam a necessidade de estudos longitudinais, a fim de entender tais mudanças com a progressão da doença10. Contrariamente, para outros autores12, o gasto energético de repouso é maior em pacientes com DMD que em crianças saudáveis e, ainda, este gasto é menor em pacientes com DMD obesos que em não obesos. Neste sentido, é enfatizado que a análise do gasto energético deve ser relacionada com a análise da composição corporal.
Em crianças saudáveis, há uma correlação positiva entre a massa gorda e o gasto energético e este é inversamente proporcional à massa magra22. Neste estudo, o aumento do gasto energético conforme a idade condiz com o acúmulo de gordura corporal e perda de massa magra, aspectos característicos da progressão da DMD17. Ainda, apenas o paciente 3 apresentou maior gasto energético, em relação aos dados normativos de Rose et al.1, o que parece ser justificado por apresentar maior porcentagem de massa gorda que os outros pacientes avaliados.
Três importantes fatores limitam a discussão dos resultados aqui obtidos1: a escassez de estudos sobre o gasto energético na marcha de pacientes com DMD2, a variedade metodológica dos estudos que abordam gasto energético de repouso e o número de sujeitos aqui analisados3. Por essa razão, generalizações seriam indevidas, limitando, assim, a proposição de intervenções apenas aos pacientes participantes.
A partir destes resultados, estudos subsequentes deverão ser conduzidos em um número maior de pacientes. Hipotetiza-se uma relação inversa entre o escore da MFM e o gasto energético, avaliado pela FC, que poderá ser minimizado pela indicação precoce de treinamento terapêutico aeróbio.
Nas três crianças com DMD que participaram deste estudo, a avaliação do gasto energético da marcha pela adoção da FC e o pareamento do mesmo com dados de crianças saudáveis1 foram facilmente executados na clínica. O modelo utilizado por Rose et al.1 parece indicar o gasto energético da marcha em crianças com DMD e demonstrou ser um instrumento que pode auxiliar o terapeuta na eleição de suas condutas. Para o paciente 3, os dados obtidos neste estudo sugerem que o desenvolvimento de treinamento aeróbio pode minimizar a resposta deletéria no sistema cardiorrespiratório que acompanha a progressão da DMD. Aos demais pacientes, poderiam ser indicadas somente avaliações rotineiras para mensurar o gasto energético da marcha nas diferentes velocidades. Ainda assim, outros pacientes com diferentes escores da MFM deverão ser analisados, seguindo a metodologia proposta, para incrementar as conclusões aqui elencadas.