versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.31 no.7 Rio de Janeiro jul. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE010715
A Constituição Federal de 1988 definiu a saúde como “dever do Estado” e “direito do cidadão”. Pela letra da lei, todo cidadão pode utilizar o Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com suas necessidades sociais, independentemente da capacidade de pagamento, inserção no mercado de trabalho ou condição de saúde. Para garantir a universalização, o Estado deveria ter concentrado esforços para melhorar sua equidade e qualidade nos últimos 25 anos. No entanto, como a saúde é também livre a iniciativa privada, os planos de saúde – que radicalizam a seleção de riscos – contaram com pesados incentivos governamentais, cujos subsídios favorecem a passos largos o consumo de bens e serviços privados 1.
Para os sanitaristas, não é fácil lidar com essa contradição. As distorções deste “sistema” tendem a segmentar o caráter único do SUS, dado que o aumento do gasto privado e do poder econômico acabam corroendo a sustentabilidade do financiamento estatal, conduzindo a um círculo vicioso, caracterizado pela queda relativa do custeio e do investimento direto do governo. Além do mais, a regulação de sistema duplicado é mais complexa para o Estado, uma vez que o mercado cobre igualmente serviços ofertados pelo setor público.
Diferente do esquema beverediano e similar ao modelo americano, após o fim do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), o sistema brasileiro se travestiu em um mix paralelo e duplicado, em que o setor privado estabelece uma relação parasitária com o SUS e com o padrão de financiamento público. Pior: na atual conjuntura histórica, sem força para sustentar um projeto estratégico que resista ao alargamento da hegemonia neoliberal, uma visão fiscalista, que prega o fomento do mercado de planos de saúde como solução pragmática para desonerar as contas públicas, é sustentada por setores economicistas no Estado e na sociedade.
Precisamos repensar por que razões não foi possível ainda afirmar os pressupostos constitucionais do SUS, tampouco ampliar, substantivamente, os mecanismos regulatórios da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Afinal, ao seu modo, não é de hoje que está em curso um processo de americanização do sistema de saúde brasileiro 2.
O gasto total em saúde corresponde a 9% do Produto Interno Bruto, mas apenas 47% correspondem à despesa pública, discrepante do nível observado nos países que possuem sistemas universais. Na composição do gasto privado, os planos de saúde respondem por 40,4%, tornando o desembolso direto a parte mais significativa 3. Considerando sua natureza “inelástica”, os gastos com planos tendem a crescer – embora compensados pelos incentivos governamentais, e, apesar de programas de distribuição gratuita e da farmácia popular, os trabalhadores de baixa-renda continuam comprometendo, proporcionalmente, maior parcela da renda familiar com medicamentos do que as famílias de maior renda 4.
Apesar do subfinanciamento, além de oferecer serviços de baixo e alto custo, desde a sua criação, o SUS tem sido, em geral, exitoso na expansão da atenção primária (promoção e prevenção), na cobertura de doenças crônicas, na diminuição dos gastos da base populacional da estrutura social e na redução do risco de exposição dos gastos catastróficos, em geral associados à alta complexidade tecnológica. Mas, a rigor, o gasto público é baixo e boa parte dos problemas de gestão decorre exatamente dessa restrição orçamentária, de modo que a renúncia de arrecadação fiscal, por ser peça-chave na reprodução econômica do mercado de planos de saúde, merece mais atenção das autoridades governamentais, caso se queira, a um só tempo, consolidar o SUS e reduzir o gasto das famílias e dos empregadores com bens e serviços privados.
Nesse contexto, a contradição central de tal subsídio reside em diminuir os gastos dos estratos superiores de renda e dos empregadores, ao mesmo tempo em que subtrai recursos que poderiam ser alocados no SUS, reforçando a iniquidade do sistema brasileiro, uma vez que piora a distribuição do gasto público per capita para os estratos inferiores e intermediários de renda. Isso se torna mais grave à medida que os subsídios não desafogam – completamente – os serviços médico-hospitalares do SUS, já que os usuários de planos de saúde utilizam seus serviços (vacinação, urgência e emergência, banco de sangue, transplante, hemodiálise, serviços de alto custo e de complexidade tecnológica). Dessa maneira, paradoxalmente, o SUS acaba socializando parte dos custos das operadoras – a exemplo do contencioso em torno do ressarcimento.
Não é recomendável naturalizar a renúncia – aceitá-la como natural –, afastá-la de valores, normas e práticas que possibilitem o exercício do controle governamental sob o marco constitucional do SUS. Ela pode gerar situação tão regressiva da ótica das finanças públicas, ao favorecer os estratos superiores de renda e o mercado de planos de saúde, que alguns países impuseram tetos ou desenharam políticas para reduzir ou focalizar sua incidência.
Uma justificativa aceitável para o Ministério da Saúde preencher tal lacuna normativa deveria valer-se da suspeita que a renúncia de arrecadação fiscal pode afetar negativamente o financiamento do SUS e a equidade do sistema de saúde, em especial se se considerar seus efeitos positivos sobre a desconcentração de renda. Contudo, caso o governo federal queira radicalizar a carta constitucional em defesa da universalidade e da integralidade, outras premissas devem ser levadas em conta, tendo-se em mente as contradições encerradas na articulação entre o Estado e o mercado de planos de saúde: (i) o gasto tributário foi e é peça-chave para a reprodução do setor privado; (ii) esse subsídio não influencia a calibragem da política de reajustes de preços dos planos individuais praticada pela ANS (por exemplo, a ANVISA monitora a redução do preço dos medicamentos pela da desoneração fiscal patrocinada pelo governo, voltada à indústria farmacêutica); (iii) o montante da renúncia associado ao Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e ao Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) não é controlado pelo Ministério da Saúde, tampouco pelo Ministério da Fazenda – condicionada pela renda, ele depende, exclusivamente, do nível de gastos com saúde dos contribuintes.
De qualquer maneira, o Ministério da Saúde não pode desistir do seu papel de regular o gasto tributário em saúde, cujo desenho dependerá do projeto institucional do governo para o setor, bem como do seu poder de barganha para superar os conflitos distributivos na arena setorial e para resistir à sua captura pelo mercado. Existe assim um conjunto de evidências que estão indicando a seguinte perspectiva: o mecanismo da renúncia de arrecadação fiscal, apoiado pelo laissez-faire regulatório da ANS, pode induzir o crescimento do mercado de planos em detrimento do fortalecimento do SUS. Esse quadro reproduz iniquidades, uma vez que favorece os estratos superiores de renda e as atividades econômicas lucrativas do setor – cada vez mais concentradas, centralizadas e internacionalizadas. Essa situação é agravada, como apontam Emanuel & Fuchs 5, dada a possibilidade de o empregador sonegar impostos e compartilhar custos relativos à assistência médica de seus empregados – ou pagando baixos salários, ou ofertando preços mais elevados.
Para que o sistema de saúde de saúde brasileiro supere esses desafios é necessária maior mobilização política para reestruturar o financiamento público e redefinir os papéis dos setores público e privado 6.
O bloco sanitarista deve lutar para ampliar o financiamento, melhorar a gestão e fortalecer a participação social do SUS, porém, ao mesmo tempo, na crítica à privatização, deve propor a criação de estruturas institucionais e mecanismos regulatórios que permitam atrair segmentos da clientela da medicina privada para o SUS, bem como reduzir o gasto dos trabalhadores, das famílias e dos idosos com planos de saúde, serviços médico-hospitalares e remédios (o envelhecimento populacional é um elemento determinante para a elevação dos gastos com saúde, em geral relacionado às doenças crônico-degenerativas, sinalizando a necessidade de transformações institucionais substantivas no SUS e na regulação do mercado de planos de saúde).
Diante da estagnação econômica e da crônica restrição orçamentária, uma medida efetiva para fortalecer o SUS e reorientar seu modelo de atenção seria convencer o governo e a sociedade acerca das externalidades positivas da eliminação, redução ou focalização dos subsídios: de um lado, coibindo a estratégia de elisão e/ou evasão fiscal dos empregadores e dos contribuintes de alta renda facilitada pela adoção de salários indiretos, e de outro, aplicando o gasto tributário associado aos planos de saúde – que alcançou aproximadamente R$ 9 bilhões em 2012 – na atenção primária (Programa Saúde da Família – PSF, promoção e prevenção à saúde etc.) e na média complexidade (unidades de pronto atendimento, prática clínica com profissionais especializados e recursos tecnológicos de apoios diagnóstico e terapêutico etc.).
Em outras palavras, a conversão de gasto público indireto em direto teria mais sentido clínico e epidemiológico se contribuísse para negar e superar o atual modelo de atenção assistencial, ou seja, se fustigasse o “sistema” duplicado e paralelo, que estimula a superprodução e o consumo desenfreado e que responde às condições crônicas na lógica de atenção das condições agudas, e, que ao final de um período mais longo, pode determinar resultados sanitários e econômicos desastrosos.
No contexto da globalização financeira no setor saúde 7, considerando o perfil conservador da coalizão governamental e a frágil capacidade de pressão da sociedade civil, a expansão do mercado e dos subsídios em linha com a concepção do Obama Care e com a proposta dos organismos internacionais em torno da cobertura universal em saúde parece se afirmar como cenário mais plausível. Afinal – tendo em mente o desmonte do National Health System inglês –, as recentes mudanças prejudiciais ao financiamento do SUS e a criação de bases institucionais para internacionalização do mercado tendem a aprofundar o subfinanciamento do setor público e as desigualdades do sistema de saúde e da própria sociedade brasileira.