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Gênero como marcador das relações de cuidado informal em saúde mental

Gênero como marcador das relações de cuidado informal em saúde mental

Autores:

Luciane Prado Kantorski,
Vanda Maria da Rosa Jardim,
Carlos Alberto dos Santos Treichel,
Ana Paula Muller de Andrade,
Marta Solange Streicher Janelli da Silva,
Valéria Cristina Christello Coimbra

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.27 no.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2019 Epub 21-Fev-2019

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201900010071

Abstract

Background

The gender interface as an important category in the field of mental health is still incipient. This results in the reification of practices that reproduce inequalities and asymmetries between men and women caregivers in the context of psychiatric care in Brazil.

Objective

To discuss how gender has marked care practices performed by families through the identification of differences in socio-demographic profile, development of care activities and their repercussions on the family's life according to the sex of the individuals.

Method

A cross-sectional study with 1242 relatives of users of Psychosocial Care Centers. We verified the prevalence of each variable stratum according to the sex of the individuals studied using chi-square test for heterogeneity.

Results

Aspects such as absence of the division of care activity, feeling of overload, poor quality of life, dissatisfaction with family relationships, and manifestation of minor psychiatric disorders were more prevalent among the women accessed.

Conclusion

There are important differences between men and women caregivers in mental health, especially regarding the repercussions of care on the lives of these people.

Keywords:  gender and health; caregivers; mental health; community mental health services

INTRODUÇÃO

A partir da reforma psiquiátrica, iniciada no país na década de 1980, ocorreram diversas mudanças nos processos de cuidado com as pessoas com transtornos mentais no Brasil. Entre essas mudanças, destaca-se o surgimento de serviços extra-hospitalares, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que consiste em um serviço comunitário aberto do Sistema Único de Saúde regulamentado pelas Portarias GM/MS nº 4.279/10 e nº 3.088/11, republicadas em 2013. O CAPS se constitui em um ordenador da rede de serviços em saúde mental e é responsável por acolher os indivíduos em sofrimento psíquico e suas famílias, oferecendo cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial 1,2 .

Nesse contexto, houve uma significativa reconfiguração da participação da família no cuidado com as pessoas acometidas por algum tipo de sofrimento psíquico. Além de participarem como atores sociais importantes do processo de consolidação dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, os familiares foram convocados a compartilhar o cuidado com os profissionais e os próprios sujeitos 1,2 .

A família, na perspectiva psicossocial, é entendida como provedora de cuidado e demandante de cuidados, uma vez que integra a rede social e compõe o contexto sociocultural em que os sujeitos acometidos por algum transtorno mental estão inseridos. Assim, os familiares produzem saúde em conjunto com os demais atores sociais envolvidos nas práticas de cuidado em liberdade 3 .

Trabalhar com os familiares nesse contexto demanda esforços, já que as famílias que procuram os serviços que compõem a rede de atenção psicossocial apresentam diferentes configurações. Nesse sentido, marcadores sociais, como a classe, a etnia e, sobretudo, o gênero, marcam, de forma significativa, as práticas de cuidado 4 .

Quanto ao gênero, as mulheres são reconhecidas como maioria no que se refere à prestação de cuidados, por exemplo, mães, irmãs, cônjuges, avós, entre outras parentalidades, o que reflete determinada configuração de gênero que associa as atividades delas ao âmbito privado/doméstico, no qual o cuidado é demandado, à revelia das inúmeras transformações e conquistas das mulheres no âmbito público. Outrossim, tais mulheres acumulam tarefas públicas e privadas, em duplas e triplas jornadas de trabalho 5 .

O gênero, tal como propõe Scott 6 , não deve ser pensado apenas para dar sentido às diferenças percebidas entre homens e mulheres, mas para ir além e ser tomado como uma categoria que permita compreender os significados culturais e os sentidos atribuídos para homens e mulheres em suas relações. Nesse sentido, segundo a autora, o gênero seria um primeiro modo de dar significado às relações de poder. Tal abordagem ultrapassa os limites de uma interpretação relacionada estritamente ao sexo, ou seja, àquilo que estaria relacionado aos caracteres genitais de homens e mulheres, e propõe uma análise que contemple o caráter relacional entre ambos 6 .

A interface do gênero enquanto importante categoria no âmbito da saúde mental ainda é incipiente, como apontam Zanello e Andrade 7 ; decorre daí uma reificação de práticas que reproduzem desigualdades e assimetrias entre homens e mulheres cuidadores/as no contexto da atenção em saúde mental no Brasil. Tal como apontam Gutierrez e Minayo 3 , quando essa discussão aparece, não tem o devido aprofundamento.

Diante da complexidade do desenvolvimento de um cuidado singular no âmbito da atenção em saúde mental, o objetivo deste artigo é discutir como o gênero tem marcado as práticas de cuidado desempenhadas pelas famílias, por meio da identificação de diferenças quanto ao perfil sociodemográfico, ao desenvolvimento das atividades de cuidado e às suas repercussões na vida dos familiares de acordo com o sexo dos indivíduos.

MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal, realizado com familiares de usuários/as de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do tipo I, II e III, parte integrativa de uma pesquisa de avaliação de serviços de saúde mental de base comunitária da região Sul do Brasil (CAPSUL II), realizada em 2011.

Os/as participantes deste estudo foram submetidos à aplicação de um formulário pré-estruturado composto por perguntas acerca de dados sociodemográficos, utilização dos serviços de saúde, condições de saúde, participação em atividades, características do cuidado prestado, sentimento de sobrecarga e avaliação de sua qualidade de vida.

A coleta de dados ocorreu em 40 CAPS do tipo I, II e III, distribuídos nos Estados do Sul do Brasil (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul).

Para seleção dos serviços incluídos no estudo, respeitou-se a proporcionalidade de serviços em cada Estado, de forma que foram incluídos na amostra 12 serviços no Paraná, 10 em Santa Catarina e 18 no Rio Grande do Sul.

Com base no cálculo de amostra, pretendeu-se aplicar o questionário a 1.600 usuários/as de Centros de Atenção Psicossocial. Para prevalência, o cálculo de amostra considerou uma frequência estimada de 50%, com margem de 3 pontos e alfa (α) de 5%, resultando na necessidade de um N = 1.066. Já para associação, utilizando um poder de amostra de 90%, com confiança de 95%, relação de não expostos/expostos de 2:1, risco relativo de 1,3 e considerando prevalência de 40% em não exposto, obteve-se um indicativo de amostra de N = 1.038. Logo, acresceu-se ao maior N indicado (N = 1.066) 50% de indivíduos a fim de considerar perdas e controle de fator de confusão.

A seleção dos entrevistados foi realizada por meio de amostragem não probabilística. Todos os familiares que frequentaram o serviço no período de coleta (uma semana) foram abordados. Além deles, a fim de completar a amostra, por meio dos registros dos serviços, foram rastreados familiares aos quais foram realizadas visitas domiciliares. O percentual de perdas no universo dos familiares correspondeu a 23%, relacionado a recusas e dificuldades em encontrá-los; sendo assim, a população final acessada por este estudo foi de 1.242 familiares.

A coleta foi feita por 40 entrevistadores independentes, selecionados e treinados previamente. O controle de qualidade dos dados foi realizado na codificação dos instrumentos de coleta, na revisão efetuada pelos supervisores ao receber os questionários e na replicação de 5% das entrevistas realizadas. A entrada dos dados no banco ocorreu por meio de dupla digitação no software EPI-INFO 6.04, e as diferenças entre os dados foram comparadas, avaliadas e corrigidas, quando necessário.

Como desfecho, este estudo buscou identificar o perfil dos/as cuidadores/as e as repercussões do cuidado em suas vidas de acordo com a perspectiva de gênero. Foram incluídas neste estudo as variáreis: sexo (feminino e masculino), idade (18 a 25 anos, 26 a 40 anos, 41 a 50 anos e 51 anos ou mais), estado civil (com companheiro e solteiro), vínculo com o usuário (pais, irmãos, cônjuges, filhos e outros), escolaridade (sem escolaridade, até 4 anos de estudo, entre 5 e 8 anos de estudo, entre 9 e 11 anos de estudo e 12 anos de estudo ou mais), renda (até 1 salário mínimo, entre 1 e 2 salários mínimos, entre 2 e 3 salários mínimos e 3 salários mínimos ou mais), trabalho remunerado (possui trabalho remunerado e não possui trabalho remunerado), problemas de saúde (não possui e possui), divisão das atividades do cuidado (divide o cuidado e cuida sozinho), sentimento de sobrecarga (não sobrecarregado, pouco sobrecarregado, mais ou menos sobrecarregado e muito sobrecarregado), avaliação da qualidade de vida (boa e ruim), relação com a família (satisfeito, mais ou menos satisfeito e insatisfeito) e transtornos psiquiátricos menores (rastreio negativo e rastreio positivo). Para rastreamento de transtornos psiquiátricos menores, utilizou-se a escala Self-Reporting Questionnaire (SRQ20), tendo como base a validação brasileira da escala 8 , que adotou como ponto de corte 6/8.

As análises foram conduzidas com o pacote estatístico Stata 11 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos). Foi verificada a prevalência de cada estrato das variáveis de acordo com o sexo dos indivíduos estudados, utilizando-se o teste qui-quadrado para heterogeneidade a fim de identificar diferenças estatisticamente significativas entre os grupos (p < 0,05).

O estudo foi submetido, sob ofício nº 176/2011, pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas e aprovado por ele, seguindo as normas e as diretrizes regulamentadoras da pesquisa envolvendo seres humanos – Resolução CNS nº 196/96. Os aspectos deste estudo atendem também à Resolução CNS nº 466/2012. Os princípios éticos foram assegurados por meio de: consentimento livre e esclarecido, garantia do direito de não participação na pesquisa e anonimato. Não houve conflitos de interesse na realização deste estudo.

RESULTADOS

A amostra do estudo compreendeu 842 mulheres (67,8%) e 400 homens (32,2%). Escolaridade foi a única característica estudada em que não houve diferença estatística entre os sexos; nas demais variáveis, todas as comparações por meio do teste qui-quadrado apresentaram p-valor < 0,05. A distribuição entre sexos para todas as variáveis estudadas pode ser observada na Tabela 1 .

Tabela 1 Distribuição das variáveis analisadas de acordo com o sexo dos participantes dos Centros de Atenção Psicossocial da região Sul (CAPSUL) do Brasil, 2011  

N % em homens % em mulheres P-valor
Idade
Até 25 anos 101 9,0% 7,7% <0,001
26 a 40 anos 217 14,7% 18,8%
41 a 50 anos 576 40,3% 49,3%
51 anos ou mais 348 36,0% 24,2%
Estado civil
Com companheiro 755 73,7% 54,8% <0,001
Solteiro 484 26,3% 45,2%
Vínculo
Pais 422 22,2% 39,5% <0,001
Irmãos 200 9,5% 19,2%
Cônjuges 303 44,5% 14,9%
Filhos 190 16,0% 15,0%
Outros 127 7,8% 11,4%
Escolaridade
Sem escolaridade 133 9,6% 11,3% 0,595
Até 4 anos de estudo 551 47,2% 43,5%
Entre 5 e 8 anos de estudo 162 13,5% 13,0%
Entre 9 e 11 anos de estudo 276 20,3% 23,4%
12 anos de estudo ou mais 111 9,4% 8,8%
Renda
Até 1 salário mínimo 200 11,3% 20,4% <0,001
Entre 1 e 2 salários mínimos 390 32,3% 35%
Entre 2 e 3 salários mínimos 276 29,3% 21,8%
3 salários mínimos ou mais 275 27% 22,7%
Trabalho
Possui trabalho remunerado 489 46,5% 36,0% <0,001
Não possui trabalho remunerado 752 53,5% 64,0%
Problema de saúde
Não possui 575 55,2% 42,0% <0,001
Possui 667 44,8% 58,0%
Divisão das atividades do cuidado
Divide o cuidado 429 41,3% 34,4% 0,001
Cuida sozinho 811 58,7% 68,6%
Sentimento de sobrecarga
Não sobrecarregado 581 54,1% 43,5% <0,001
Pouco sobrecarregado 104 9,8% 7,7%
Mais ou menos sobrecarregado 224 17,3% 18,5%
Muito sobrecarregado 329 18,8% 30,3%
Avaliação da qualidade de vida
Boa 907 78,4% 71,1% 0,007
Ruim 328 21,6% 28,9%
Relação com a família
Satisfeito 981 84,0% 76,8% 0,003
Mais ou menos satisfeito 148 10,8% 12,5%
Insatisfeito 111 5,2% 10,8%
Transtornos psiquiátricos menores
Rastreio negativo 384 62% 49% <0,001
Rastreio positivo 780 38% 51%

Entre homens e mulheres, a faixa etária mais prevalente foi aquela cujos indivíduos possuíam de 41 a 50 anos (40,3% e 49,3%, respectivamente). No entanto, houve uma prevalência significativamente maior de indivíduos com 61 anos de idade ou mais do sexo masculino (36%) em comparação ao sexo feminino (24,2%).

A maior prevalência de indivíduos que possuíam companheiro entre homens foi de 73,7%, enquanto entre as mulheres foi de 54,8% (p < 0,001).

Quanto ao vínculo com o indivíduo do qual são cuidadores/as, foi evidenciado que, entre as mulheres, a maior parte (39,5%) era mãe. Já entre os homens, 22,2% referiram ser pai do indivíduo de que cuidavam, porém o vínculo mais prevalente foi o de cônjuge (44,5%). Houve ainda uma diferença significativa entre os sexos quanto àqueles que referiram ser irmãos do indivíduo cuidado: entre os homens, foi de 9,5%, enquanto, entre as mulheres, foi de 19,2%.

Em relação à renda, os resultados do estudo apontam para diferenças estatísticas (p = 0,000) entre a renda familiar de cuidadores/as do sexo masculino e do sexo feminino. Embora a distribuição de ambos os sexos se concentrem majoritariamente entre os estratos de menor renda, há maior presença de mulheres nos dois estratos de menor renda.

Para ambos os sexos, houve maior prevalência de indivíduos sem trabalho remunerado em relação àqueles que possuíam algum vínculo trabalhista. No entanto, as questões de trabalho também estiveram marcadas por diferenças entre os sexos: 46,5% dos homens possuíam trabalho, enquanto 36% das mulheres afirmaram trabalhar, havendo diferença estatística significante (p < 0,001).

Problemas de saúde foram mais prevalentes em mulheres, com 58%, enquanto, nos homens, essa prevalência foi de 44,8% (p < 0,001).

Em ambos os sexos, a maior parte dos entrevistados referiu ser o único cuidador do usuário do CAPS. No entanto, houve diferença estatística significante quanto à divisão do cuidado entre os sexos (p = 0,001): 58,7% dos homens afirmaram ser o único cuidador, ao passo que, entre as mulheres, essa prevalência foi de 68,6%.

Sentimento de sobrecarga foi evidenciado em maior intensidade entre as mulheres que compuseram a amostra, com 30,3%, do que entre os homens, com 18,8%. Já a maior prevalência de indivíduos não sobrecarregados foi maior entre os homens, com 54,1%, do que entre as mulheres, com 43,5%.

Quanto à avaliação da qualidade de vida, em ambos os sexos, a maior parte da amostra fez uma avaliação positiva. No entanto, 28,9% das mulheres avaliaram negativamente sua qualidade de vida, contra 21,6% dos homens (p = 0,007).

No que se refere à satisfação com as relações familiares, embora, em ambos os sexos, os indivíduos satisfeitos tenham sido maioria, o estudo evidenciou maior nível de insatisfação do sexo feminino (10,8%), em comparação com o sexo masculino (5,2%).

O rastreio de transtornos psiquiátricos menores foi maior em mulheres (51%) em relação aos homens (38%). A diferença de prevalências entre os sexos apresentou significância estatística, evidenciando-se um p-valor < 0,001.

DISCUSSÃO

Este estudo buscou identificar como o gênero tem marcado as práticas de cuidado desempenhadas pelas famílias no âmbito do cuidado informal em saúde mental, bem como discutir as diferenças apresentadas entre homens e mulheres nesse cenário.

Nessa perspectiva, cabe pontuar que a caracterização da população estudada pode ser entendida como ponto inicial para discussão, mostrando que, no âmbito dos familiares, a atenção em saúde mental tem uma marca importante de gênero. Assim como em outros estudos conduzidos com cuidadores familiares em saúde mental 1,9,10 , as mulheres corresponderam à maior parte da amostra.

O cuidado exercido majoritariamente pelas mulheres, na perspectiva de gênero, reflete valores morais e culturais que as interpelam cotidianamente. Associado a algo que seria da natureza das mulheres, o exercício dos cuidados vem sendo construído socialmente como tarefa delas 11 . Outro ponto que reforça essa perspectiva é a maior prevalência de mulheres como únicas cuidadoras de seus assistidos.

Esses dados vão ao encontro das discussões quanto à divisão sexual do trabalho, conforme apontado por Okin 12 . Para a autora, persiste uma ideia de divisão entre o trabalho público e o privado, sendo esse último fortemente desvalorizado e atribuído, principalmente, às mulheres.

Cabe destacar que uma limitação deste estudo é não contar com a informação do tempo de cuidado diário provido pelos cuidadores/as acessados/as. No entanto, estudos anteriores apontaram que, no âmbito da divisão do cuidado, as mulheres proviam cuidado diário em tempo aproximadamente duas vezes maior e cuidavam há um período quase três vezes maior que os homens 13 .

A perspectiva de que o gênero dos/as cuidadores/as permeia a definição das relações de cuidado dentro dos grupos familiares é tensionada pelas diferenças entre os sexos quanto ao tipo de parentesco com o indivíduo cuidado. Entre as mulheres acessadas neste estudo, boa parte eram mães, enquanto, entre os homens, a parcela mais expressiva foi de cônjuges.

Segundo Badinter 14 , sendo a maternagem uma construção social, histórica e não natural, pode ser exercida por homens e mulheres, ainda que estas assumam essa tarefa quase que exclusivamente nas sociedades ocidentais. A autora alega que apenas a maternidade, ou seja, o ato de parir, seria exclusivo das mulheres. Entretanto, não são apenas as mães que desempenham a tarefa do cuidado. Entre as/os irmãs/irmãos, tal como mostram os dados, as mulheres também prevaleceram.

A naturalização e a repetição dessa tarefa entre as mulheres decorrem do que Butler 15 argumentou sobre o gênero como uma performance, ou seja, uma repetição estilizada de atos que acaba por ser reconhecida como natural e mesmo substancial.

É importante pontuar que essa naturalização se reflete também na idade com que ambos exercem o cuidado. As mulheres, ao assumirem o cuidado do familiar, ou o tratam como mais uma tarefa cotidiana, ou abrem mão do trabalho formal. Tal como mostram os dados, ainda que a faixa etária prevalente entre homens e mulheres tenha sido a mesma, a prevalência entre os homens com mais de 61 anos foi maior do que entre as mulheres.

Tal como argumenta Okin 12 (p. 307) sobre a divisão trabalho por sexos:

Os homens são vistos como, sobretudo, ligados às ocupações da esfera da vida econômica e política e responsáveis por elas, enquanto as mulheres seriam responsáveis pelas ocupações da esfera privada da domesticidade e reprodução.

Corrobora, nesse sentido, o resultado que demonstra que a maior parte dos/das cuidadores/as não possuía trabalho remunerado. Contudo, quando o possuíam, a maior prevalência era entre os homens, sugerindo novamente a clássica divisão entre público/homens e privado/mulheres.

Quanto às repercussões do exercício do cuidado, é importante pontuar que este estudo encontrou maior prevalência de sobrecarga entre as mulheres, especialmente entre os indivíduos que se referiam muito sobrecarregados. Essa perspectiva vai ao encontro dos resultados prévios da literatura 9 e reforça a ideia de que as perspectivas de gênero, em especial quanto à divisão do cuidado, têm impactado na vida dos/as cuidadores/as informais em saúde mental.

Entre as repercussões da atividade de cuidado, as mulheres apresentaram ainda de forma mais prevalente uma pior avaliação de sua qualidade de vida. Esse dado vai ao encontro dos achados de Larrañaga et al. 16 , que, em seu estudo, encontraram maiores chances de pior avaliação na qualidade de vida entre mulheres cuidadoras em saúde mental quando comparadas aos homens na mesma condição.

Destaca-se ainda a alta prevalência de transtornos psiquiátricos menores entre as mulheres estudadas, sendo esta significativamente superior àquela encontrada entre os homens. Essa perspectiva diz respeito a um importante processo de adoecimento dessas mulheres e vai ao encontro dos resultados de Santos 17 . A autora pontua que os múltiplos papéis desempenhados pela mulher na sociedade contribuem para um aumento significativo da incidência de transtornos mentais e comportamentais, uma vez que elas continuam com o fardo da responsabilidade que vem associado com os papéis de esposas, mães, educadoras e, por fim, cuidadoras.

Por se tratar de um estudo transversal, é importante levar em conta alguns aspectos, como causalidade reversa; contudo, em geral, a manifestação de transtornos psiquiátricos menores e de problemas de saúde em geral é sugerido como repercussão das atividades do cuidado 18 . Nesse sentido, esses aspectos configurariam repercussões com as quais os indivíduos do sexo feminino incluídos no estudo apresentaram maiores prevalências.

De forma geral, pode-se apontar que todos os resultados tiveram maior prevalência entre as mulheres. Portanto, aponta-se que a discussão das questões de gênero no âmbito do cuidado informal em saúde mental necessita ser amplamente divulgada, especialmente se levar em conta que, assim como argumentam Vilella et al. (2010) 4 , há muito tempo estudos têm apontado para a emergência de problemas de saúde entre as mulheres, decorrentes das desigualdades de gênero.

A limitada incorporação do gênero como um marcador social importante para a saúde tem impactado a saúde das mulheres, as quais têm suas questões geralmente associadas aos seus direitos reprodutivos e à noção de seu ciclo vital, definido pelas diversas fases de seu ciclo biológico, como gravidez, parto, pós-parto e menopausa 19 .

No campo do cuidado familiar em saúde mental, os estudos que consideram as questões relativas ao gênero como categoria de análise em geral estão relacionados ao cuidado de usuários de CAPS infantojuvenis, ou seja, crianças e adolescentes. Nesse sentido, destacam-se estudos de Bustamante e Trad 20 e Muylaert et al. 21 . Embora esses estudos trabalhem com uma população diferente da abordada neste artigo, existem pontos importantes de aproximação entre seus resultados, especialmente no que se refere à indicação de uma hegemonia da tradicional noção do feminino como lugar do cuidado.

Nesse sentido, cabe reforçar a necessidade de levar em conta as repercussões que a invisibilidade do gênero no âmbito da política pública de saúde mental tem na vida das mulheres, uma vez que elas, enquanto cuidadoras, demandam cuidados que, não raro, são construídos a partir de uma interpretação biologizante e psiquiatrizante 22,23 , devido à desconsideração das desigualdades e assimetrias de gênero presentes no contexto em que vivem.

Dessa forma, sugere-se que as práticas de cuidado compartilhadas por familiares com os serviços de saúde mental devam considerar o gênero como um marcador importante, já que, tal como apresentado, além de interferir significativamente na provisão dos cuidados dispensados pelas famílias a seus familiares, também apresenta impactos na demanda por cuidado por parte dos familiares.

Os resultados deste estudo apontam que há diferenças importantes entre homens e mulheres cuidadores/as em saúde mental, em especial no que diz respeito às repercussões do cuidado na vida dessas pessoas, tais como: sentimento de sobrecarga, avaliação ruim da qualidade de vida, insatisfação com as relações familiares e rastreio positivo para transtornos psiquiátricos menores – todos de forma mais prevalente entre as mulheres estudadas.

Considerando que parte dessas repercussões pode ter relação direta com a naturalização de construtos sociais relacionados ao gênero dos indivíduos, a limitada incorporação desse aspecto nas discussões em saúde, assim como demonstrado neste estudo, pode contribuir para um pior prognóstico de saúde física e mental, em especial das mulheres que assumem a função do cuidado.

Nesse sentido, sugere-se que os serviços de saúde mental adotem práticas que favoreçam cada vez mais a desconstrução da naturalização do papel de cuidador/a como atribuição preferencialmente feminina, por meio da inclusão de todos os membros da rede afetiva dos usuários nos projetos terapêuticos desenvolvidos.

Além desse aspecto, sugere-se ainda que a discussão de gênero seja levada em conta na abordagem das demandas de cuidadores/as, vivenciando repercussões do cuidado, a fim de que se levem em conta as assimetrias de gênero, rompendo, assim, com práticas biologizantes e psiquiatrizantes.

REFERÊNCIAS

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