versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.6 Rio de Janeiro jun. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018236.04872018
Gênero é definido como elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e é o primeiro campo no qual o poder se articula1. Desse modo, relaciona-se à maneira como as sociedades lidam com a percepção dos corpos humanos e com as consequências disso; constituindo-se em arranjos que são mutáveis frente às novas situações criadas pelas práticas humanas2.
Para Connell3, o gênero é “ao mesmo tempo criativo e violento, no qual corpos e culturas estão igualmente em jogo e são constantemente transformados, às vezes até sua destruição”. Assim, os arranjos de gênero tanto podem ser fontes de prazer, reconhecimento e identidade, como fontes de injustiça e dano4.
É comum ainda considerar gênero a partir de uma abordagem estática e categórica (feminino X masculino)3. Neste artigo, considera-se que, além de tomar gênero como categoria dinâmica, são importantes suas articulações com sexualidade e sua relação com as transgeneridades.
Nesse sentido, incluem-se na discussão questões relativas à experiência de pessoas que não se identificam com o sexo designado ao nascer (travestis, transexuais, pessoas com identidade não binária ou queer) e à diversidade de orientações sexuais (hetero, homo ou bissexual). Isso implica considerar que identidades como travesti e transexual não remetem a orientações sexuais, uma vez que pessoas trans podem ter seu desejo sexual voltado para pessoas do mesmo sexo, do outro sexo ou mesmo para outras pessoas trans5. Cisgênero é outra palavra subentendida a ser levada em conta: diferentemente de transgênero, remete a pessoas cuja identidade e expressão de gênero corresponde ao sexo atribuído ao nascimento6,7.
O feminismo e o movimento LGBTI – de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, mulheres transexuais, homens trans e pessoas intersexo – são atores fundamentais na defesa de direitos sexuais e da pluralidade das identidades de gênero. No Brasil, políticas no campo da saúde8,9 refletem aspectos desses movimentos.
A partir do formato de ensaio, objetiva-se problematizar aspectos relacionados a gênero e direitos sexuais, bem como suas implicações no campo da saúde, de modo a oferecer contribuições inovadoras ao tema10.
A escravização, violação e morte de mulheres estiveram presentes ao longo da história da humanidade, fragilizando o direito das mulheres à vida. Nas sociedades patriarcais, a violência contra mulheres é um instrumento de controle que mantem o poder masculino11 e, embora esteja presente em todas as épocas históricas, os campos de estupros coletivos da ex-Iuguslávia12 tornaram a violência sexual uma arma de guerra.
A conquista das Américas também pode ser vista como uma historiografia branca, masculina e patriarcal, constituindo-se numa história ininterrupta de apropriação e violação de corpos femininos racializados13.
Russel e Caputti14 definem o femicídio como uma forma de terrorismo sexual ou genocídio, ampliando o conceito para além das mortes cometidas por parceiros íntimos e mostrando que há mortes de mulheres relacionadas ao fato de serem mulheres, mas que não eram percebidas como tal.
Os feminicídios possuem determinantes generificados, racializados e sociais. As frequências são maiores em locais onde as normas societárias são rompidas por conflitos bélicos e em territórios dominados pelo tráfico15,16, embora também ocorram em locais onde normas de honra são tão rígidas, que uma mulher que as tenha infringido pode pagar com a vida.
Para o sistema patriarcal, as mulheres são, em último caso, propriedade dos homens17. Isso não significa que todos os homens se comportem da mesma maneira, nem que o risco seja igual para todas. As mulheres mais vulneráveis são as migrantes de países periféricos, as que por razões étnicas, culturais ou raciais são consideradas inferiores, as que desempenham ocupações estigmatizadas como as prostitutas e as que estão vivendo em territórios ocupados pelo tráfico e por grupos paramilitares. Ver os feminicídios como decorrentes da organização hierárquica da sociedade é importante para não revitimizar a mulher que morreu, atribuindo-lhe a culpa de sua própria morte.
Em torno de um terço dos assassinatos de mulheres é cometido por parceiro íntimo, enquanto 5% de mortes de homens são causadas por mulheres, a maioria em autodefesa18, 60% a 70% dos homicídios de mulheres correspondem a feminicídios19,20.
No início dos anos 2000, havia 25 países com taxas de mortalidade feminina por homicídios muito altas (> 6/100.000), a metade deles no Caribe, América Central e do Sul, situação que se manteve similar nos anos posteriores21.
No Brasil, as mortes femininas por agressão no período de 1980-2013 passaram de 2,3/100.000 para 4,8/100.000, representando um aumento de mais de 100% no período22. As frequências são maiores em regiões onde há elevada mortalidade masculina por agressão, mostrando que locais violentos para os homens também o são para as mulheres16,23.
Nos anos 2000, vários países latino-americanos elaboraram leis específicas em relação aos homicídios de mulheres e no Brasil, em 2015, o feminicídio é tema de lei sancionada, que passa a considerar a questão de gênero como circunstância qualificadora24. A vigência da lei é muito recente para ser avaliada, porém a banalização dos crimes de gênero aponta para a necessidade de monitorar a sua aplicação, para que haja ações mais eficientes para a prevenção e a punição destes crimes25.
Sistemas judiciários classistas e refratários à questão de gênero fazem com que o fato de haver leis não implica necessariamente no seu cumprimento13. No Brasil, o sistema judiciário mostra-se recalcitrante atribuindo dificuldade para classificação dos feminicídios, embora se saiba que a “igualdade de todos perante a lei”23 é um mito e as mulheres, principalmente pobres e negras, não são tratadas com equidade, de modo que muitos feminicídios não são sequer investigados20 e ainda há julgamento moral e revitimização das vítimas nos discursos jurídicos, ao se justificar o crime passional, disfarçado em “estado de violenta emoção”.
Em termos teórico-conceituais para entender este fenômeno, destacam-se os conceitos de necropolítica26, fascismo social27 e femi-genocídio13. A necropolítica determina uma política de apartheid, segmentando os grupos e os confinando em territórios onde a vida não tem valor e, por isso, é matável26.
No Brasil, desde os anos 1990, tem se denunciado o estado de exceção vigente em territórios onde a população negra tem sido dizimada por homicídios. Essas mortes ocorrem pelos conflitos provocados por grupos mafiosos, mas também pela ação policial28 e a necropolítica que incide na população masculina vem atingindo também as mulheres que habitam estes territórios de exceção. Porém, em relação às vidas sem valor dessas mulheres racializadas, pobres, migrantes, exercendo ocupações estigmatizadas e vivendo em regiões de apartheid, ainda pouco se fala.
Nos países onde se implantaram políticas neoliberais, que tiveram como consequência autoritarismo, corrupção, negócios ilícitos e impunidade, houve aumento de feminicídios. Na América Central e fronteira norte do México, o neoliberalismo criou condições estruturais para descartar as mulheres, que não mais necessárias nem como exército de reserva, nem com fins reprodutivos. O neoliberalismo estimula a emergência de uma “masculinidade tóxica”, em que as mulheres constituem propriedade, objetos de prazer ou mercadorias27.
Os femi-genocídios, constituem uma mensagem à sociedade para manter o sistema de sujeição/exploração das mulheres, expressando o mandato de masculinidade. O retrocesso conservador e fundamentalista proporcionado pelo capitalismo racista atua sobre os corpos das mulheres e elimina-as, de maneira que todo o feminicídio é político.
Sociedades mais igualitárias em termos socioeconômicos, raciais e de gênero apresentam menores níveis de violência, indicando que um dos caminhos a seguir é a luta para diminuir as desigualdades. Mulheres organizadas têm obtido vitórias, pequenas algumas, mas indubitáveis, não se devendo abdicar da militância feminista e da construção de redes de solidariedade29.
Para fazer frente a estes crimes é preciso nomear, categorizar e denunciar estas mortes30, incluindo o direito de formular o discurso jurídico. Enfim, Segato13 propõe que os feminicídios que acontecem no âmbito público constituem situações de lesa humanidade ou femi-genocídios. O uso desta categoria permitirá torná-los imprescritíveis e levados a Tribunais Internacionais de Direitos Humanos, onde [talvez] se possa, ao menos, fazer justiça.
Um dos modos pelos quais hierarquias e normatividades relativas a gênero se articulam a questões de saúde deriva da tomada das diferenças anatômicas entre homens e mulheres, sobretudo os genitais, como base para um dimorfismo sexual marcado por incomensurabilidade31, que se articula à sexualidade, de modo a exigir coerência e continuidade entre sexo, gênero e desejo32. Tais constructos culturais, imbricados ao próprio processo de constituição da Modernidade ocidental, podem determinar condições de saúde, relegam sujeitos e populações marcados por variações de gênero e sexualidade a um lugar de ininteligibilidade, não reconhecendo seu status de humanos33.
A literatura tem registrado violência interpessoal, discriminação e seus efeitos em disparidades na saúde, com maior incidência de agravos - sobretudo aqueles mais sensíveis à vulnerabilidade social e individual, como questões de saúde mental e ligadas ao HIV e Aids; dificuldades no acesso a serviços e cuidados; vulnerabilidade programática e inadequação de serviços; e, no limite, o frágil reconhecimento desses sujeitos e populações como sujeitos de direitos33-38.
A produção científica brasileira sobre saúde e LGBTI focaliza em sua maior parte o HIV e Aids, único tema sobre o qual há produção sistemática e regular de dados epidemiológicos, seguido pelo tema da violência, que aparece articulado à vulnerabilidade individual e social para a infecção pelo HIV, mas também para outros agravos, incluindo depressão, ideação e tentativas de suicídio, abuso de substâncias e dificuldades de acesso a cuidados e serviços de saúde39-48. Apesar de importantes esforços de pesquisa que acompanharam e possibilitaram a construção de políticas públicas de combate à violência contra LGBT, não há produção e divulgação sistemática e regular de dados sobre discriminação e agressões contra LGBTI.
A própria criação da categoria “homossexual” e sua identificação como uma “condição” constituiu-se historicamente como reação em contextos de criminalização de relações sexuais entre pessoas “do mesmo sexo”44. Ao longo da segunda metade do século XX, dois processos se desenvolveram paralelamente: a separação entre o que se chamou de “identidade de gênero” e homossexualidade e, posteriormente, a despatologização da homossexualidade45.
A homossexualidade deixou de ser considerada transtorno mental em 1973, quando foi retirada do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM) pela Associação Americana de Psiquiatria. No entanto, continuou na lista de doenças mentais até 17 de maio de 1990, quando a 43ª Assembleia Mundial da Saúde decidiu por sua retirada da 10ª versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Essa versão, porém, ainda conserva categorias que articulam homossexualidade e distúrbios mentais45,46. Frente a isso, há uma recomendação de eliminação de qualquer vínculo entre orientação sexual e doença para a edição 11a da CID a ser publicada46.
No Brasil dos anos 1970, as primeiras ações do nascente movimento homossexual incluíram a mobilização de ampla campanha em favor da revisão da classificação da homossexualidade como condição patológica. O Conselho Federal de Medicina emite parecer em 1985 considerando que a homossexualidade per se não constitui condição patológica47. Demandas por legislação antidiscriminatória, reconhecimento de uniões homoafetivas, políticas de segurança pública e educação integram a agenda do movimento brasileiro desde seu surgimento48.
A inserção de LGBT na agenda política se dá a partir dos anos 1990, por meio de ações focalizadas de prevenção ao HIV e Aids e da inclusão da categoria “homossexual” no I Plano Nacional de Direitos Humanos (1996). Os anos 2000 representam o ápice desse processo de reconhecimento, tendo como marcos: a criação do programa Brasil sem Homofobia (2004), a realização da I Conferência LGBT (2008), a adoção de regulações voltadas a combater a discriminação e a assegurar o uso civil do “nome social” por pessoas trans e o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011, da união homoafetiva estável como entidade familiar48,49. No campo das políticas públicas, destacam-se a instituição, em 2008, do Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde; e, em 2010, da Política Nacional de Saúde Integral a LGBT9-50,51.
A primeira metade da década de 2010 foi marcada pela paralisia dessa agenda no âmbito federal e pela intensificação dos investimentos na reversão de direitos. Multiplicam-se projetos de lei como o Estatuto da Família (PL 6583/13), que exclui uniões homoafetivas do rol das entidades familiares reconhecidas pelo Estado brasileiro, ou que buscam restringir a possibilidade de uso de nome social por pessoas trans.
Há, ainda, inciativas que apontam para a repatologização da homossexualidade, atacando as condições de possibilidade de tomar essas populações como sujeitos de direitos. Decisão liminar emitida em setembro de 2017, pela Justiça Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, acatou parcialmente o pedido de uma ação popular contra a Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia52, que orienta os profissionais da área a atuar nas questões relativas à orientação sexual. A demanda se ampara em um dos resíduos patologizantes mantidos na CID-1045,47 – a noção de “orientação sexual egodistônica” – e a decisão judicial possibilita que terapias de reversão sexual voltem a ser utilizadas de modo legítimo no Brasil.
Tal cenário remete a reflexões críticas tecidas na passagem para os anos 2010, acerca das dificuldades de converter políticas públicas em legislação53 e do escopo efetivamente alcançado pelas políticas direcionadas a LGBT, vistas como fragmentárias, pontuais e periféricas49. Esses avanços, ancorados num contexto de reconhecimento de direitos sexuais e reprodutivos e de combate à intolerância no âmbito das Nações Unidas54, fragilizam-se sensivelmente ao sabor dos processos transnacionais de politização reativa das moralidades e do campo religioso55,56. No Brasil, bem como em vários países, tais processos, caracterizados como uma “onda conservadora”, constituem-se a partir de linhas de força que articulam manifestações de intolerância social, celebração da meritocracia e do empreendedorismo, imposição de restrição à atuação estatal e demandam por políticas de segurança mais punitivas e repressivas57.
Os efeitos de tal conjuntura política já se fazem sentir na epidemia de HIV e Aids, com o crescimento das taxas de incidência, fortemente concentradas em segmentos sociais específicos e das, já elevadas, taxas de mortalidade. Atualmente, a prevalência de HIV entre HSH – homens que fazem sexo com homens – é de 19,8% com 25 anos ou mais de idade e registra-se incremento de 32,9% na proporção de casos de Aids entre homossexuais e bissexuais na última década58. Pesquisa com travestis e mulheres transexuais no Rio de Janeiro indica 31,2% de prevalência para o HIV38.
Como único aspecto da saúde de LGBTI monitorado sistematicamente ao longo do tempo no Brasil, os dados sobre o HIV e Aids alertam sobre a piora e a gravidade das condições de saúde de LGBTI. Indicam, ainda, a urgência de reafirmar a relação necessária entre a promoção da saúde e a proteção/promoção dos direitos humanos e dos direitos fundamentais dessas populações.
Forjado no contexto de formalização dos procedimentos de modificação corporal do sexo em pessoas trans e intersex, a separação conceitual entre sexo e gênero materializada pela noção de identidade de gênero foi essencial para a incorporação das necessidades em saúde de travestis e transexuais. Amplamente utilizado, este conceito, que está atrelado à reconceitualização do sexo alcançada no século XX e à viabilidade técnica para realizar modificações corporais do sexo em pessoas trans, se tornou a principal referência para o acesso a este tipo de cuidado e contribuiu para a definição das vivências trans, em especial a transexualidade, como categoria psiquiátrica59.
A noção de gênero como um componente diferenciado do sexo biológico, modelado pela educação, fixado nos primeiros anos, irreversível e prevalente em relação às características físicas na maturidade sexual60, foi introduzida na década de 50 quando pesquisadores investigaram as relações entre a identidade nuclear de um indivíduo, sua anatomia, seus cromossomos e seus hormônios. Nesse sentido, recomendaram que em bebês intersex o sexo deveria ser definido a partir de marcadores biológicos, e em crianças maiores e adultos a referência seria o gênero manifestado42,61.
Em 1964, Stoller62 apresentou o termo “identidade de gênero” para se referir ao sentimento de pertencimento a um determinado sexo. Baseado na vivência de pessoas trans, considerou que, ao dissociar a percepção de si de atividades e fantasias sexuais, este termo significaria melhor a sensação de pertencimento a um determinado sexo do que a ideia de “papel de gênero” introduzida por Money e seus colaboradores63.
Diante disso, o discurso médico reconfigurou-se balizando intervenções sobre os corpos não normativos e a organização de serviços. A conceituação da identidade de gênero e seu caráter imutável tornou-se referência para protocolos médicos para a gestão da intersexualidade e outras condições de discordância entre identidade de gênero e anatomia, como a transexualidade62, sendo este o sinal clínico para a modificação corporal do sexo e critério de acesso à assistência60 a ser verificado a partir de um processo de avaliação psicológica64.
Embora a diretriz clínica internacional atual seja mais flexível, despatologizada65, tente escapar ao binarismo de gênero e considere a multiplicidade de trajetórias e necessidades de pessoas trans, o acesso à modificação corporal do sexo segue ainda um modelo avaliativo e psiquiatrizado que compreende pessoas trans como portadoras de Disforia de Gênero. No Brasil, igualmente e a despeito do posicionamento do Conselho Federal de Psicologia através da Resolução 01/201866, a assistência é patologizada e centrada no diagnóstico de Transtorno de Identidade Sexual com destaque ao exame da identidade de gênero auto atribuída o que denota um propósito de regulação das identidades e de normalização dos corpos trans.
Se por um lado a constituição do conceito de identidade de gênero foi fundamental para o reconhecimento das vivências trans e acolhimento de suas demandas, por outro nota-se que, atravessado pela matriz cisheteronormativa, o mesmo reitera a normatividade que pressupõe uma coerência entre sexo e gênero que patologiza as identidades e corpos fora da norma como naturaliza as vivências cis e binárias. Ao mesmo tempo em que visibiliza as especificidades de pessoas trans, paradoxalmente, naturaliza o modelo cisgênero e binário dos sexos no sistema de saúde, o que além de limitar e/ou excluir sujeitos trans, agencia a interpretação destas vivências como uma identidade de gênero em si mesma e que, por estarem fora da norma, precisam ser nomeadas.
Um exemplo disso é a sobreposição entre a noção de identidade de gênero e as vivências trans denotada pela preocupação em averiguar a “verdadeira” identidade de gênero destes sujeitos e pela ideia de que este é um atributo exclusivo de pessoas trans. A ideia de que vivências cisgêneras são normais e inquestionáveis e não resultado da sujeição às regulações do gênero e da repetição reiterativa das normas67, conduz a compreensão de que a atribuição de gênero e construção identitária são uma particularidade daqueles que estão fora da norma.
Tal fato pode ser observado claramente no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) por Violência Interpessoal ou Autoprovocada cuja ficha de notificação/investigação e instrutivo revelam uma naturalização da cisgeneridade e a intepretação das vivências trans como sinônimo da identidade de gênero. Além de no campo “sexo” não haver qualquer esclarecimento se este item se refere ao sexo biológico ou do registo civil, há uma recomendação do instrutivoViva68 que, no caso de pessoas trans, deve ser preenchido o campo “identidade de gênero” que, com as opções “travesti”, “mulher transexual”, “homem transexual”, “não se aplica” e “ignorado”, revela a interpretação das vivências trans propriamente como identidades de gênero que por estarem fora da norma precisam ser formalmente identificadas.
Há também a questão da compreensão da identidade de gênero como determinante social da saúde. Ainda que o entendimento de que este componente interfere nas condições de saúde daqueles que apresentam identidades não normativas seja extremamente positivo, isto revela a insuficiência do sistema de saúde que, cisnormativo e binário, exclui e impõe limites às pessoas trans no exercício desse direito, a despeito de alguns esforços do poder público em enfrentar sua vulnerabilidade, como o reconhecimento do uso do nome social e formalização do processo Trans-sexualizador no SUS. Seja pela invisibilização de outras necessidades que não a modificação corporal, seja pela impossibilidade concreta ou burocrática de acessar serviços, potencializadas pela transfobia, o fato é que o CIStema de saúde frequentemente viola direitos e negligencia os não-cisgêneros.
Nesse panorama, destaca-se o acolhimento de pessoas trans em contextos não relacionados às modificações corporais do sexo. Em consequência da lógica binária e cisgênera que orienta o sistema de saúde, além de frequentemente terem violados seus direitos ao sigilo, privacidade e direito ao uso do nome social, assegurados na Carta dos Usuários do SUS (2007), muitas vezes são efetivamente impedidos de acessar serviços e procedimentos por questões burocráticas e operacionais de um CIStema que não prevê atendimento para identidades e corpos não normativos e suas necessidades em saúde.
No contexto hospitalar, por exemplo, há casos de alocação de pessoas trans em salas de emergência e enfermarias em desacordo com sua identidade de gênero fora do Processo Transsexualizador. Frequentemente é negado a quem não fez requalificação civil a alocação em setores compatíveis com sua identidade de gênero, o que além de ser uma violência por não reconhecer a autodeterminação do gênero viola o direito à privacidade e ao sigilo.
Fora do contexto hospitalar, destaca-se a limitação ou impossibilidade de oferta de linhas de cuidado vinculadas ao gênero para pessoas trans, como é o caso da assistência ginecológica e obstétrica e ao acesso ao aborto legal. O fato desse tipo de assistência ser generificado e exclusivo para usuárias do gênero feminino, inviabiliza a atenção a homens trans em decorrência da não conformidade entre sexo e gênero vivenciada por eles. Assim, se para aqueles que não realizaram requalificação civil o reconhecimento de sua identidade de gênero paradoxalmente pode invisibilizar a necessidade dessas modalidades de atenção, para os que passaram por esse processo isto é um problema burocrático dado que no Brasil a oferta desses cuidados não está prevista para pessoas designadas com o gênero masculino.
Assim, apesar da relevância do conceito de identidade de gênero, a utilização acrítica do caráter reiterativo da normatividade cisgênera e binária desta noção pode reforçar a vulnerabilidade em saúde de pessoas trans e o negligenciamento destes e de outros sujeitos cujos corpos e identidades estão fora da norma. Apesar de sua importância é fundamental problematizá-lo para que seja possível efetivamente colocar em prática o exercício do direito a pluralidade de gênero fora das amarras do CIStema.
Para além de se abordar questões de saúde de populações específicas – mulheres e LGBTI – neste artigo evidenciaram-se construtos culturais que estão na base das sociedades ocidentais modernas e que conformam gênero como relação social de poder. Assim, a leitura dos corpos de homens e de mulheres a partir de um dimorfismo sexual incomensurável aparece articulada à desvalorização social das mulheres; separação entre sexo e gênero que mantém o sexo como referência esperada para a expressão e a identidade de gênero; expectativa de continuidade entre sexo, gênero e desejo.
Nos 30 anos de existência do SUS, não se pode desconsiderar, de um lado, avanços no campo político, muitos deles criados por conta de movimentos sociais de defesa de direitos humanos, e, de outro, iniciativas que procuram enfrentar o feminicídio e a não assistência adequada às pessoas que não são cisgêneras. Mas ainda há muito a fazer para a garantia dos direitos à saúde e à vida de mulheres e de pessoas LGBTI, entendendo-as como sujeitos dotados plenamente de humanidade e de exercício de direitos.
Por fim, reafirma-se, com base na literatura especializada, que gênero e sexualidade se constituem como determinantes sociais da saúde, articulando-se a outros determinantes, como questões raciais ou socioeconômicas. Como decorrência disso, é reforçado o pleno reconhecimento e promoção/garantia dos direitos humanos e fundamentais de mulheres e de LGBTI como condição necessária para o alcance de melhores condições de vida e de saúde para essas populações, sobretudo nos contextos políticos nacionais e internacional nos quais tais direitos estão particularmente afetados.