versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.9 Rio de Janeiro set. 2019 Epub 09-Set-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018249.23952017
As normas sociais são a base de elementos fundamentais para a vida humana como a cultura, a linguagem, a interação social, o controle econômico, os papéis masculinos e femininos, dentre outros. Sendo comuns a todos os primatas, a imitação e a aprendizagem social, que são princípios normativos, são especialmente desenvolvidos em humanos nos quais as estruturas cerebrais suportam a consciência do outro1,2.
Como os demais primatas, os humanos prestam atenção aos indivíduos que o circundam e imitam o que veem. Contudo, o conhecimento das ações dos outros e sua imitação não são suficientes para implicar normas sociais. O que cria a base para a cultura e a sociedade não é a imitação mas a expectativa de outros para quando a imitação é apropriada e para quando não é. Uma norma social é uma expectativa sobre o comportamento apropriado que ocorre em um contexto de grupo2.
Desse modo, as normas não só vão especificar comportamentos apropriados, mas as expectativas concernentes a ele, que por sua vez, vão definir o que determinado grupo é ou faz. Seu estudo se torna importante pois as normas de grupo, e a consequente conformidade ou não a elas, vão ser fonte de construção de identidades sociais. O desvio de normas sociais, em primeiro momento, comunicam a formação da conformidade e quando as expectativas sociais não são atendidas e se a norma social é importante esse desvio pode levar à perda de status ou exclusão2.
Várias teorias da psicologia tentam explicar o desenvolvimento dos papéis normativos masculinos e femininos e a influência desse no comportamento dos indivíduos3. Por esse motivo, vão surgir diversas escalas e inventários que objetivam mensurar a feminilidade e a masculinidade4,5.
Dentre essas escalas que buscam mensurar a masculinidade está o Inventário de Conformidade com Normas Masculinas - CMNI4, e suas versões abreviadas, o CMNI-46 e CMNI-296,7, que estão sendo considerados na literatura abordagens proeminentes e atuais com fortes propriedades psicométricas e evidência de validade de construto8-11.
Sabe-se que as normas sociais de papéis de gênero orientam e restringem comportamentos, apresentam um caráter descritivo e de proscrição e declaram o que é impróprio a cada indivíduo em determinado contexto5,8,9,12. A perspectiva normativa de gênero tem ocorrido com maior frequência nos estudos acadêmicos14, e tem sido encontradas evidências de seu papel mediador em comportamentos, relacionados à saúde, estilos de personalidade e consumo de substâncias, como maconha e álcool8,11,13,14.
Especificamente em relação ao álcool existe vínculo entre o endosso de algumas normas masculinas, como ser agressivo, vigoroso, ter maior controle emocional e o consumo de bebidas pelos homens13-15. De fato, a experiência com a bebida alcoólica é considerada um meio de aprender códigos de conduta masculinos culturalmente e socialmente aceitos10,16,17.
Assim com o interesse de introduzir uma abordagem normativa de gênero nas experiências de consumo de álcool de jovens, o objetivo desse artigo foi validar para a realidade brasileira um modelo de mensuração multidimensional de conformidade com as normas masculinas, Inventário de Conformidade com Normas Masculinas- Conformity to Masculine Norms Inventory - CMNI-296. Além disso, buscou-se indícios de sua aplicabilidade a fatores específicos do comportamento de consumo de bebidas alcoólicas de uma população universitária do sexo masculino.
Compartilha-se da compreensão de que a masculinidade é composta por características de fluidez e estabilidade, e que o inventário pode fornecer medidas psicométricas importantes, mas não únicas, de um comportamento18. Esse aspecto pode ser um ponto central para direcionamentos relativos a políticas públicas de saúde.
O CMNI foi desenvolvido em 2003 para mensurar a extensão em que os homens estão em conformidade com os pensamentos, ações e sentimentos que representam as normas da cultura dominante na sociedade dos EUA4. Cabe destacar que, mesmo que as características normativas masculinas e femininas possam variar conforme eras históricas, instituições sociais ou grupos de indivíduos, vão existir em todas as sociedades modelos idealizados dominantes, isto é, uma forma mais aceita de ser homem e ser mulher19. Sendo assim, o instrumento não busca mensurar o quanto um indivíduo é ou não masculino, mas até que ponto ele endossa ou não as normas dominantes da sociedade referentes a masculinidade.
Para a construção do inventário, Mahalik et al.4) basearam-se em revisões da literatura para estabelecer as normas dominantes da cultura estadunidense. Posteriormente, realizaram grupos de foco com mestres e doutores em psicologia para discutir a aplicabilidade das normas identificadas, refinar as categorias e construir itens para avaliar o contínuo de conformidade.
A partir desse processo foram identificadas 12 categorias de normas, mensuradas em 93 itens. Testes pilotos foram realizados gerando uma estrutura fatorial de 11 normas categorizadas como: controle emocional (i.e. supressão de emoções), ganhar (i.e. conduzir para ganhar), playboy (i.e. ter múltiplos parceiros sexuais e preferência por relações sexuais sem apego emocional), poder sobre as mulheres (i.e. crença que os homens devem controlar as mulheres), dominância (i.e. desejo de controlar situações), primazia do trabalho (i.e. trabalho é visto como a maior parte da vida), procura de status (i.e. desejo de ser visto como importante), apresentação heterossexual (i.e. aversão a ser visto como homossexual), tomada de risco (i.e. tendência para se engajar em comportamentos de risco), violência (i.e. propensão a comportamentos violentos) e autoconfiança (i.e. autoconfiança em suas ações)4,20.
Com o intuito de testar a consistência interna das estimativas obtidas no instrumento, o mesmo foi aplicado separadamente a uma amostra de 245 mulheres, em adição aos 752 homens do primeiro estudo. Os resultados apresentaram homens e mulheres com endosso diferente de normas masculinas, com homens pontuando significativamente mais do que as mulheres, tanto em sua conformidade total como em algumas normas especificas, por exemplo, controle emocional e violência. Ademais, evidenciou-se a existência de normas masculinas específicas que são significativamente associadas com comportamentos relacionados à saúde, incluindo beber e comportamentos violentos20.
Para obter os resultados relativos a saúde e às normas masculinas, os autores realizaram uma série de testes t. Os resultados indicaram que os homens que responderam positivamente ao envolvimento em uma situação violenta obtiveram valores significativamente maiores nas normas de ganhar, tomada de risco, violência, poder sobre as mulheres, dominância, playboy, apresentação heterossexual e em sua pontuação total do CMNI. Os homens que responderam positivamente a respeito de terem bebido em grandes quantidades que esqueceram o que estavam fazendo, obtiveram pontuações significativamente maiores em tomada de risco, violência, playboy e a pontuação total de CMNI20.
Com o objetivo de avançar os estudos relacionados a normas masculinas através do CMNI, uma versão abreviada do instrumento foi desenvolvida, o CMNI-467. Essa nova versão foi a primeira análise fatorial depois da criação do CMNI e preservou as propriedades conceituais do instrumento original, mantendo sua estrutura multidimensional com menos da metade dos itens. Foram suportados nove dos onze fatores e removidos dois, dominância e procura de status, devido a baixas cargas e coeficientes de confiabilidade fracos7.
Entretanto, o CMNI assim como o CMNI-46 ainda apresentavam inconsistências em relação a populações com características diferentes, ambos foram construídos baseados em homens brancos, por esse motivo foi desenvolvido o CMNI-29. Nessa abreviação, construída com a adição de variáveis relacionadas a raça e etnia, obteve-se uma estrutura de oito fatores que demonstrou um ajuste de modelo satisfatório. Os oito fatores são: Ganhar, Playboy, Autoconfiança, Violência, Apresentação Heterossexual, Tomada de Risco, Controle Emocional e Poder sobre as Mulheres6. Apesar de ter sido utilizados baseando-se na população dos EUA, estudos recentes vem aplicando a escala em contextos culturais diferentes como Espanha, encontrando medidas satisfatórias14.
Devido aos indícios da intervenção dos papéis normativos de gênero nos comportamos dos indivíduos, estudos acadêmicos têm abordado o tema com maior frequência relacionando-o a comportamentos de saúde21. Pesquisadores têm documentado os efeitos das normativas de gênero e das desigualdades, estritamente baseadas em conceitos dominantes, sobre a saúde de homens, mulheres e crianças. As pressões normativas são apontadas como preditoras importantes de, por exemplo, comportamentos que ocasionam vulnerabilidades a consequências negativas para a saúde física e mental, a comportamentos abusivos de substâncias e comportamentos sexuais de risco22. Nos estudos desenvolvidos a partir dessa perspectiva, a conformidade dos indivíduos as normas dominantes, tanto masculinas como femininas, tem sido mensuradas através de escalas e inventários com medidas multidimensionais.
Para atender ao objetivo proposto e realizar comparações com a escala original, CMNI-29, e estudos que validaram o instrumento em contextos diferentes mas com público semelhante, homens estudantes de universidades públicas e privadas de Minas Gerais e São Paulo responderam ao CMNI -296. Esse, deveria ser respondido mediante uma escala likert de 6 pontos (1= discordo totalmente; 6= concordo totalmente). Insta salientar que a medida original era composta por uma escala likert de 4 pontos mas, no presente estudo, a escala foi aumentada para 6 pontos, mantendo-se a ausência do ponto neutro23. A opção por uma escala maior nessa pesquisa deveu-se ao fato de que assim, tem-se a possibilidade de se registrar mais detalhadamente e mais precisamente as variações das opiniões dos respondentes24,25.
O Inventário foi adaptado para a língua portuguesa por meio de uma adaptação transcultural, processo que analisa as questões de linguagem e de adaptação cultural, como recomenda a literatura26. Os passos básicos seguidos foram: 1) Tradução inicial: feita por tradutores bilíngues, a partir do idioma original, inglês, para o idioma alvo, português. Versões foram comparadas e produziu-se uma versão nova; 3) Back Translation: baseado na versão obtida na etapa anterior, o instrumento foi novamente traduzido para o inglês para verificar se a tradução refletia o mesmo conteúdo da versão original e; 3) Comitê de especialistas: a partir da versão criada na etapa anterior profissionais envolvidos na pesquisa buscaram analisar o instrumento quanto a sua equivalência semântica, idiomática, experiencial e conceitual. Como resultado desse processo, uma versão final do instrumento traduzida foi criada.
Buscando a validade estatística do CMNI-29 para o contexto em questão, procedeu-se a análise da dimensionalidade, confiabilidade interna e análises de validade convergente e descriminante27. Cabe destacar que os autores da escala CMNI-29, foram consultados quanto a estrutura prévia dos itens, bem como sobre itens com pontuação reversa.
A dimensionalidade está associada com a homogeneidade28. Utilizou-se Análise Fatorial Exploratória (AFE), através do método de componentes principais. Analisou-se também a variância explicada em que valores próximos a 60% são adotados como satisfatório, sendo 50% um mínimo sugerido27. Em relação as comunalidades, um patamar de 50% é classificado como adequado29.
Além disso, para verificar a adequação da amostra a solução fatorial foram utilizados os testes KMO e de Esfericidade de Bartlett. Salienta-se que em pesquisas exploratórias e em novas aplicações de escalas valores entre 0,6 e 0,7 para o teste KMO são aceitáveis. O teste de Barlett deve indicar significância menor do que 0,0527.
Para a confiabilidade interna utilizou-se o alfa de Crombach30. Limites entre 0,6 e 0,7 são considerados satisfatórios27.
Por fim, para a validade convergente foi utilizado a variância extraída média (AVE), valores acima de 0,5 são recomendáveis, e a Confiabilidade Composta (CC), que tem limite mínimo de aceitação de 0,727. Já para a validade discriminante utilizou-se o critério que compara a raiz quadrada da AVE de cada fator com o valor dos coeficientes de correlação entre os fatores28. Para que haja validade discriminante, as estimativas da raiz da variância extraída devem ser maiores do que as estimativas de correlações28.
Para mensurar o ajuste do modelo de medidas e estruturas, utilizou-se o índice de ajuste comparativo (CFI) e o erro quadrático médio de aproximação (RMSEA). Para o CFI valores próximos ou a partir de 0,90 indicam boa adequação do modelo e para a medida RMSEA recomenda-se valores entre 0,3 e 0,827.
Além do CMNI-29 os respondestes que ingeriam algum tipo de bebida alcoólica também tiveram acesso a algumas perguntas sobre seu consumo. As perguntas eram relativas a frequência de consumo de bebida alcoólica. Cabe destacar que, os respondentes foram questionados sobre seu consumo ou não de bebidas alcoólicas como pergunta filtro do questionário. Caso a resposta fosse afirmativa, além do CMNI-29 os respondentes eram direcionados às perguntas relacionadas ao seu consumo de álcool. Caso a resposta fosse negativa, somente o questionário CMNI-29 e perguntas relacionadas ao perfil foram respondidas.
Os questionários com as duas seções, sobre normas e sobre o consumo de álcool, foram disponibilizados através de um link no Google Docs aos estudantes por meio de redes sociais e também através de redes de e-mail. Ademais, com o intuito de atingir a adequabilidade do tamanho da amostra, dimensionada com base no número de variáveis do questionário, aproximadamente 10 vezes o número de variáveis (trinta e quatro), alguns questionários também foram aplicados presencialmente em espaços universitários como, salas de aula e refeitórios. A amostra do estudo foi assim obtida por conveniência, com base na facilidade de acesso aos universitários. Os dados foram coletados no período de Novembro a Dezembro de 2016, e obteve-se um total de 353 respostas.
Em caráter preliminar os dados foram analisados quanto a presença de outliers multivariados, através do cálculo da distância de Mahalanobis, na qual valores com significância inferior a 0,1% são considerados outliers28. Encontrou-se 12 casos, que foram excluídos da análise para melhor adequação dos dados ao modelo. Foram então analisados 341 respostas válidas.
Após tais procedimentos para obter a correlação entre cada norma masculina, validada ao contexto brasileiro, e o consumo de álcool dos homens estudados, utilizou-se testes não paramétricos, principalmente devido à presença de variáveis categóricas ou ordinais. Utilizou-se os testes de correlação de Kendall Tau e Spearman31.
Para a caracterização utilizou-se as variáveis: consumo de bebida alcoólica, idade, região de residência e raça/etnia, conforme Tabela 1.
Tabela 1 Descrição da amostra da pesquisa estratificada em: bebedores, estado de residência, idade e etnia.
Consome bebida alcoólica? | Região de residência | Idade | Etnia | Porcentagem |
---|---|---|---|---|
Não (16,42%) |
MG (92,86%) |
Até 18 anos | Branca | 9,62% |
Parda | 11,54% | |||
De 19 a 25 anos | Branca | 38,46% | ||
Negra | 5,77% | |||
Parda | 32,69% | |||
De 33 a 39 anos | Negra | 1,92% | ||
SP (7,14%) |
Até 18 anos | Branca | 25,00% | |
De 19 a 25 anos | Negra | 25,00% | ||
Parda | 50,00% | |||
Sim (83,58%) |
MG (98,60%) |
Acima de 46 anos | Parda | 0,36% |
Até 18 anos | Branca | 4,63% | ||
Parda | 2,49% | |||
De 19 a 25 anos | Amarela | 0,36% | ||
Branca | 50,89% | |||
Mulato | 0,36% | |||
Negra | 8,19% | |||
Nenhuma | 0,36% | |||
Parda | 24,20% | |||
De 26 a 32 anos | Branca | 4,27% | ||
Negra | 2,14% | |||
Parda | 1,42% | |||
De 40 a 46 anos | Parda | 0,36% | ||
SP (1,40%) |
Até 18 anos | Branca | 25,00% | |
De 19 a 25 anos | Branca | 50,00% | ||
Negra | 25,00% |
Desta forma, em relação ao consumo de bebidas alcoólicas, 83,58% dos respondentes afirmaram consumir algum tipo de bebida alcoólica, enquanto 16,42% declararam negativamente. Entre esses que não consomem, a maior parte pertencente ao estado de Minas Gerais, 92,86%, tem entre 19 e 25 anos, 76,96%, e se declara branco (38,46%), pardo (32,69%) ou negro (5,77%).
Já entre aqueles que consomem bebida alcoólica, 98,60% reside em Minas Gerais, enquanto 1,40% reside em São Paulo. Dos residentes em Minas Gerais, a maior parte tem entre 19 e 25 anos (84,36%) e se declara Branco (50,89%) ou Pardo (24,20%). Dos respondentes residentes em São Paulo 25% tem até 18 anos, seguidos de 75% com idade entre 19 e 25 anos. Se declaram, quanto à etnia Brancos (75%) e Negros (25%).
Nesta seção são apresentados os resultados referentes aos procedimentos de validade do instrumento CMNI-29 para a realidade brasileira. São expostas a análise de confiabilidade, dimensionalidade e validade convergente e discriminante.
Os resultados relativos a confiabilidade interna do instrumento, obtidos por categoria de normas, e a comparação com os resultados atingidos na escala original e na sua aplicação no contexto Espanhol estão sumarizados na Tabela 2.
Tabela 2 Confiabilidade interna.
Observa-se que todos os construtos apresentaram valores de confiabilidade dentro dos limites sugeridos pela literatura27. Alguns dos valores de confiabilidade encontrados neste estudo são superiores a aqueles obtidos no CMNI-29 original6, como no construto Apresentação Heterossexual, Assumir Riscos, Auto Confiança, Controle Emocional e Ganhar. Os demais construtos, Playboy, Poder e Violência mantiveram valores abaixo da escala original, entretanto são valores aceitáveis. Ressalta-se que valores de confiabilidade interna inferiores a escala original americana foram também encontrados em estudos semelhantes a esse, com populações universitárias, em que o instrumento foi aplicado em outros contextos culturais, como na Espanha14.
Todos os construtos foram compostos por apenas uma dimensão. Além disso, a maior parte deles apresentou variância explicada superior a 60%, exceção foi encontrada no construto Violência no qual esse valor atingiu aproximadamente 53%.
Em relação as comunalidades, tem-se questões nos construtos Apresentação Heterossexual, Ganhar e no construto Violência com resultados inferiores ao sugerido na literatura29. Contudo, como essas variáveis partilham da mesma causa comum dos demais indicadores, em seus respectivos construtos, certifica-se a unidimensionalidade da escala.
Em relação ao índice KMO, todos os construtos apresentaram valores superiores a 0,6 (Apres.Hetero: 0,88; Assumir Risco: 0,69; Auto Controle: 0,682; Controle Emocional: 0,749; Ganhar: 0,739; Playboy: 0,708; Poder: 0,704; Violência: 0,693). Além disso, os resultados referentes ao teste de Bartlett indicaram significância menor do que 0,05 em todos os construtos, reafirmando a adequação da amostra.
Na Tabela 3 estão expostos os resultados obtidos na análise da validade convergente.
Tabela 3 Validade convergente.
Construto | AVE | Confiabilidade Composta | Validade convergente |
---|---|---|---|
Apresentação Heterossexual | 0,63 | 0,92 | Sim |
Assumir Riscos | 0,56 | 0,87 | Sim |
Autoconfiança | 0,59 | 0,88 | Sim |
Controle Emocional | 0,78 | 0,95 | Sim |
Ganhar | 0,50 | 0,87 | Sim |
Playboy | 0,58 | 0,88 | Sim |
Poder | 0,55 | 0,86 | Sim |
Violência | 0,42 | 0,79 | Não |
Como pode ser observado a maior parte dos construtos apresentaram validade convergente, com valores dentro dos limites recomendados na literatura26. Exceção foi obtida no construto Violência que apresentou AVE igual a 0,42. Por esse motivo, com o objetivo de encontrar validade convergente nesse item, optou-se pela retirada da questão Q.21.V3, que nos testes anteriores já apresentou resultados abaixo dos critérios estabelecidos na literatura. Após a retirada da variável atingiu-se valores aceitáveis referentes a AVE e CC, 0,53 e 0,85, respectivamente, o que indica validade convergente para o construto Violência.
Em seguida testou-se os dados também quanto a validade discriminante. Os valores encontrados são expostos na Tabela 4.
Tabela 4 Validade discriminante.
Apres. Hetero | Riscos | Confiança | Controle | Ganhar | Playboy | Poder | Violência | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Apres. Hetero | 0,79287 | |||||||
Riscos | 0,04895 | 0,74726 | ||||||
Confiança | 0,02962 | -0,03563 | 0,76978 | |||||
Controle | 0,11718 | -0,06617 | 0,32068 | 0,88074 | ||||
Ganhar | 0,2924 | 0,0989 | 0,23342 | 0,11109 | 0,70455 | |||
Playboy | 0,04978 | 0,20294 | 0,03487 | 0,01494 | 0,21212 | 0,76268 | ||
Poder | 0,49053 | 0,09525 | 0,08871 | 0,03391 | 0,06251 | 0,04323 | 0,74155 | |
Violência | 0,07543 | 0,1534 | -0,00716 | 0,15118 | 0,17352 | 0,10245 | 0,01919 | 0,72943 |
Verifica-se que todos os construtos apresentaram validade discriminante o que evidência que medem aspectos diferentes da masculinidade. A variância extraída, que é destacada na diagonal em negrito, foi percebida como maior que a variância compartilhada entre as dimensões. Além disso, todas as correlações apresentaram valores abaixo de 85%, outro indicativo da presença de validade discriminante.
Por fim, os resultados dos índices de ajuste do modelo estrutural e de medidas apresentou valores dentro dos padrões aceitáveis27, RMSEA = 0,03; CFI = 0,89; GFI = 0,91, e acompanharam de maneira geral os valores encontrados na escala original14, RMSEA = 0,04; CFI = 0,92.
Cabe destacar que não houveram diferenças no endosso das normas masculinas segundo indivíduos que consumiam bebidas alcoólicas e aqueles que não a consumiam. Por meio de teste t, obteve-se baixa diferença das médias e nenhum item apresentou uma diferença estatisticamente diferente em relação aos construtos.
Na busca de associação entre as categorias de normas masculinas validadas e a frequência de consumo dos homens que participaram do estudo foram realizadas correlações de Spearman e Kendall Tau, Tabela 5.
Tabela 5 Análise de correlação.
Construtos | Teste de Kendall | Teste de Spearman | ||
---|---|---|---|---|
Coeficiente de Correlação | Sig (2-tailed) | Coeficiente de Correlação | Sig (2-tailed) | |
Ganhar | 0,067 | 0,105 | 0,087 | 0,111 |
Playboy | ,225(**) | 0,000 | ,293(**) | 0,000 |
Autoconfiança | -0,027 | 0,520 | -0,036 | 0,510 |
Violência | -0,006 | 0,882 | -0,007 | 0,894 |
Apresentação Heterossexual | -0,076 | 0,066 | -0,100 | 0,066 |
Assumir Riscos | ,116(**) | 0,005 | ,147(**) | 0,007 |
Controle Emocional | -0,053 | 0,198 | -0,072 | 0,185 |
Poder Sobre as Mulheres | -0,007 | 0,872 | -0,008 | 0,879 |
Nota:
**Correlação é significante ao nível de 0.01 (2-tailed).
*. Correlação é significante ao nível de 0.05 (2-tailed).
Cabe destacar que, dentre aqueles que consomem algum tipo de bebida alcoólica, 51,58% o fazem uma ou duas vezes por semana, seguido de 14,74% que consomem de sete a onze vezes na semana, 13,33% de três ou quatro vezes por semana e 8,77% de uma a três vezes por mês.
Por utilizarem a mesma quantidade de informações dos dados, ambos os coeficientes têm igual poder para detectar a existência de associações31. Deste modo, têm-se os construtos Playboy e Assumir Riscos apresentando graus de significância relevantes ao nível de 0,05, com a frequência de consumo de álcool para os testes de Kendall Tau e de Spearman.
Alguns comportamentos, papéis de gênero e estereótipos sociais sofrem constante influência social e cultural, e podem ser considerados diferentes, ou até mais desejáveis do que outros em determinadas culturas, quando comparadas21,32. Por esse motivo é interessante validar em diferentes contextos modelos normativos relativos a masculinidades e feminilidades hegemônicas. O presente estudo validou para a realidade brasileira o CMNI-29.
A masculinidade pode ser compreendida como as características e habilidades que, ao serem significadas culturalmente, definem um estereótipo de homem e têm efeito sobre as relações e experiências dos indivíduos1,5. Nas sociedades ocidentais esse conceito está associado ao status heterossexual, branco e de classe média. Em diversos contextos as práticas consideradas masculinas não são representadas principalmente por homens, mas também pelas mulheres e por esse motivo, têm efeitos culturais e sociais. A prática social em todas as suas formas é o meio pelo qual os significados de gênero organizam a vida social1.
Com base nas etapas anteriores, foi possível identificar que, de maneira geral, os construtos apresentaram níveis congruentes de confiabilidade e validade, e a escala CMNI-29 apresentou-se válida para o contexto brasileiro com suporte às suas propriedades psicométricas. Os valores também se assemelharam ao estudo original e àqueles que utilizaram a escala em contextos diferentes6,12.
Insta salientar que, mesmo com as adaptações realizadas no instrumento para adequação ao contexto brasileiro, retirada de uma variável do construto Violência e utilização de uma escala com maior poder de detalhamento, esse ainda é considerado válido, devido aos resultados de dimensionalidade, confiabilidade e validade convergente e discriminante. Adaptações são procedimentos comuns a validação de instrumentos normativos já que as normas mensuradas, podem não ser de igual importância para os indivíduos que vivem em sociedades diferentes33.
Assim, os resultados ao atingirem valores recomendados pela literatura, evidenciam a presença, também nesse contexto de uma população universitária masculina brasileira, a existência das normas masculinas relacionadas a ganhar, playboy, autoconfiança, violência, apresentação heterossexual, assumir riscos, controle emocional e poder sobre as mulheres. Nesse sentido, o CMNI-29, validado à realidade brasileira, é uma medida útil para pesquisas que objetivam compreender o papel das múltiplas dimensões da masculinidade no comportamento dos indivíduos. Contudo, para utilização mais geral do instrumento é necessário que este seja aplicado à populações diversificadas.
Em relação a correlação entre as normas masculinas e a frequência de consumo de bebidas alcoólicas, indícios de influência das normas sobre a frequência de consumo foram encontrados. Obteve-se os construtos Playboy, relacionado ao desejo e preferência dos homens a terem muitas parceiras sexuais e relações sexuais sem apego emocional, e Assumir Riscos, tendência em engajar-se em comportamento de risco, apresentando significância positiva com a frequência de uso de bebidas alcoólicas. Resultados semelhantes foram encontrados em estudos que apontam a associação do endosso de tais dimensões e o uso de álcool, como também seu uso em excesso, beber em risco ou Heavy Episodic Drinking13,10,17,34. Os achados desta pesquisa dão indícios de que também no contexto brasileiro as normas estão associadas ao consumo de álcool masculino.
Sobre esse resultado, tem-se que homens universitários que endossam normas relativas a desejar muitos parceiros sexuais ao mesmo tempo, desfrutando de atividades de risco, independentemente das possíveis consequências, estão em risco elevado de beber, o fazendo em quantidades maiores34. Tais normas remetem a um senso de auto apresentação, e nesse sentido a capacidade de beber álcool pode ser vista como um sinal de masculinidade30.
A percepção da existência de normas sociais diferentes para homens e mulheres pode influenciar a compreensão sobre o comportamento dos indivíduos sobre seus pares, o que atua como uma medida de conformidade e como um comportamento orientador, que pode impulsionar comportamentos sexuais de risco e relacionados com a bebida alcoólica, por exemplo35,36.
Especificamente em relação a correlação entre a norma Playboy e o consumo de bebidas alcoólicas, tem-se que situações de consumo de álcool podem ser sexualmente carregadas. Em populações universitárias, situações de consumo de álcool são percebidas como uma sugestão sexual35. Talvez por esse motivo tais eventos podem reforçar a auto apresentação da masculinidade. Cabe a estudos futuros explorar tais relações.
A esse respeito, tem-se que jovens universitários percebem que a vida sexual e beber muito são situações que estão lado a lado. Nesse sentido, os homens podem engajar-se em comportamentos de risco em relação a bebida com o objetivo de que ela facilite as suas relações10. Autores esclarecem que o consumo de álcool é maior em situações com parceiros sexuais novos ou casuais37.
Sendo esses fatores importantes, eles podem ser considerados, por exemplo, na análise do consumo de bebidas alcoólicas, bem como em intervenções para redução de seu uso em excesso, principalmente entre jovens. No Brasil, a população masculina que ingere algum tipo de bebida alcoólica aumentou 29,4% no período de 2006 a 2012, não tendo sido encontrado dados mais recentes sobre esse comportamento. Ademais, a prevalência do beber pesado episódico na população de bebedores homens também aumentou, 13%, no mesmo período37.
Diversas práticas, aqui inclusas também práticas de saúde, adotadas por homens e mulheres estão envoltas por crenças normativas. Tais práticas são assumidas por demonstrarem feminilidades e masculinidades. Na cultura norte americana, homens assumem comportamentos menos saudáveis e de risco para demonstrar sua masculinidade, não fazê-lo pode significar ultrapassar barreiras sociais que remetem a censura e estereótipos negativos38. No Brasil essa realidade também parece existir, já que a maior taxa de mortalidade entre jovens de 20 a 24 anos, 80,8%, é da população masculina. As causas, em sua maior parte são decorrentes a comportamentos de risco, como motivos externos ou violentos, homicídios e acidentes de trânsito39.
De fato, as normas masculinas estão relacionadas com a pressão recebida por grupos15. Especificamente, homens que endossam a norma Playboy, podem ser mais suscetíveis as percepções de pressão social. Esse resultado, que apresentou o maior correlato positivo na presente pesquisa, pode corroborar com o pressuposto de que muitos homens percebem a necessidade de provar/reafirmar sua masculinidade, neste caso, refletida na ingestão de bebida alcoólica13.
No contexto brasileiro o presente estudo validou em sua completude o instrumento CMNI-29, e verificou-se que as normas dominantes referentes a masculinidade também estão presentes nessa realidade cultural. O instrumento forneceu um modelo útil para a operacionalização das normas masculinas na sociedade brasileira.
Foi possível identificar associações significantes positivas entre o endosso de tais normas e a frequência de consumo de álcool da população universitária em estudo. Estudos posteriores podem buscar, a partir da associação positiva encontrada neste estudo, relações entre a percepção de pressão social, a quantidade e frequência de consumo de álcool, locais de consumo, tipos de bebida e o endosso de tais normas masculinas.
O artigo apresenta como limitação a natureza da amostra, estudantes universitários, sendo esta necessária para que se pudesse realizar comparações com estudos que utilizaram a escala em diferentes contextos, mas com públicos semelhante. Limita-se também ao não estratificar a amostra de acordo com o tipo de universidade, região de residência e raça, por exemplo, elementos que podem influenciar a conformidade com as normas masculinas bem como o consumo de álcool.
Devido a utilização de uma amostra por conveniência, e não probabilística, os resultados encontrados não são passiveis de generalizações para qualquer população, sendo necessária a continuidade do processo de validação. Salienta-se que o uso de amostras dessa natureza são aceitas na literatura quando se realiza estudos exploratórios, questionários pré-teste ou estudos piloto23.
Há de se considerar ainda, como uma outra limitação do trabalho a escolha por uma escala com um maior número de itens de escalonamento - de quatro para seis itens - o que faz com que a escala testada não seja exatamente igual à escala criada por Hsu e Iwamoto6.
Mesmo que o CMNI-29 forneça uma avaliação da variabilidade da masculinidade, dado que dois homens podem variar consideravelmente em que normas masculinas especificas são conformes. A medição de qualquer parte do domínio de conteúdo da masculinidade, por mais ampla que seja, é necessariamente limitada ao abordar a multiplicidade de masculinidades que os indivíduos e as sociedades constroem. Entretanto, compreende-se que a complexidade do gênero e sua conexão com uma série de questões de saúde individuais, familiares e comunitárias exigem um pluralismo metodológico que utilize criativamente os pontos fortes de todos os tipos de projetos de pesquisa de métodos qualitativos, quantitativos e mistos18. Assim, na busca de enriquecimento da compreensão sobre a masculinidade pesquisas futuras podem explorar essas e outras dimensões através de métodos qualitativos.
É interessante ampliar os estudos abrangendo homens em faixas etárias diferentes bem como diferentes etnias, níveis socioeconômicos e diferentes regiões geográficas, já que o comportamento de consumo pode sofrer alterações e as perspectivas de gênero podem relacionar-se com fatores sócio indentitários.
Como contribuição acadêmica este estudo pode fomentar campanhas e pesquisas que relacionem a influência das normas sociais e o consumo de bebidas alcoólicas pelos homens, principalmente buscando maneiras de incentivar a diminuição do consumo em excesso que, em muitos casos, pode ser nocivo à saúde. Entre homens brasileiros, o consumo excessivo da bebida aumentou 12% no período de 2006 a 201238. Além disso, o uso nocivo do álcool é a oitava maior causa de concessão de auxílio doença no sistema previdenciário, além de junto à depressão, ser uma das principais causas de doenças crônicas no país40.
Ao reforçar e adicionar a variável normativa de gênero, para além de um escopo demográfico, de segmentação e diferença de sexo, o uso da escala no contexto de pesquisa brasileiro pode esclarecer e apontar o efeito e relação da conformidade com outras variáveis e comportamentos de saúde que afetam a população do país, como HIV, depressão e uso de drogas, estudos dessa natureza tem crescido no âmbito internacional40-42. Além disso, podem ser exploradas outras áreas em que o estereotipo normativo dominante masculino também exerce influência sobre homens e mulheres, como comportamento de consumo de produtos e interesses e escolhas profissionais43.