versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.106 no.5 São Paulo maio 2016
https://doi.org/10.5935/abc.20160074
As lipoproteínas consistem em um conjunto composto por proteínas e lipídeos, organizados de modo a facilitar o transporte dos lipídeos pelo plasma sanguíneo. Níveis elevados ou diminuídos dessas lipoproteínas podem estar relacionados a alterações genéticas entre 40 e 60% dos casos.1 Tal fato explica por que é frequente encontrar anormalidades lipídicas em vários membros de uma mesma família. Os níveis aumentados dessas biomoléculas orgânicas compostas são responsáveis por aproximadamente 50% do risco atribuível ao desenvolvimento de enfermidades ateroscleróticas cardiovasculares,2,3 processo do qual também participam outros fenótipos com componente hereditário, como diabetes, obesidade e síndrome metabólica.
Estudos populacionais de associação genética identificaram mais de cem genes que poderiam ter um impacto direto nos níveis lipídicos.3 Esses genes afetam os níveis plasmáticos do colesterol total, da lipoproteína de baixa densidade-colesterol (LDL-c) e da lipoproteína de alta densidade-colesterol (HDL-c), assim como dos triglicerídeos, sendo capazes de constituir fenótipos complexos. No entanto, entre aqueles genes identificados nos estudos de associação, encontra-se um grupo previamente conhecido e bem caracterizado de genes responsáveis pelo desenvolvimento das dislipidemias monogênicas. Nesses casos, a variante em um gene único explica claramente o fenótipo.
É importante frisar que, mesmo de forma isolada, tais mutações determinam enfermidades consideradas raras e o impacto produzido pelas variantes desses genes tende a ser elevado, determinando valores extremos nos níveis lipídicos. Considerando que a doença aterosclerótica cardiovascular é um processo que inicia na infância e evolui ao longo da vida,4 a identificação precoce de fatores de risco é muito importante. Nesse sentido, o diagnóstico de fenótipos determinados por doenças monogênicas do metabolismo lipídico merece atenção especial, uma vez que, ao produzir fenótipos extremos, elas podem se associar ao desenvolvimento de aterosclerose precoce e de rápida progressão. De fato, estudos genéticos, mediante técnica de Sequenciamento de Nova Geração (NGS, sigla do inglês Next-Generation Sequencing) realizada em pacientes com diagnóstico de infarto agudo do miocárdio (IAM) precoce (aqueles que ocorrem antes dos 50 anos nos homens e dos 60 anos nas mulheres), determinaram que a presença de variantes genéticas raras no gene LDLR quadruplicava o risco desse evento em seus portadores. Por sua vez, variantes raras no gene APOA5, associado a níveis elevados de triglicerídeos, triplicavam o risco. Inclusive, cerca de 2% dos casos eram de portadores de uma mutação claramente patogênica em LDLR, sugerindo que esses pacientes teriam diagnóstico de hipercolesterolemia familiar.2 Em um sentido mais amplo, estima-se que cerca de 5% dos IAM em pacientes com menos de 60 anos podem ocorrer devido à hipercolesterolemia familiar, cifra que pode se elevar até 20% quando o evento coronário agudo incide em indivíduos com menos de 45 anos.5
Digno de nota é que, mesmo tratando-se de patologias monogênicas, as mutações identificadas em muitos dos genes frequentemente responsáveis por essas enfermidades evidenciam importante variabilidade na expressão fenotípica e no risco associado, seja nos portadores de uma mesma família ou entre portadores de uma mesma mutação pertencentes a diferentes populações.6-9 Em certas ocasiões, esse fato pode dificultar ou retardar o diagnóstico em pacientes nos quais se utilizam somente critérios clínicos, já que, nessas circunstâncias, os níveis lipídicos podem se sobrepor aos observados na população geral.
A grande variabilidade na expressão clínica em portadores de uma determinada variante se deve ao efeito de outros fatores que atuariam como modificadores na expressão da mutação responsável, fato este que já foi demonstrado em diversas oportunidades. Por sinal, esse é o caso de variantes em genes como ApoB, PCSK9, LRP1 e Lp(a), assim como em portadores de mutações em LDLR com diagnóstico de hipercolesterolemia familiar, somente para citar alguns exemplos.6-11 A participação de variantes genéticas como modificadoras na expressão do fenótipo tem explicação no fato que os genes envolvidos podem se associar de forma independente, sendo capazes de promover incremento ou diminuição nos níveis da lipoproteína que afetam. Em outras palavras, as interações de seus efeitos atenuam ou aumentam os níveis lipídicos, assim como o risco associado nos portadores. Da mesma forma, determinadas variantes podem influir não somente na expressão fenotípica, senão também na resposta ao tratamento farmacológico, determinando que a intervenção seja ou não efetiva em seu objetivo de diminuição do risco associado.6,7
Essa doença familiar constitui uma das patologias monogênicas mais prevalentes, sendo identificada em aproximadamente 1:500 indivíduos na população geral. Interessante é que, em algumas subpopulações europeias, estima-se que a frequência seja ainda maior, ficando na ordem de 1:250 indivíduos.8 No passado, a caracterização da hipercolesterolemia familiar era realizada utilizando-se critérios exclusivamente clínicos e de laboratório. No entanto, o conhecimento das limitações dessa estratégia, no que tange à baixa sensibilidade para o diagnóstico,9,10 motivou modificações em dois dos três principais critérios diagnósticos dessa entidade nosológica. De acordo com os critérios estabelecidos pela Dutch Lipid Clinic Criteria (Tabela 1) e pelo Simon Broome Diagnostic Criteria, a identificação de mutações patogênicas, quando somadas a critérios clínicos adicionais, tem sido utilizada para considerar como definitivo o diagnóstico de hipercolesterolemia familiar. Por sinal, identificar mutações patogênicas em probandos constitui o primeiro passo para se iniciar a triagem genética na família desse indivíduo. Essa abordagem é de fundamental importância nos familiares de idade pediátrica e em adolescentes nos quais os critérios clínicos podem não estar bem definidos, embora a doença já possa ter começado a exercer seus efeitos à nível vascular. No que diz respeito ao diagnóstico e ao manejo dessa enfermidade, tal perspectiva tem sido apoiada por diretrizes redigidas por importantes sociedades médicas como a canadense,11 a britânica (National Institute for Health and Clinical Excellence − NICE),12 a australiana/neozelandesa13 e a espanhola,14 entre outras.
Tabela 1 Critérios da Dutch Lipid Clinic Criteria para o diagnóstico de hipercolesterolemia familiar (pontuação)
Critérios | Pontos | ||
---|---|---|---|
História familiar | |||
Familiar de primeiro grau com patologia coronária precoce (homens < 55 anos e mulheres < 60 anos) | 1 | ||
Familiar de primeiro grau com níveis de LDL-c > 210 mg/dL | |||
Familiar de primeiro grau com xantomas tendinosos e/ou com arco corneano < 45 anos | 2 | ||
Familiar < 18 anos com LDL-c ≥ 150 mg/dL | |||
Antecedentes pessoais | |||
Paciente com patologia coronária precoce (homens < 55 anos e mulheres < 60 anos) | 2 | ||
Paciente com patologia cerebrovascular ou arterial periférica precoce (homens < 55 anos e mulheres < 60 anos) | 1 | ||
Exame físico | |||
Xantomas tendinosos | 6 | ||
Arco corneano em indivíduos < 45 anos | 4 | ||
Análise laboratorial | |||
LDL-c ≥ 330 mg/dL | 8 | ||
LDL-c 250-329 mg/dL | 5 | ||
LDL-c 190-249 mg/dL | 3 | ||
LDL-c 155-189 mg/dL | 1 | ||
Análise genética | |||
Mutação funcional em algum desses genes: LDLR, APOB ou PCSK9 | 8 | ||
Diagnóstico de hipercolesterolemia familiar | |||
Certeza: ≥ 8 pontos | Provável: 6-7 pontos | Possível: 3-5 pontos |
LDL-c: lipoproteína de baixa densidade-colesterol.
Os genes para os quais existe evidência demonstrada de associação com a hipercolesterolemia familiar são LDLR, ApoB, PCSK9 e LDLRAP1. A principal alteração lipoproteica ligada ao fenótipo é o incremento nos níveis da lipoproteína LDL. No entanto, algumas variantes nos genes ApoB e PCSK9 podem determinar a diminuição dessa lipoproteína. É de se destacar que o fenótipo determinado pelos três genes LDLR, ApoB e PCSK9 apresenta um padrão de transmissão autossômico dominante, enquanto o fenótipo determinado por mutações no gene LDLRAP1 se transmite exclusivamente de forma autossômica recessiva.
Trata-se de um dos principais diagnósticos diferenciais em pacientes com suspeita de hipercolesterolemia familiar. É uma doença causada pela absorção anormal do colesterol e pelo acúmulo de esteróis, sobretudo daqueles de origem vegetal (daí seu nome). As características clínicas dessa patologia incluem presença de xantomas e aterosclerose coronária prematura, além de anemia hemolítica e/ou hepatopatia. Os genes associados a essa enfermidade são ABCG5 e o ABCG8. Em relação a outros genes que alteram o metabolismo dessa lipoproteína, inclui-se um grupo associado à diminuição de seus níveis (hipobetalipoproteinemias familiares), com possível efeito protetor para a doença cardiovascular em portadores.15 Os genes associados a esses fenótipos são ANGPTL3, MTTP e MYLIP.
O papel da hipertrigliceridemia de etiologia genética como fator de risco para enfermidade aterosclerótica cardiovascular já está bem estabelecido. Em estudo recente, que incluiu uma extensa coorte de pacientes com IAM precoce (antes dos 50 anos), nos quais se realizou sequenciação mediante NGS, os portadores de variantes no gene APOA5 apresentavam aumento no risco de até 3,3 vezes em relação aos não portadores.16 Associação parecida já havia sido estabelecida previamente em outra grande coorte (Copenhagen Cohort), na qual o gene LPL também foi investigado. Nesse estudo observacional, foi determinado que, para cada aumento de 1 mmol/L (39 mg/dL) nos níveis de colesterol rico em triglicerídeos (remanescente), o qual é mediado por causa genética, o incremento de risco para doença arterial coronária (DAC) foi 2,8 maior do que nos controles.17 Os principais genes associados ao aumento nos níveis de triglicerídeos (como fenótipo principal) são APOA5, APOC2, APOE, GPD1, GPIHBP1, HNF1A, LMF1, LPL e SLC25A40. É digno de nota que um grupo de variantes raras no gene APOC3 se associou a uma redução nos níveis de triglicerídeos, promovendo diminuição de até 40% no risco de DAC.18
Estudos epidemiológicos da década de 1990 estabeleceram relação inversa entre os níveis de HDL-c e o risco de DAC.19 Na atualidade, o que se sabe é que essa associação parece estar mais relacionada com a qualidade das partículas de HDL-c, por anomalias estruturais secundárias a mutações, do que pela quantidade absoluta dessa lipoproteína20,21 − fato este que pode explicar o recente questionamento sobre o significado dos níveis do HDL-c sobre o desenvolvimento da DAC.22 O exemplo paradigmático da relação estrutura/função é aquele representado por uma mutação que afeta a apolipoproteína A1 (ApoA1), um dos principais constituintes da lipoproteína HDL, a qual se associa a um efeito contrário ao esperado. Por exemplo, a mutação (Arg173Cys) determina a produção de dímeros de ApoA1, determinando que os níveis de HDL-c sejam extremadamente baixos. Porém, essas partículas são muito eficientes no transporte reverso do colesterol, o que faz com que os portadores tenham uma incidência muito baixa de cardiopatia isquêmica, apesar de um HDL-c medido de forma quantitativa extremadamente baixo.
De todos os modos, os baixos níveis de HDL-c de etiologia monogênica determinam um grupo de patologias que apresentam elevada prevalência de doenças cardiovascular aterosclerótica precoce. Os genes associados ao HDL-c baixo de etiologia monogênica são APOA1, ABCA1, LCAT, SAR1B e ABCG1.
APOA1 é o gene responsável pelo fenótipo da hipoalfalipoproteinemia familiar, entidade de etiologia autossômica dominante. Já o gene ABCA1 se associa com a doença de Tangier, a qual é autossômica recessiva. Da mesma forma, os genes LCAT, que se associam à doença do olho de peixe, e o gene SAR1B, que tem relação com enfermidade por retenção de quilomicras, também cursam com diminuição nos níveis de HDL-c.
Por outro lado, existe um grupo de genes associados ao incremento nos níveis de HDL-c. Apesar disso, não há evidência de efeito protetor para aterosclerose. Uma explicação para esse achado poderia estar ligada ao fato de que essas variantes genéticas alteram a distribuição das subclasses das partículas de HDL-c, incrementando aquelas menos protetoras.23 Essa informação pode ser relevante para determinar se o aumento dessa lipoproteína pode ser considerado para o cálculo do risco cardiovascular associado à relação entre as lipoproteínas. Os genes associados ao incremento do HDL-c de etiologia genética são CETP, LIPC, PLTP e SCARB1.
As lipodistrofias constituem um grupo heterogêneo de enfermidades raras, cuja característica comum é a perda seletiva do tecido adiposo. No entanto, elas predispõem ao desenvolvimento de complicações metabólicas semelhantes àquelas observadas em indivíduos com obesidade. Entre elas, podem ser incluídas alterações no metabolismo lipídico (aumento de triglicerídeos e redução no HDL-c), como também a resistência à insulina e o diabetes melito, entidades associadas ao incremento no risco de aterosclerose prematura.24,25 Os principais genes associados a essas enfermidades são LPL, AGPAT2, BSCL2, CAV1, CIDEC, LMNA, PLIN1, PPARG, PTRF e ZMPSTE24.
Dor muscular secundária ao tratamento com as estatinas representam o efeito adverso mais frequentemente associado ao uso desses fármacos. Estima-se que afeta de 1 a 10% dos pacientes tratados,26 sendo uma complicação subdiagnosticada.27 A severidade e o risco para o desenvolvimento de complicações maiores como a rabdomiólise apresentam relação com o uso combinado de estatinas, dose e fatores como sexo e idade, assim como com o uso concomitante de outros fármacos que alteram a biodisponibilidade desses compostos. Os determinantes genéticos de risco associado estão constituídos por genes que codificam enzimas relacionadas com o metabolismo desses fármacos, assim como com transportadores e com genes associados à disfunção mitocondrial. Todos esses fatores somam efeitos àqueles gerados pelas estatinas per se, como etiologia de dano muscular.28 Os genes com maior nível de evidência de associação com essa complicação são AMPD1, COQ2, CPT2, CYP2D6, PPARA, PYGM e SLC22A8 e SLCO1B1.
As dislipidemias primárias ou sem causa aparente podem ser classificadas genotipicamente ou fenotipicamente por meio de análises bioquímicas. Na classificação genotípica, as dislipidemias se dividem em monogênicas (causadas por mutações em um só gene) e poligênicas (causadas por associações de múltiplas mutações que, isoladamente, não seriam de grande repercussão).29
O conhecimento da base molecular das dislipidemias permite um diagnóstico correto das mesmas. Nesse cenário, a instituição de uma terapêutica farmacológica ótima pode ser melhor fundamentada. Além disso, o diagnóstico genético em um caso índice pode desencadear um processo de investigação na família, o que possibilita identificação precoce, orientação terapêutica e consequente redução do risco cardiovascular nesses indivíduos.