versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.4 São Paulo out./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160067
Alcançar a maternidade ainda pode ser um desafio para mulheres com doença renal crônica (DRC). À medida que a doença renal progride, o interesse sexual e a fertilidade diminuem.1 Um dos benefícios do transplante renal é a reversão da disfunção gonadal e a restauração da fertilidade. Cerca de 2% das mulheres beneficiárias do transplante de rim em idade fértil engravidam durante o seguimento.2 Embora haja, sem dúvida, um aspecto positivo associado ao transplante renal, esses pacientes constituem um grupo de alto risco, especialmente em relação à gravidez, com complicações potencialmente fatais tanto para a gestante quanto para o feto.3
Os dados de um recente estudo conduzido em uma coorte nacional no Reino Unido,4 sugerem que a maioria das receptoras de transplantes renais pode conseguir gestações bem sucedidas, embora eventos adversos sejam comuns. No entanto, este estudo avaliou pacientes em diferentes centros de transplante e sob diferentes condutas durante o seguimento. Há ainda um número reduzido de estudos que analisaram grandes grupos com padrões semelhantes de atenção obstétrica e nefrológica. O objetivo deste estudo foi o de recolher informações sobre os desfechos da gravidez entre receptoras de transplante renal sob cuidados semelhantes em relação ao seguimento obstétrico e condições dos transplantes.
Este foi um estudo retrospectivo, observacional, conduzido em um único centro. O formato do estudo foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética local. Os pacientes elegíveis foram todas as pacientes transplantadas renais que engravidaram entre 2004 e 2014. Uma vez que todos os transplantados renais mantem o seu seguimento na mesma instituição ao longo de suas vidas após o transplante, todos os testes são realizados em um único laboratório central. As pacientes foram ativamente selecionadas por meio da identificação retrospectiva de um teste de gonadotrofina coriônica humana-β positiva durante o período do estudo a partir do banco de dados do laboratório. Os dados referentes a peso fetal ao nascimento não estavam disponíveis para esta análise.
O principal desfecho foi a ocorrência de qualquer complicação materna. Informações referentes ao período pré-concepcional (3 a 12 meses antes da concepção), cada trimestre da gestação e seguimento de curto prazo (12 meses após o parto) foram colhidas a partir dos registros médicos mantidos pela instituição. Para esta análise, cada gravidez foi considerada um evento.
Foram descritos parâmetros demográficos, clínicos e laboratoriais. Todas as mulheres receberam profilaxia antimicrobiana contínua com cotrimoxazol durante a gestação e no período de seguimento. As amostras de urina foram coletadas para cultura em cada consulta médica, e toda bacteriúria (> 105 UFC/mL), mesmo assintomática, foi tratada de forma adequada. A proteinúria foi avaliada em amostras isoladas de urina, e o resultado foi expresso em g/L. Nem a quantificação da proteinúria de 24h nem a taxa creatinina urinária/proteína urinária estavam disponíveis para a presente análise. A taxa de filtração glomerular foi estimada pela equação CKD-EPI. A pré-eclâmpsia foi definida de acordo com as diretrizes de 2013 do Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas.5
As variáveis quantitativas foram expressas em média e desvio padrão. A evolução da função renal (estimada pela creatinina sérica) e da proteinúria ao longo do tempo foi avaliada pelo método de análise de medidas repetidas. As variáveis categóricas foram expressas em número e porcentagem, o teste do qui-quadrado foi utilizado para comparação. Para todos os testes, a significância estatística considerada foi um valor de p < 0,05; com 95% de IC.
Cinquenta e três gestações ocorreram em 36 pacientes transplantadas renais. Doze pacientes tiveram mais de uma gravidez durante o respectivo período. As características demográficas estão resumidas na Tabela 1. No que se refere à imunossupressão basal, quatro mulheres estavam em uso do tacrolimus, prednisona e micofenolato antes da concepção. Uma delas foi passada para azatioprina no diagnóstico de gravidez. As outras três, que ocorreram antes de 2012 (época da publicação do programa REMS Micofenolato pelo FDA e uma maior conscientização sobre as questões associadas a MPA/MMF e embriotoxicidade), continuaram nesse tratamento durante a gravidez, devido ao alto risco imunológico e diagnóstico tardio da gravidez.
Tabela 1 Características demográficas da população estudada
Variável | n = 53 |
---|---|
Média das idades à época do transplante, em anos | 23 ± 6 (12 - 33) |
< 20 anos | 6 (11) |
20 - 34 anos | 41 (77) |
≥ 35 anos | 6 (11) |
Média das idades quando da concepção, em anos | 28 ± 5 (17 - 40) |
< 20 anos | 6 (11) |
20 - 34 anos | 41 (77) |
≥ 35 anos | 6 (11) |
Etnia, n (%) | |
Melanodérmicos | 27 (51) |
Não-Melanodérmicos | 26 (49) |
Nível de educação formal, n (%) | |
Analfabetismo | 1 (2) |
Educação fundamental | 5 (9) |
Secundário | 36 (68) |
Terciário | 4 (8) |
Indisponível | 7 (13) |
Causa da doença renal terminal, n (%) | |
Diabetes Mellitus | 2 (4) |
Glomerulopatia | 18 (34) |
Desconhecido | 30 (57) |
Nefrite intersticial crônica | 2 (4) |
Oligomeganefronia | 1 (2) |
Tratamento prévio, n (%) | |
Hemodiálise | 50 (94) |
Peritoneal | 2 (4) |
Nenhum | 1 (2) |
Duração da diálise, meses | 28 ± 26 (0 - 144) |
Até 36 meses | 39 (74) |
Mais de 36 meses | 14 (26) |
Retransplante, n (%) | 2 (4) |
Doador falecido, n (%) | 22 (42) |
Tempo entre o transplante e a concepção, em anos | 4,4 ± 3,0(0,1 - 11,9) |
Até 1 ano | 7 (13) |
Mais de 1 ano | 46 (87) |
Imunossupressão inicial, n (%) | |
CSA/PRED/AZA | 9 (17) |
TAC/PRED/AZA | 39 (74) |
TAC/PRED | 1 (2) |
TAC/PRED/MPA | 4 (8) |
Imunossupressão à concepção, n (%) | |
CSA/PRED/AZA | 9 (17) |
TAC/PRED/AZA | 40 (75) |
TAC/PRED | 1 (2) |
TAC/PRED/MPA | 3 (6) |
Hipertensão prévia, n (%) | 20 (38) |
Proteinúria basal > 0,5 g/L, n (%) | 4 (8) |
Múltiplas gestações, n (%) | 2 (4) |
Não houve aborto provocado. Houve nove abortos espontâneos (um às 7 semanas, dois às 8 semanas, um às 9 semanas, quatro às 10 semanas e um às 13 semanas) e três natimortos (um às 20 semanas e dois às 22 semanas). Duas, de cada três gestações entre as mulheres que continuaram o uso do micofenolato, resultaram em abortos espontâneos (nas 8ª e na 10ª semana de gestação, respectivamente).
Um parto bem-sucedido ocorreu em 41 (77%) das gestações. Em relação à idade gestacional, houve 25 (61%) recém-nascidos a termo, 9 (22%) recém-nascidos prematuros e 7 (17%) recém-nascidos extremamente prematuros (< 32 semanas). Quarenta e nove por cento dos bebês nasceram por cesariana. Em 41% dos casos, foi necessário induzir o parto devido a problemas clínicos associados à mãe. Houve dois casos de morte perinatal, correspondendo a 3,7% de todas as gestações.
Infecção do trato urinário foi a principal complicação materna, e ocorreu em 23% dos casos. Houve um caso de diabetes gestacional. Entre as mulheres previamente normotensas, 22 gestações chegaram a 20 semanas de idade gestacional. A partir delas, hipertensão diagnosticada recentemente ocorreu em 7 (16%) casos, nova proteinúria em 20 (45%) casos, e pré-eclâmpsia em 5 (11%) casos.
Durante a gravidez, e em até 12 meses de seguimento, a incidência de rejeição aguda confirmada por biópsia foi de 6%. Houve um caso de perda do enxerto devido a atrofia imunológica/fibrose.
Houve um aumento significativo na creatinina sérica a partir do seu valor basal até o terceiro trimestre da gestação, e este efeito negativo foi mantido durante o seguimento, tal como demonstrado na Tabela 2 (1,19 ± 0,07 mg/dl no início do tratamento; 1,47 ± 0,15 mg/dL no terceiro trimestre; 1,59 ± 0,20 mg/dL no seguimento, p < 0,001). Houve um declínio correspondente na taxa estimada de filtração glomerular (TFGe). Que também aconteceu na proteinúria (0,08 ± 0,2 g/L no início do estudo; 0,40 ± 0,08 g/L no terceiro trimestre; 0,28 ± 0,06 g/L no seguimento, p < 0,001).
Tabela 2 Evolução da função renal e da proteinúria entre gestantes, valores basais, durante a gestação e no seguimento
Variável | Basal | 1 Trimestre | 2 Trimestre | 3 Trimestre | Seguimento | p |
---|---|---|---|---|---|---|
Creatinina sérica, mg/dL | 1,19 ± 0,07 | 1,08 ± 0,07 | 1,17 ± 0,10 | 1,47 ± 0,15 | 1,59 ± 0,20 | < 0,001 |
TFG estimada, mL/min/1,73m2 | 72,23 ± 26,77 | 81,10 ± 27,01 | 80,98 ± 34,66 | 60,75 ± 23,42 | 62,04 ± 25,90 | < 0,001 |
Proteinuria, g/L | 0,08 ± 0,2 | 0,12 ± 0,03 | 0,18 ± 0,05 | 0,40 ± 0,08 | 0,28 ± 0,06 | < 0,001 |
TFG: Taxa de Filtração Glomerular, estimada pela equação CKD-EPI.
Este estudo apresenta uma análise descritiva de um grande número de gravidezes que ocorrem em pacientes transplantadas renais relativamente estáveis, e aponta para riscos potencialmente graves de complicações maternas.
Em primeiro lugar, embora a gravidez não tenha ocorrido em idade avançada e, sobretudo, após o primeiro ano pós-transplante como referenciado na literatura, o número de abortos espontâneos foi mais elevado em comparação com a população brasileira geral6 (14%), e também alto em comparação com a incidência de aborto espontâneo clinicamente reconhecível em estudos populacionais conduzidos em todo o mundo (24% versus 12-15%).7
Entre receptoras de transplante renal, estudos relatam que aproximadamente 35% das gestações não progridem além do primeiro trimestre devido a abortos espontâneos ou terapêuticos, e que a taxa de sucesso global é > 90% após o primeiro trimestre.8 É possível que as baixas taxas de utilização de micofenolato em nossa população (apenas quatro em 53 gestações), conhecidamente associado a um aumento no risco de aborto espontâneo, tenha influenciado os resultados observados.
No que diz respeito ao resultado em termos de tipo de parto, o parto vaginal é recomendado para a maioria das receptoras de transplante, segundo as diretrizes atuais.9 Entretanto, na nossa amostra, bem como em outros estudos conduzidos,10-12 as taxas de indução e cesariana foram significativamente maiores. Oliveira et al.,13 analisando uma coorte anterior do mesmo centro, relataram que cesarianas foram realizadas em 61,5% das pacientes, e as principais indicações foram hipertensão materna e síndrome de sofrimento fetal. Infelizmente, neste estudo não avaliamos o motivo que levou à cesariana. Na verdade, as cesarianas brasileiras na população em geral são em números mais elevados do que acontece em muitos outros países do mundo, e pode chegar a 61% de todos os nascimentos, de acordo com dados nacionais. Muitas razões, incluindo fatores socioeconômicos, podem explicar essas altas taxas.14
Nascimento prematuro é um problema importante entre as receptoras de transplante renal, que ocorre em 40-60% dos casos. Isso é duas a três vezes maior do que na população em geral, em que a incidência varia de 5-15%.8 Os resultados do presente estudo estão de acordo com a literatura. A maioria dos bebês nasceram intencionalmente prematuros, geralmente devido a problemas clínicos maternos, como a pré-eclâmpsia.
Infecção e, principalmente infecção do trato urinário, é a complicação mais comum após transplante de rim,15 com uma incidência de 19-40%.8 Observamos uma taxa de 23% de infecção urinária, mesmo sob profilaxia antimicrobiana contínua com cotrimoxazol. As alterações fisiológicas que ocorrem no trato urinário durante a gravidez causam dilatação do sistema coletor renal e aumento no crescimento bacteriano devido a modificações na composição da urina.
Em relação à pressão arterial elevada, é sabido ser prevalente em pacientes com doenças renais crônicas, persiste após transplante de rim, e piora em pacientes que usam inibidores da calcineurina.9 Quanto à proteinúria, sabe-se que esta pode estar presente após o transplante devido a uma miríade de situações, pode ser recorrente ou por glomerulopatias que se manifestam novamente, glomerulopatias do transplante e estravazamento.16 Devido a estes fatores confundentes, o diagnóstico de pré-eclâmpsia pode estar oculto em mulheres transplantadas. Em nossa amostra, usando as rigorosas definições adotadas, pré-eclâmpsia foi diagnosticada em 11% dos casos.
Um dos aspectos mais importantes em nosso estudo foi o aumento significativo e sustentado da creatinina e queda na taxa de filtração glomerular durante a gravidez e no follow-up. Em estudos anteriores, a gravidez pareceu não comprometer a função renal em pacientes transplantadas estáveis.17 As características demográficas de nossa população pode ser diferente, o que assinala que um grande número de mulheres (17 em 36) tiveram mais de uma gravidez durante o respectivo período de estudo. Além disso, o esquema de imunossupressão, a duração do período de seguimento, e o número de visitas durante a gravidez foram diferentes em diversos estudos apresentados, contribuindo para os resultados diferentes encontrados em nossa população. O impacto desta sustentada piora da função renal sobre a sobrevivência do enxerto é uma questão para futuras investigações.
As limitações deste estudo foram a sua natureza retrospectiva e o curto tempo de acompanhamento após o parto. É possível que o número de abortos espontâneos esteja sub-representado, uma vez que essa é uma análise retrospectiva. Além disso, devido ao viés de informação e baixo número de relatos nos prontuários, não foi possível coletar informações sobre defeitos ao nascimento e os desfechos dos recém-nascidos. No entanto, a homogeneidade do transplante e cuidados obstétricos forneceram informações úteis sobre as complicações maternas e os desfechos.
Em uma coorte de um único centro, envolvendo mulheres transplantadas estáveis, a gravidez esteve associada a altas taxas de complicações maternas e abortos espontâneos. O aumento sustentado da creatinina sugere um aumento no risco de perda do enxerto a longo prazo. Gravidez após o transplante renal ainda deve ser considerada como uma gestação de alto risco, e deve ser abordada de forma multidisciplinar. Este estudo demonstra a necessidade de uma análise mais aprofundada sobre essa questão, associando gravidez e transplante renal.