versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.3 Rio de Janeiro mar. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015213.26212015
Um desastre é definido como resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema considerado vulnerável, causando danos humanos, materiais e/ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos, ambientais e sociais. Na perspectiva da saúde pública, os desastres se definem por seu efeito sobre as pessoas e sobre a infraestrutura dos serviços de saúde1.
A seca é um fenômeno climático causado pela insuficiência de precipitação pluviométrica (chuva) e caracterizado por provocar uma redução sustentada das reservas hídricas existentes, em uma determinada região, por um período de tempo prolongado. Já a estiagem é um período de baixa pluviosidade ou a sua ausência, em que a perda de umidade do solo é superior à sua reposição1.
Considera-se que a seca seja uma das principais ameaças de desastres naturais, cujos impactos são agravados quando associados a condições precárias de subsistência e à vulnerabilidade socioeconômica de uma determinada população. A ocorrência de seca causa, portanto, maiores impactos em regiões pobres ou em desenvolvimento, onde os fatores condicionantes e determinantes de saúde já se encontram comprometidos.
Os desastres decorrentes de seca prolongada afetam milhões de pessoas, contribuindo para a fome, a pobreza e a desnutrição, causando também surtos de doenças infectocontagiosas e respiratórias, entre outros agravos, além de influenciar no processo de migração de populações. Tal situação pode extrapolar a normalidade da rotina dos serviços e das infraestruturas de saúde, principalmente nos momentos em que estes se fazem mais necessários.
No Brasil, os desastres associados à estiagem e/ou à seca têm como característica relevante a possibilidade de abranger uma grande área, atingindo vários municípios ao mesmo tempo. Seus efeitos sobre a saúde humana são inúmeros e acabam por alterar o perfil de morbidade e mortalidade da população do território afetado2.
Para reduzir os impactos dessa tipologia de evento sobre os serviços de saúde é imprescindível o desenvolvimento de ações para o fortalecimento da capacidade de atuação em emergências em saúde pública associadas à estiagem e seca, visando à garantia da prestação de serviços e à redução dos riscos à saúde da população.
Em situações de estiagem e seca, que não são eventos que ocorrem de forma súbita, as Secretarias de Saúde dos Estados e dos Municípios devem considerar em seu planejamento ações de preparação para a resposta, incluindo a construção do cenário baseado no histórico das ocorrências, fazendo o levantamento dos recursos disponíveis e identificando as necessidades para uma resposta oportuna. Todo esse processo de trabalho amplia a capacidade de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS), no intuito de reduzir as vulnerabilidades da população e dos serviços de saúde.
Nesse sentido, a organização de documentos norteadores para subsidiar a atuação do setor saúde em emergência em saúde pública torna-se fundamental para a gestão da informação, para a avaliação das lições aprendidas, bem como para o aprimoramento do processo de trabalho de forma contínua e permanente.
Assim, este estudo visa contextualizar a ocorrência de seca e estiagem no Brasil, os efeitos desses desastres à saúde humana, bem como as ações a serem desenvolvidas pelo setor saúde para reduzir o risco de exposição da população das áreas atingidas, com ênfase no desenvolvimento das ações de vigilância da qualidade da água para consumo humano.
O número de desastres de origem natural no mundo tem crescido expressivamente nas últimas décadas, causando milhares de danos e mortes todos os anos e prejudicando, principalmente, a saúde física e mental de milhões de pessoas3-5.
A seca é caracterizada como desastre extensivo, pois sua ocorrência se dá de forma lenta e silenciosa sem apresentar impactos visíveis e estruturais em curto prazo. Essa característica a diferencia de outros tipos de desastres naturais que surgem de forma súbita e provocam danos visíveis de imediato, a exemplo das tempestades, terremotos e inundações, os quais são definidos como desastres intensivos5-7.
Por esse motivo, a estiagem e a seca são eventos de difícil mensuração, sendo complexo definir quando tais desastres se iniciam e quanto tempo poderão durar. Além disso, apesar de serem eventos climatológicos, seus impactos dependem das condições de vulnerabilidade das áreas e das pessoas atingidas8.
Como há uma dificuldade em se identificar os impactos e as necessidades provenientes da estiagem e seca, é fundamental compreender o comportamento dos referidos desastres e conhecer previamente as características geofísicas, ambientais, sociais, econômicas, políticas e de saúde do território.
Para analisar o cenário de desastres naturais no Brasil, no período de 2003 a 2014, e, especificamente, o de estiagem e seca, neste estudo considerou-se as ocorrências para as quais foram decretadas situação de emergência ou estado de calamidade pública, reconhecidas pelo Governo Federal.
Como pode ser observado no Gráfico 1, a maioria dos registros de decretos de situação de emergência ou estado de calamidade pública reconhecidas pelo Governo Federal no Brasil (68,41%) foi por eventos climatológicos, que envolvem os processos relacionados à estiagem, seca, incêndios florestais, chuvas de granizo, geadas, ondas de frio e de calor, seguido dos eventos hidrológicos (27,26%), que resultam em alagamentos, enchentes, inundações graduais e bruscas e movimentos de massa (deslizamentos)9.
Gráfico 1 Percentual de decretos de situação de emergência ou estado de calamidade pública reconhecidos pelo Governo Federal no Brasil, por classificação, no período de 2003 a 2014.
A partir da análise da distribuição espaço-temporal dos desastres provocados por estiagem e seca no Brasil, observa-se no Gráfico 2 que todas as regiões são atingidas por essa tipologia de desastre ao longo de todo o ano, de janeiro a dezembro, sendo que algumas regiões são mais afetadas em meses específicos, como a região Nordeste, que é mais afetada em maio.
Algumas projeções de impactos decorrentes da mudança do clima indicam que a seca se tornará mais frequente e mais intensa em locais que já apresentam condições favoráveis, o que pode agravar ainda mais a situação das áreas atingidas e ampliar os problemas de saúde já existentes3,5,10-12.
Os efeitos sobre a saúde humana podem extrapolar a capacidade de atuação da rotina dos serviços e da infraestrutura de saúde ou diminuir sua capacidade de atendimento, principalmente nos momentos quando esses serviços são mais necessários13,14.
As implicações da seca para a saúde humana são muitas. Alguns efeitos na saúde podem ser diretos, sentidos em curto prazo, a exemplo de doenças infecciosas gastrointestinais. Entretanto, alguns impactos são indiretos e com efeitos em longo prazo, muitas vezes manifestados meses ou anos após a ocorrência do evento, a exemplo da desnutrição e dos transtornos psicossociais, dificultando as medidas de prevenção. Além disso, os efeitos na saúde podem ser potencializados diante de várias condições já existentes, como as de nutrição e socioeconômicas da população, caracterizando cenários de susceptibilidades individuais e coletivas e de vulnerabilidades socioambientais5,8,11,15,16.
Os efeitos indiretos da seca impactam em outros fatores condicionantes ou determinantes da saúde, que resultam na alteração do perfil de morbidade e mortalidade da população do território afetado15,16.
Assim, a ocorrência e a magnitude dos danos à saúde humana e à infraestrutura de uma determinada localidade vão depender das vulnerabilidades (susceptibilidades) associadas às condições sociais, econômicas, políticas, ambientais, climáticas, geográficas e sanitárias do território, existindo uma relação direta entre o tipo de desastre e seus efeitos.
A alteração do perfil epidemiológico da localidade e a ocorrência de surtos e epidemias podem se constituir numa Emergência de Saúde Pública (ESP) e sobrecarregar os serviços de saúde locais, excedendo sua capacidade de resposta. Os principais comprometimentos reconhecidos são apontados no Quadro 1.
Quadro 1 Comprometimento dos sistemas, serviços e impactos sobre a saúde humana em decorrência da estiagem e seca.
De acordo com o documento “Desastres Naturais e Saúde no Brasil”, o baixo índice de chuvas pode afetar a quantidade e a qualidade da água consumida pela população por meio da eutrofização e proliferação de algas dos mananciais de captação; o comprometimento do sistema de distribuição de água e das fontes alternativas de abastecimento; a intermitência no fornecimento da água; a despressurização na rede de distribuição de água, com aumento da possibilidade de contaminação da mesma. A contaminação do ar por poeira e partículas oriundas de incêndios; e a alteração nos ciclos dos vetores, hospedeiros e reservatórios de doenças são outras formas de exposições ambientais dos humanos decorrentes da seca. Esses aspectos são fatores condicionantes e determinantes da saúde e podem trazer problemas como surtos e epidemias, culminando em cenários de susceptibilidades e vulnerabilidades individuais e coletivas17.
Como efeitos à saúde são citados os impactos à saúde mental e comportamental; e a alteração no comportamento das doenças transmissíveis e não transmissíveis17,18.
A segurança e a manutenção dos serviços de saúde, além da capacidade de atuar de forma preventiva e oportuna tornam-se, portanto, primordiais para a redução dos riscos a que as populações desses territórios atingidos pela seca podem estar expostas, principalmente pela ocorrência e recorrência prolongada dos períodos de estiagem e seca5,8,10.
Para diagnosticar efetivamente os impactos da estiagem e seca, bem como as estratégias adequadas para a sua mitigação, é necessário que os serviços de saúde estejam capacitados para a detecção oportuna de mudança no comportamento das doenças e agravos da região atingida, bem como para o atendimento, o diagnóstico e o tratamento adequado à população que busca os serviços de saúde. É essencial, ainda, o desenvolvimento de ações de educação em saúde para orientar tanto os profissionais de saúde quanto a população.
Uma vez que as populações locais são as que sofrem diretamente os impactos de um desastre como a seca, é imprescindível que os municípios estejam preparados e tenham a capacidade de adaptar-se para enfrentar o evento, de forma a manter um nível de organização e estrutura adequado para a continuidade do funcionamento do setor saúde, no intuito de reduzir os riscos de desastres e responder com maior eficiência aos efeitos decorrentes.
Esses impactos dependem também da resiliência local e do quão as localidades consideram essas ameaças ou perigos, que não podem ser eliminados, já que não é possível controlar os índices pluviométricos. Contudo, é possível preparar os serviços de saúde para que atuem de forma oportuna para reduzir o risco à saúde da população exposta a essas situações.
Nesse contexto, a preparação para uma resposta do setor saúde ao cenário das emergências em saúde pública e, especificamente, das causadas pela estiagem e seca no País apresenta-se como um desafio para o SUS, tendo em vista sua capilaridade, que exige um esforço conjunto das 26 Secretarias de Estado da Saúde e do Distrito Federal e das 5.570 Secretarias Municipais de Saúde, além do Ministério da Saúde.
A Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde, por meio da Portaria GM/MS nº 1378, de 09 de julho de 2013, possui a atribuição de coordenar a preparação e a resposta das ações de vigilância em saúde, nas emergências de saúde pública de importância nacional e internacional, bem como cooperar com Estados, Distrito Federal e Municípios na resposta às mesmas19.
Tendo em vista esta competência, a SVS publicou em 2014 o Plano de Resposta às Emergências em Saúde Pública, com objetivos de:
Definir a estratégia de atuação da Secretaria na resposta às emergências em saúde pública que superem a capacidade de atuação das esferas estadual e municipal;
Estabelecer atuação coordenada para a resposta, potencializando a utilização de recursos; permitir a interlocução intra e intersetorial para garantir resposta oportuna, eficiente e eficaz;
Adotar o Sistema de Comando de Operações e o Centro de Operações de Emergência em Saúde como ferramentas para gestão e coordenação da resposta;
Identificar as funções e as responsabilidades das diferentes áreas do setor saúde, e a interação com os meios de comunicação e mídia durante uma emergência em saúde pública; promover o cumprimento dos requisitos legais e as responsabilidades da Secretaria na resposta às emergências em saúde pública; e
Estabelecer a utilização de protocolos e procedimentos comuns para a resposta às emergências em saúde pública20.
Assim, foram elaborados Planos de Contingência específicos para cada tipologia de emergência em saúde pública e, dentre eles, o Plano de Contingência para Emergência em Saúde Pública por Seca e Estiagem. O objetivo do referido Plano está em consonância com o Plano de Resposta às Emergências em Saúde Pública, ou seja, visa definir as responsabilidades da SVS no desenvolvimento das ações de resposta às emergências em saúde pública por seca e estiagem21.
O Plano de Contingência para Emergência em Saúde Pública por Seca e Estiagem apresenta os principais comprometimentos relacionados à ocorrência de secas e estiagens que podem se suceder nos sistemas e serviços de uma localidade, gerando impactos negativos sobre os fatores condicionantes e determinantes de saúde, tendo como resultado o adoecimento da população. Também elenca as principais ações que devem ser desenvolvidas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) nas três esferas de gestão para o enfrentamento da situação21.
A Estratégia do Plano de Contingência para Emergência em Saúde Pública por Seca e Estiagem é baseada nos cenários de risco identificados e na capacidade de resposta dos entes estadual e local. Com base em tais cenários de risco, as atividades implementadas são classificadas em quatro níveis de resposta (0, I, II e III). Os níveis de resposta são determinados de acordo com as condições e os pressupostos que caracterizam o cenário de risco previsto, seja pela evolução das informações monitoradas, pela ocorrência do evento ou, principalmente, pela dimensão do impacto. Para cada nível de resposta são definidos indicadores, bem como as atividades que devem ser desenvolvidas21.
A organização do processo de atuação do SUS em emergência em saúde pública por seca e estiagem visa à redução da exposição da população e dos profissionais de saúde, além da preparação dos serviços para fazer frente aos seus impactos. As atividades devem ser desenvolvidas de forma contínua e permanente, integrada e intersetorial, pois envolvem múltiplos atores e, assim, devem ser definidas as ações no âmbito das competências de cada setor no intuito de garantir uma resposta oportuna e eficiente, bem como a segurança e o bem-estar da população e dos profissionais envolvidos nesse processo.
Considerando que um período de seca e estiagem pode durar meses ou até anos, o setor saúde deve internalizar um processo de trabalho contínuo e permanente, implementando políticas, planos e estratégias para ampliar a sensibilidade do sistema para identificação de potenciais mudanças no comportamento das doenças e agravos e fortalecer a sua capacidade de preparação e resposta.
Nesse contexto, a organização do setor saúde deve basear a sua atuação na gestão dos riscos, com ações de redução destes, de manejo da emergência e de recuperação dos seus efeitos, conforme descrição abaixo:
Redução do risco: ações que tenham por objetivo evitar ou minimizar os impactos da emergência em saúde pública. Envolve atividades para o fortalecimento da capacidade de atuação e organização do processo de trabalho intersetorial e interinstitucional;
Manejo da emergência: ações voltadas para o atendimento à emergência com a intensificação das atividades de rotina e o alerta aos serviços de saúde sobre a necessidade de ampliar a atuação da vigilância e da atenção à saúde para identificar e adotar as medidas necessárias para o controle de surtos, diagnóstico e tratamento oportunos;
Recuperação: Etapa em que são implementadas as medidas que iniciam o processo de restabelecimento das condições de vida da comunidade afetada. Engloba dois aspectos: um que tende a restabelecer os serviços básicos indispensáveis (abastecimento de água, esgotamento sanitário, energia elétrica, sistema de comunicação), num curto prazo e de forma transitória, e, num segundo momento, direcionam-se as soluções permanentes e de longo prazo22.
O setor saúde tem responsabilidades em todas as etapas da gestão de riscos das situações de estiagem e seca, contribuindo para caracterizar o cenário de atuação e promover ações de proteção da saúde, tanto em uma perspectiva de gestão corretiva (risco existente) quanto prospectiva/preventiva (risco futuro). Dentre essas responsabilidades destacam-se as pontuadas a seguir:
Análise de situação de saúde local e regional, que deve considerar o cenário da ocorrência de seca e estiagem, o levantamento e a análise do perfil epidemiológico da população, o levantamento e a avaliação dos recursos disponíveis no setor saúde, e a identificação das necessidades;
Articulação com os atores principais envolvidos em situações de seca e estiagem, intersetorial e interinstitucional, local e regional;
Elaboração do Plano de Contingência local para resposta à emergência em saúde pública por estiagem e seca;
Desenvolvimento de ações de capacitação e treinamento das equipes de saúde tanto da vigilância quanto da assistência;
Definição de estratégia de educação em saúde (profissionais e população vulnerável);
Implantação e fortalecimento do Comitê de Saúde em Desastres;
Monitoramento das doenças de transmissão hídrica e alimentar e das doenças não transmissíveis nas comunidades de risco;
Promoção de ações de segurança alimentar e nutricional, contribuindo com as ações e metas de redução da pobreza, com a inclusão social e com a garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável;
Intensificação das ações de vigilância em saúde e de atenção básica;
Estabelecimento de mecanismos de integração de ações envolvendo todos os níveis de cobertura de assistência e complexidade da atenção à saúde;
Estabelecimento e ativação de fluxo de atenção à saúde, da atenção básica à hospitalar, laboratorial e farmacêutica;
Estabelecimento de plano de remanejamento de insumos e serviços em casos de surtos e epidemias;
Implementação de fluxo de informação entre os profissionais de saúde e gestores;
Implementação de fluxo de comunicação para os gestores, imprensa, entidades não governamentais e população em geral; e
Avaliação contínua das ações de resposta para determinar ações futuras.
Essas atividades são transversais e envolvem diversos setores no âmbito do SUS, destacando-se Vigilância em Saúde; Atenção à Saúde; Laboratórios; Medicamentos, Insumos e Equipamentos; Comunicação em Saúde; e Orientação e Educação em Saúde.
A vigilância da qualidade da água para consumo humano consiste no conjunto de ações adotadas sistematicamente pelas autoridades de saúde pública para garantir que a água consumida pela população atenda à legislação de potabilidade e não ofereça riscos à saúde da população23.
O Programa Nacional de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Vigiagua) visa garantir à população o acesso à água em quantidade suficiente e com qualidade compatível com o padrão de potabilidade estabelecido na legislação vigente, para reduzir a morbimortalidade por doenças e agravos de transmissão hídrica e, consequentemente, garantir a promoção da saúde23.
O principal instrumento do Vigiagua é a Portaria GM/MS nº 2914/2011, que define o padrão de potabilidade da água para consumo humano. O consumo da água pela população deve ser precedido de tratamento com vista a evitar a exposição a patógenos e substâncias perigosas que possam vir ocorrer, possibilitando a propagação de doenças e outros agravos23.
As principais ações rotineiras desenvolvidas pela vigilância da qualidade da água para consumo humano são: monitoramento sistemático da qualidade da água consumida pela população; inspeções sanitárias das diversas formas de abastecimento para consumo humano; avaliação e gerenciamento do risco à saúde imposto pelas condições sanitárias das formas de abastecimento; divulgação de informação à população sobre a qualidade da água e os riscos à saúde; apoio às ações de educação em saúde e mobilização social; entre outras23.
Em situações de emergências em saúde pública por seca e/ou estiagem, como a escassez hídrica, a atuação da vigilância da qualidade da água para consumo humano é dificultada, pois o desafio é buscar soluções que compatibilizem a necessidade de economia de água com proteção sanitária e, consequentemente, proteção da saúde humana, sem perder de vista as ações estruturantes que precisam ser desenvolvidas pelo setor saneamento para assegurar o acesso à água, em quantidade e com qualidade, para toda a população.
Neste contexto, é imprescindível que se preserve a água em quantidade e qualidade adequadas para o consumo humano e que se reduzam os usos menos nobres desta. Algumas demandas de água são imprescindíveis para a saúde da população, como aquela para ingestão, considerada o uso mais nobre à vida, que não admite reduções do consumo; e para higiene pessoal, preparação/cozimento de alimentos, lavagem de roupas, lavagem de utensílios domésticos e afastamento de excretas, relevantes para a manutenção da higiene pessoal e salubridade dos ambientes, que podem ser reduzidos de forma ponderada.
Diante desse cenário emergencial, a vigilância da qualidade da água para consumo humano deve atuar em articulação com outras áreas do setor saúde, pautada na gestão do risco, para responder em tempo oportuno e evitar o adoecimento da população em decorrência das situações de seca e estiagem.
As ações de vigilância da qualidade da água para consumo humano devem ser desenvolvidas de acordo com os diferentes cenários de risco de cada território, entretanto, algumas ações devem ser garantidas durantes eventos de seca e/ou estiagem, tais como:
Elaborar, em conjunto com os responsáveis pelo sistema, solução alternativa coletiva de abastecimento de água, plano de ação contendo a definição de estratégias e atividades para a minimização de risco à saúde;
Realizar inspeções sanitárias das formas de abastecimento de água, em especial das soluções alternativas utilizadas para abastecimento emergencial como poços, cacimbas, chafarizes e carros-pipa e, quando necessário, proibição temporária do uso, até que sejam realizadas melhorias das condições sanitárias;
Identificar outras fontes seguras para a população, quando necessário, mesmo que em outros municípios;
Realizar o monitoramento da qualidade da água para consumo humano, priorizando os locais mais vulneráveis;
Providenciar barreiras sanitárias em articulação com a vigilância sanitária e outros parceiros para realizar a fiscalização dos veículos responsáveis pelo fornecimento de água, como, por exemplo, os carros-pipa;
Apoiar ações de educação em saúde juntamente com os demais profissionais de saúde e os responsáveis pelo abastecimento de água por meio de carros-pipa (pipeiros), em especial na orientação da população quanto ao manuseio e armazenamento adequado de água, limpeza e desinfecção de reservatórios e tratamento intradomiciliar da água para consumo humano (filtração e acréscimo de duas gotas de solução de hipoclorito de sódio a 2,5% a cada um litro de água ou, em caso de indisponibilidade deste produto, realização da filtração seguida da fervura);
Definir fontes prioritárias para o abastecimento dos carros-pipa, priorizando a captação em Estação de Tratamento de Água com tratamento convencional e, quando não for possível, priorizar a captação em mananciais subterrâneos ou superficiais e realizar o tratamento mínimo por meio de filtração e desinfecção, antes da distribuição para a população;
Participar dos Comitês de Combate à Seca nos locais onde estiverem instituídos;
Solicitar que os responsáveis pelo sistema ou pela solução alternativa coletiva de abastecimento de água monitorem de forma sistemática a concentração de cianobactérias nos pontos de captação dos mananciais superficiais e aprimorem o controle operacional das Estações de Tratamento de Água, incluindo lavagens mais frequentes dos filtros rápidos para se evitar o acúmulo de algas e cianobactérias no leito filtrante, que pode acarretar a liberação de cianotoxinas na água tratada; e,
Manter articulação com as unidades de emergência (hospital e pronto atendimento) para alertar sobre o possível aumento no número de casos de doenças de transmissão hídrica, especialmente Doença Diarreica Aguda, e aumento do número de casos de transtornos psicossociais e comportamentais.
A situação emergencial de seca e/ou estiagem proporciona o debate da universalização do acesso à água potável e saneamento, do uso de novas tecnologias para minimização do desperdício, do tratamento de água em emergências e do consumo consciente.
O setor saúde pode também incentivar a população e os profissionais de saúde a realizarem algumas mudanças de atitudes para evitar o desperdício e fazer o uso consciente da água dentro das unidades de saúde e dos seus domicílios, tais como:
Fechar a torneira para escovar os dentes; ensaboar-se com o chuveiro fechado;
Ficar atento a vazamentos; não utilizar água potável para lavar carros, calçadas, frentes de imóveis e ruas; não utilizar água potável para encher piscinas ou outras atividades não classificadas como consumo humano (ingestão, higiene pessoal e preparação de alimentos); lavar frutas e verduras em bacias com água e escova, enxaguando em água corrente;
Não descongelar alimentos usando água da torneira; juntar roupa suja para lavar;
Ficar atento ao uso do vaso sanitário, não descartando papeis, fio dental ou outro objeto no mesmo; e,
Utilizar baldes, no lugar de mangueiras, para regar plantas ou dar banho em animais, dentre outras.
Além disso, o setor saúde pode incentivar a coleta de água da chuva e de máquinas de lavar, para uso geral, como, por exemplo, lavar calçadas e dar descargas. Ainda, outras ações podem ser recomendadas, como a substituição das torneiras convencionais por outras modernas de fechamento automático e troca da descarga do banheiro por um tipo com caixa acoplada.
As responsabilidades do setor saúde em uma emergência em saúde pública são inerentes ao que é de sua competência para proteger a saúde das pessoas e garantir a prestação dos serviços, reduzindo ao máximo os impactos e a exposição aos fatores de risco.
Para isso, é imprescindível a preparação prévia e o conhecimento dos atores envolvidos na preparação e resposta. Nesse sentido, as responsabilidades e as ações do setor saúde para situações de emergência em saúde pública por seca e estiagem devem ser apresentadas de forma clara e sistematizadas de modo a permitir a visualização dos setores e das ações a serem desenvolvidas.
O fortalecimento da capacidade de atuação do SUS em emergência de saúde pública por seca e estiagem apresenta-se como um desafio ao setor saúde. Assim, é indispensável a organização dos serviços, por meio da instituição de comitês locais de saúde em desastres e a elaboração de Planos de Contingência, tendo em vista que essa organização pode garantir uma atuação oportuna e reduzir o risco à saúde da população e dos profissionais de saúde.
Em situações de seca e estiagem, que não é um evento que ocorre de forma súbita, as Secretarias de Saúde dos Estados e Municípios devem considerar em seu planejamento ações de preparação para a resposta, incluindo a construção dos cenários baseados no histórico das ocorrências, fazendo o levantamento dos recursos disponíveis e identificando as necessidades para uma resposta adequada.
Todo esse processo de trabalho para o fortalecimento da capacidade de atuação do SUS tem por intuito reduzir as vulnerabilidades da população e dos serviços de saúde.
A organização e a preparação prévia dos serviços e equipes de saúde são fundamentais para a gestão da informação e para a avaliação das lições aprendidas, bem como para o aprimoramento do processo de trabalho, que se desenvolve de forma contínua e permanente.
A vigilância da qualidade da água para consumo humano também enfrenta muitos obstáculos para conseguir atingir seu objetivo de assegurar que a água distribuída em situações emergenciais seja segura e promova saúde.
Além disso, por se tratar de tema transversal, o desafio maior de todos os setores envolvidos na temática da água é buscar soluções estruturantes e definitivas, além das tecnologias emergenciais para enfrentamento das situações de escassez hídrica.