versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.41 no.2 São Paulo abr./jun. 2019 Epub 18-Out-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0135
Em maio de 2018, uma grave crise de abastecimento impactou significativamente o sistema de saúde do Brasil. Devido à insatisfação popular, aliada ao aumento dos preços do diesel, uma greve dos motoristas de caminhão ocorreu em 24 estados brasileiros. Mais de 500 bloqueios nas estradas afetaram o sistema de abastecimento nacionalmente1.
As ferrovias são raras no Brasil e o sistema de transporte e abastecimento interno do país é fortemente dependente de rodovias e da malha rodoviária. Além disso, as dimensões continentais do Brasil dificultam ainda mais o fornecimento para as regiões do interior do país. Nesse contexto, surgiu uma preocupação: quantos dias o país poderia suportar tendo todo o seu sistema de abastecimento interrompido? Apesar dos esforços do Governo Federal, o fornecimento de insumos para a saúde foi interrompido na maioria das regiões, e muitas organizações adotaram estratégias de racionamento para evitar a completa falta de material.
Estratégias de racionamento em organizações de saúde representam uma questão controversa. Definir se, quando, como e quanto não é trivial. Esse dilema médico e gerencial pode levar à paralisia e inércia dos tomadores de decisão. Discussões adicionais e preparação prévia para esses momentos podem ser a solução para uma melhor gestão de crises.
Nas unidades de hemodiálise, essa crise de abastecimento atingiu proporções maiores, uma vez que a falta de material causaria diretamente a morte dos pacientes no curto prazo. Existem 758 centros de hemodiálise no Brasil, responsáveis diretos por 126.583 pacientes crônicos em hemodiálise de manutenção2. Segundo dados disponíveis, quando a diálise é interrompida, os pacientes tendem a viver de seis a oito dias3-5. Para evitar esse cenário, estratégias de racionamento foram amplamente adotadas pelas unidades de hemodiálise. O desafio foi criar estratégias que pudessem economizar recursos limitados e não colocar a vida dos pacientes em risco elevado. Para equilibrar isso e não cruzar o limiar do "risco aceitável", não apenas conhecimento médico e técnico era necessário, mas também uma certa dose de criatividade.
Redução do fluxo de dialisato e redução do tempo de tratamento, de uma sessão convencional de quatro horas para uma sessão de três horas, foram as estratégias mais adotadas pelas unidades de hemodiálise. Hipercalemia e hipervolemia foram as principais preocupações médicas de curto prazo. Embora menos comuns, os centros com uma deficiência mais ampla de materiais de saúde, como agulhas e heparina, optaram por alterar a frequência do tratamento - de três para duas vezes por semana.
Defender a redução das doses de hemodiálise em pacientes renais crônicos é uma situação incomum para os nefrologistas. Embora essa decisão fosse apoiada pela maioria dos pacientes, foi um dilema para muitos colegas. Além de decidir pelo racionamento ou não, decidir o momento ideal de implementação das medidas também foi um desafio, talvez mais difícil.
Também adotamos estratégias de racionamento durante uma semana em nossas unidades de hemodiálise, implementando-as desde a interrupção do abastecimento até o restabelecimento do fornecimento normal. A redução do fluxo de dialisato (de 500 para 300 mL por minuto) e a redução do tempo de tratamento (de 4 para 3 horas por sessão) foram preferidas à redução da frequência de tratamento. Os médicos assistentes foram instruídos a individualizar a avaliação médica e a decisão para cada paciente a fim de evitar a hipervolemia. Portanto, pacientes com elevado ganho de peso interdialítico foram submetidos a maior tempo de ultrafiltração e correção da sobrecarga de fluidos. Entre os cerca de 1.700 pacientes em hemodiálise em seis unidades de tratamento, aumentos nas taxas de hospitalização e mortalidade não foram observados.
No turbilhão da crise, também realizamos uma pesquisa online entre os nefrologistas brasileiros. Um total de 50 nefrologistas responderam sobre as estratégias de racionamento. A idade média dos entrevistados foi de 43,8 anos (DP = 10,90), 44% eram diretores médicos ou coordenadores de unidades de diálise, e a maioria (62%) era do sexo masculino.
Metade dos entrevistados iniciaria estratégias de racionamento imediatamente após a interrupção do abastecimento, enquanto 40% adotariam estratégias de racionamento apenas quando os níveis de estoque da unidade de hemodiálise fossem considerados baixos. Ninguém discordou da necessidade de adotar estratégias de racionamento no contexto de uma grave crise de abastecimento afetando o sistema de saúde.
Dentre as estratégias adotadas no início do racionamento, a redução do fluxo do dialisato (escolhido por 68% dos entrevistados) e a redução do tempo de tratamento (escolhido por 52%) foram as mais comuns. A redução da frequência de hemodiálise de três para duas vezes por semana foi evitada e considerada o último recurso por 84% dos nefrologistas.
A diferença entre os gêneros também foi observada neste estudo. Análises de regressão revelaram que as mulheres entrevistadas adotariam significativamente menos estratégias de racionamento simultâneas do que os homens entrevistados (b = -0,44, SE = 0,12, p < 0,01). Esse resultado foi robusto após terem sido controladas a idade e função dos entrevistados.
Acreditamos que nossos resultados sejam representativos e estejam de acordo com o que foi feito na maioria das unidades de hemodiálise durante essa grave crise de abastecimento. A greve durou cerca de dez dias, mas suas repercussões se estenderam por alguns dias até uma completa normalização do fornecimento. Além das perdas financeiras e da instabilidade política, a crise nos ensinou algumas lições de gestão. Finalmente, esperamos que nossa experiência e resultados possam ajudar os colegas ao lidar com o dilema das estratégias de racionamento em situações futuras de gestão de crises.