versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.31 no.4 São Paulo 2019 Epub 15-Ago-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20192018142
A perda auditiva na infância afeta o desenvolvimento da percepção auditiva da fala e da linguagem, provocando impactos negativos na comunicação das crianças, na sua interação com o meio social e em seu desenvolvimento global. Para minimizar tais consequências, ressalta-se a importância da detecção e intervenção precoces(1-4).
O implante coclear (IC) é uma alternativa eficaz para o tratamento da perda auditiva de graus severo ou profundo, sobretudo, quando realizado nos primeiros anos de vida, pois propicia o desenvolvimento das habilidades auditivas e, consequentemente, favorece a aquisição da linguagem falada(5-8). A implantação nos primeiros anos de vida possibilita que o processo maturacional do córtex auditivo ocorra adequadamente em decorrência da estimulação elétrica(5-7).
Estudos que correlacionaram o desempenho auditivo com a idade de cirurgia do IC demonstraram que as crianças implantadas antes dos 12 meses(9,10), 18 meses(11), 24 meses(12,13) e 36 meses de idade(14,15) apresentaram habilidades auditivas superiores quando comparadas àquelas operadas mais tardiamente(16,17).
Contudo, apesar da idade ser um fator de extrema importância, sabe-se que existem outras variáveis influenciadoras para o desenvolvimento das habilidades auditivas e da linguagem falada, por exemplo, a terapia fonoaudiológica e a adesão da família ao processo de habilitação e reabilitação auditivas, dentre outras(4).
Assim, faz-se necessário o acompanhamento periódico das crianças usuárias de IC não apenas para realizar os ajustes relacionados à programação do dispositivo eletrônico, mas também para verificar o desenvolvimento e o ritmo da evolução das habilidades auditivas e linguísticas. Para avaliar a habilidade da percepção auditiva da fala no silêncio, existem diferentes procedimentos, entre eles, o Glendonald Auditory Screening Procedure (GASP)(18,19), que tem se mostrado um instrumento de avaliação efetivo para avaliar o desempenho auditivo de crianças com perda auditiva(3,20-22).
Nesse contexto, ressalta-se a importância da determinação de marcadores clínicos de desenvolvimento das habilidades auditivas no processo terapêutico, bem como a imprescindibilidade de estudos longitudinais para a prática clínica, uma vez que estes permitem caracterizar o real desempenho alcançado pela população pesquisada, além de evidenciar a influência de diferentes fatores e o desenvolvimento e o ritmo de evolução das habilidades auditivas e da linguagem falada, que podem diferir entre as crianças implantadas(1,2,7,8,14,23). Diante do exposto, os objetivos do presente estudo foram: I) Verificar a influência da idade de implantação no desenvolvimento das habilidades de reconhecimento auditivo em conjunto fechado e compreensão auditiva em crianças usuárias de implante coclear unilateral, comparando grupos distintos e II) Determinar os marcadores clínicos de desenvolvimento destas habilidades.
Trata-se de um estudo longitudinal retrospectivo, com avaliação dos dados levantados mediante a verificação dos prontuários de 1214 crianças usuárias de IC, regularmente matriculadas na Seção de Implante Coclear do Centro de Pesquisas Audiológicas do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC/USP), no período de janeiro de 1990 a janeiro de 2015. Este trabalho obteve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Instituição, processo número 298/2011.
Foram previamente selecionadas 389 crianças a partir dos seguintes critérios de inclusão: ter realizado a cirurgia e a ativação do IC até os 36 meses de idade, com, no mínimo, 60 meses de uso do dispositivo eletrônico e ser usuária de IC sistematicamente, ou seja, sem interrupção prolongada de uso (acima de três meses).
Foram excluídas as crianças que apresentaram pelo menos um dos seguintes critérios: inserção parcial dos eletrodos do IC na cóclea; diagnóstico de malformação; cirurgia de reimplante nos cinco primeiros anos de uso do IC; crianças com comprometimentos associados; ausência nos acompanhamentos de rotina; uso assistemático do dispositivo eletrônico; uso de IC bilateral; e crianças com dados insuficientes registrados nos prontuários.
Após a aplicação dos critérios de elegibilidade, a casuística foi composta por 180 crianças, que foram divididas em três grupos distintos: (G1): 42 crianças implantadas ≤ 18 meses de idade (média de 15,40±2,56 meses), (G2): 56 entre 19 e 24 meses (média de 21,36±1,70 meses) e (G3) 82 entre 25 e 36 meses (30,52 meses±3,43).
Para verificar o desenvolvimento das habilidades auditivas de reconhecimento auditivo em conjunto fechado e compreensão auditiva, foram analisadas as Provas 5 e 6 do GASP, elaborado por Erber(18) e adaptado para o português brasileiro por Bevilacqua e Tech(19). A Prova 5 avalia a habilidade de reconhecimento auditivo em conjunto fechado e é composta por palavras monossílabas, dissílabas, trissílabas e polissílabas, totalizando 12 vocábulos apresentados por meio de figuras. A Prova 6 analisa a habilidade de compreensão auditiva e é composta por dez perguntas previamente selecionadas. Ambas as provas foram realizadas no silêncio e os resultados foram calculados e apresentados em porcentagem(19).
Para acompanhar a evolução das crianças nos procedimentos durante os 60 primeiros meses de uso do IC, foram determinados nove retornos da criança ao Centro para mapeamento do IC, com agrupamento de meses: 3±1meses após a ativação; 6±1 meses; 11±1 meses; 15±2 meses; 22±2 meses; 30±3 meses; 41±4 meses; 53±4 meses; e 68±6 meses, ao considerar as 180 crianças avaliadas.
Para análise comparativa do desempenho nas provas aplicadas entre os grupos, utilizou-se o Teste de Kruskal-Wallis. O nível de significância adotado foi de 0,05.
As 180 crianças analisadas neste estudo compareceram nos nove retornos de acompanhamento. No entanto, observa-se uma inconsistência em relação ao número de crianças avaliadas em cada um dos retornos. Para justificar tal achado, há duas possibilidades: ausência das habilidades auditivas necessárias para a execução das provas ou inexecução por quaisquer outros motivos não especificados nos prontuários. Assim, não foi possível realizar a análise comparativa entre os grupos nos dois primeiros devido ao número reduzido de crianças. Desta forma, a análise foi realizada do terceiro ao nono retorno.
A análise comparativa do escore obtido para as habilidades de reconhecimento auditivo em conjunto fechado (Prova 5) e compreensão auditiva (Prova 6) estão apresentadas nas Tabelas 1 e 2, respectivamente.
Tabela 1 Análise comparativa para a habilidade de reconhecimento auditivo em conjunto fechado (Prova 5) entre os grupos G1, G2 e G3, do terceiro ao nono retorno
Retorno | Grupos | N | Mediana | Média | DP | p |
---|---|---|---|---|---|---|
3 | G1 | 5 | 50,00 | 51,67 | 25,27 | 0,386 |
G2 | 18 | 62,50 | 61,11 | 32,41 | ||
G3 | 23 | 66,67 | 69,20 | 25,02 | ||
4 | G1 | 13 | 83,33 | 79,17 | 19,98 | 0,225 |
G2 | 34 | 83,33 | 76,47 | 25,79 | ||
G3 | 44 | 70,84 | 65,91 | 30,04 | ||
5 | G1 | 31 | 75,00 | 72,99 | 29,05 | 0,366 |
G2 | 41 | 100,00 | 81,20 | 28,01 | ||
G3 | 54 | 97,92 | 82,18 | 24,62 | ||
6 | G1 | 39 | 100,00 | 83,33 | 24,95 | 0,540 |
G2 | 48 | 100,00 | 88,72 | 22,25 | ||
G3 | 68 | 100,00 | 89,52 | 18,93 | ||
7 | G1 | 35 | 100,00 | 95,83 | 9,95 | 0,878 |
G2 | 51 | 100,00 | 94,45 | 16,53 | ||
G3 | 67 | 100,00 | 92,72 | 18,30 | ||
8 | G1 | 23 | 100,00 | 98,19 | 8,69 | 0,428 |
G2 | 40 | 100,00 | 98,13 | 7,43 | ||
G3 | 53 | 100,00 | 95,68 | 14,29 | ||
9 | G1 | 42 | 100,00 | 97,02 | 11,43 | 0,161 |
G2 | 56 | 100,00 | 99,93 | 0,56 | ||
G3 | 82 | 100,00 | 98,88 | 8,36 |
Legenda: N = número de crianças que realizaram a prova; DP = Desvio Padrão. Teste de Kruskal-Wallis
Tabela 2 Análise comparativa para a habilidade de compreensão auditiva (Prova 6) entre os grupos G1, G2 e G3, do terceiro ao nono retorno
Retorno | Grupos | N | Mediana | Média | DP | p |
---|---|---|---|---|---|---|
3 | G1 | 0 | - | - | - | 0,313 |
G2 | 4 | 25,00 | 25,00 | 12,91 | ||
G3 | 9 | 50,00 | 45,56 | 33,58 | ||
4 | G1 | 7 | 30,00 | 34,29 | 20,70 | 0,963 |
G2 | 12 | 35,00 | 36,67 | 21,46 | ||
G3 | 18 | 30,00 | 39,44 | 28,59 | ||
5 | G1 | 12 | 35,00 | 44,17 | 35,02 | 0,700 |
G2 | 27 | 60,00 | 53,33 | 31,01 | ||
G3 | 27 | 50,00 | 49,63 | 30,32 | ||
6 | G1 | 23 | 80,00 | 69,13 | 30,74 | 0,223 |
G2 | 37 | 80,00 | 70,81 | 29,57 | ||
G3 | 45 | 50,00 | 59,78 | 30,49 | ||
7 | G1 | 30 | 80,00 | 77,33 | 25,45 | 0,595 |
G2 | 45 | 90,00 | 76,00 | 31,72 | ||
G3 | 58 | 80,00 | 71,72 | 29,98 | ||
8 | G1 | 21 | 100,00 | 87,62 | 25,48 | 0,094 |
G2 | 38 | 100,00 | 88,42 | 21,63 | ||
G3 | 47 | 90,00 | 79,79 | 26,17 | ||
9 | G1 | 42 | 100,00 | 87,38 | 23,99 | 0,397 |
G2 | 56 | 100,00 | 87,50 | 24,71 | ||
G3 | 82 | 100,00 | 84,76 | 25,86 |
Legenda: N = número de crianças que realizaram a prova; DP = Desvio Padrão. Teste de Kruskal-Wallis
Quando comparados os desempenhos dos grupos, tanto na prova de reconhecimento auditivo em conjunto fechado (Tabela 1) como na prova de compreensão auditiva (Tabela 2), não houve diferença estatisticamente significante, sendo p>0,05 em todas as comparações, isto é, não houve influência da idade cronológica nos resultados obtidos entre os grupos G1, G2 e G3. Portanto, para determinar os marcadores clínicos de desenvolvimento destas duas habilidades, foi considerada a casuística como um todo, em cada retorno.
Legenda: °crianças com resultados desviantes; Retorno 1 = (N=3); Retorno 2 = (N=16); Retorno 3 = (N=46); Retorno 4 = (N=91); Retorno 5 = (N=126); Retorno 6 = (N=155); Retorno 7 = (N=153); Retorno 8 = (N=116); Retorno 9 = (N=180)
Figura 1 Desempenho das crianças na Prova 5 do GASP, que avalia a habilidade de reconhecimento auditivo em conjunto fechado durante, no mínimo, 60 meses de uso do IC
Legenda: °crianças com resultados desviantes; Retorno 1 = (N=1); Retorno 2 (N=6); Retorno 3 = (N=13); Retorno 4 = (N=37); Retorno 5 = (N=66); Retorno 6 (N=105); Retorno 7 = (N=133); Retorno 8 = (N=106); Retorno 9 (N=180)
Figura 2 Desempenho das crianças na Prova 6 do GASP, que avalia a habilidade de compreensão auditiva durante, no mínimo, 60 meses de uso do IC
As Figuras 1 e 2 demonstram respectivamente a caracterização longitudinal da casuística quanto ao desenvolvimento das habilidades de reconhecimento auditivo em conjunto fechado (Prova 5) e compreensão auditiva (Prova 6).
Os dados obtidos neste estudo não seguiram uma distribuição normal, o que justificou a opção pelo uso da mediana, 1°Quartil (Q25) e 3°Quartil (Q75) para a apresentação dos marcadores clínicos de desenvolvimento. A variabilidade dos resultados pode ser observada por meio dos valores considerados discrepantes (°).
A partir do terceiro retorno (6±1 meses), o escore do desempenho na habilidade auditiva de reconhecimento auditivo em conjunto fechado aumentou de forma gradual em um número maior de crianças (Figura 1). No quarto retorno (15±2 meses), verificou-se mediana com escore em 79,17%, Q25 de 50% e Q75 de 100%. No sexto retorno (30±3 meses), a mediana foi observada em 100%, Q25 de 83,33% e Q75 de 100%, sendo que, no sétimo retorno (41±4 meses), a habilidade de reconhecimento auditivo em conjunto fechado no silêncio encontra-se desenvolvida, com mediana em 100%, Q25 de 100% e Q75 de 100%.
Adicionalmente, observa-se na Figura 2 que, a partir do quarto retorno (15±2 meses), a habilidade de compreensão auditiva no silêncio começou a ser observada de forma mais consistente, com um aumento do escore do desempenho de forma gradual em um número maior de crianças, semelhante ao observado na habilidade de reconhecimento auditivo em conjunto fechado. No sétimo retorno (41±4 meses), a mediana foi observada com escore em 80%, Q25 de 55% e Q75 de 100%, constatando que a habilidade de compreensão auditiva está desenvolvida na maioria das crianças no oitavo retorno (53±4 meses), mediana com escore em 100%, Q25 de 70% e Q75 de 100%.
O Apêndice A - Figura 1A e o Apêndice B - Figura 2B, ilustram graficamente os marcadores clínicos de desenvolvimento das habilidades de reconhecimento e compreensão auditivas, respectivamente. Ressalta-se a possibilidade da impressão destes, uma vez que poderão ser utilizados na prática clínica, auxiliando no processo de habilitação e reabilitação auditivas em crianças usuárias de IC.
Neste estudo, foram acompanhadas 180 crianças quanto às habilidades de reconhecimento e compreensão auditivas no silêncio, durante os primeiros cinco anos de uso do IC. As Provas 5 e 6 do GASP foram escolhidas por representarem as habilidades auditivas mais avançadas, ou seja, pressupõe-se que as habilidades de detecção e discriminação auditivas da fala tenham sido adquiridas anteriormente, de modo que as crianças que alcançam o reconhecimento e a compreensão auditivas estarão aptas para as interações linguísticas verbais por meio da via auditiva. Salienta-se que a aplicação das Provas 5 e 6 do GASP ocorreu em crianças com idade cronológica inferior a 60 meses, apesar de este ter sido elaborado para crianças com perda auditiva profunda maiores de cinco anos, tendo como referência, na época em que foi desenvolvido, no ano de 1982, o uso de aparelhos de amplificação sonora individuais (AASI)(18,19). Fundamenta-se a sua aplicação em crianças menores na medida em que se sabe que o IC possibilitou o acesso auditivo aos sons da fala logo após a ativação dos eletrodos, promovendo o desenvolvimento das habilidades auditivas mais precocemente.
Quando comparados os desempenhos dos três grupos, não houve diferença estatisticamente significante, ou seja, não foi observada a influência da idade da criança no momento da implantação nos resultados das Provas 5 e 6 do GASP (Tabelas 1 e 2). Alguns fatores podem justificar este resultado. Inicialmente, isto pode ter ocorrido pelo fato de as 180 crianças analisadas terem sido implantadas antes dos 36 meses, considerado o período sensível para se obter os melhores benefícios com este dispositivo. Dados semelhantes foram relatados em outros estudos, ao demonstrarem que crianças implantadas precocemente apresentaram melhor desempenho auditivo e de linguagem oral(1,7,14,24).
A privação sensorial nos primeiros anos de vida influencia a maturação das vias auditivas do sistema nervoso central (SNC), com impacto nas habilidades que envolvem o processamento auditivo e o desenvolvimento da linguagem falada. A percepção auditiva constitui-se por dois tipos de processamento, sendo eles o bottom-up, que compreende a informação sensorial, e o top-down, que engloba aspectos como cognição, memória, linguagem e atenção(14,25).
Outro fator é que, embora os grupos tenham apresentado um desempenho semelhante, destaca-se que as provas 5 e 6 do GASP podem não ser sensíveis para revelar nuanças no desenvolvimento das habilidades auditivas. Portanto, a não significância da idade na cirurgia dentro do período sensível de plasticidade neuronal não deve abrandar o valor da diminuição da idade na cirurgia. Assim, quanto antes for diagnosticada a perda auditiva de grau severo ou profundo, sem benefícios com o AASI, a criança deve receber a indicação do IC, pois a exposição precoce aos estímulos auditivos e à linguagem incidental possibilita que a criança tenha maiores chances de desenvolver as habilidades auditivas mais complexas e de linguagem falada. A literatura especializada evidenciou a existência de uma forte correlação entre o desenvolvimento da função auditiva e o período da cirurgia do IC, sendo o tempo de privação sensorial e a idade na implantação considerados como um dos principais preditores de êxito no processo da habilitação e reabilitação auditivas(5-9,26). Isto porque a idade constitui uma condição intrínseca à criança, que assegura o desenvolvimento normal do córtex auditivo, necessário para a aquisição das habilidades auditivas, que são pré-requisitos para o desenvolvimento da linguagem falada (5-9,26).
Neste estudo, partiu-se da premissa de que as habilidades de detecção, discriminação, reconhecimento e compreensão auditivas são adquiridas de forma gradual, podendo interpor-se, de acordo com a sua complexidade(18). A contribuição do presente estudo refere-se à necessidade de marcadores na prática clínica, uma vez que estes permitem aos profissionais envolvidos no processo de habilitação e reabilitação auditivas observar não só a sequência do desenvolvimento de tais habilidades, mas em que idades elas ocorrem, sinalizando quando há algum padrão desviante, o que é fundamental no processo terapêutico. Embora se conheça a sequência de desenvolvimento destas habilidades nas crianças com audição dentro dos padrões de normalidade, dados sistematizados em crianças com deficiência auditiva são mais escassos.
Nas Figuras 1 e 2, foi possível observar que, nos primeiros três meses de uso do IC, apenas três crianças realizaram a Prova 5, sendo que uma delas também foi capaz de realizar a Prova 6. Na análise minuciosa dos dados, constatou-se que uma destas crianças apresentou histórico de aquisição da perda auditiva pouco antes de completar três anos de idade, ou seja, não estava em privação sensorial nos primeiros dois anos de vida, considerados fundamentais no processo de desenvolvimento da criança. Complementarmente, duas crianças utilizavam o AASI efetivamente e com benefícios satisfatórios antes de realizar a implantação nos primeiros 24 meses. Certamente, o fato de estas crianças não estarem em total privação sensorial auditiva nos dois anos antes da implantação assegurou a realização das Provas 5 e 6 do GASP, que exigem algum domínio de vocabulário.
No segundo retorno, com a idade auditiva de aproximadamente seis meses, o número de crianças que conseguiu realizar as Provas 5 e 6 ainda foi incipiente e, somente a partir de 11±1 meses de idade auditiva (terceiro retorno), as crianças manifestaram mais habilidade para conseguir realizar a Prova 5, ainda que isto não tenha ocorrido para a maioria (n=46, Tabela 1). No que se refere às habilidades auditivas da criança com audição típica voltadas à aquisição da linguagem oral, desde o nascimento, as crianças processam e armazenam os repertórios linguísticos aos quais têm acesso por meio da via auditiva durante as diversas interações comunicativas com seus pais, cuidadores e outros. Por volta dos nove meses de idade, as crianças demonstram claramente, por meio de comportamentos motores não verbais, as habilidades de linguagem receptiva, uma vez que são capazes de reconhecer e executar os atos motores correspondentes aos comandos verbais simples, do tipo “dá tchau”, “joga beijo”, “bate palmas”.(27) A partir dos 12 meses de idade, conseguem reconhecer o próprio nome, partes do corpo e vocabulário do seu cotidiano e, dos 18 aos 24 meses, conseguem apontar figuras ou objetos nomeados(27). Desta forma, neste estudo, considerando-se a idade auditiva e não a cronológica, foi, a partir dos 11±1, que as crianças conseguiram já demonstrar alguma habilidade de linguagem receptiva por meio da via auditiva apontando figuras correspondentes a um vocábulo (Prova 5), acompanhando o padrão de normalidade para tal habilidade. Assim, o que se observa é maior variabilidade dos resultados no primeiro ano de uso do implante coclear e, após um ano de idade auditiva, a curva de evolução das respostas é crescente e com maior regularidade, conforme mostra a Figura 1.
Ainda que no sexto retorno a maioria das crianças tenha desenvolvido a habilidade de reconhecimento em conjunto fechado na idade auditiva de 30±3 meses, com mediana e Q75 de 100% e Q25 de 83,33%, o marcador clínico para considerar esta habilidade estabelecida foi a idade auditiva de 41±4 meses, na qual observa-se o efeito teto, com exceção das crianças desviantes.
No que se refere à compreensão auditiva, o desenvolvimento desta habilidade foi crescente ao longo do tempo de uso do IC, com maior variabilidade nos 12 primeiros meses de idade auditiva, similarmente à habilidade de reconhecimento auditivo. Este resultado demonstra o desenvolvimento gradativo das habilidades auditivas em acordo com os níveis de complexidade propostos por Erber(18). O marcador clínico da compreensão auditiva foi considerado a idade auditiva de 53±4 meses, com mediana e Q75 em 100%, e Q25 em 70%. É natural que o marcador clínico desta habilidade seja em idade auditiva mais avançada, uma vez que a compreensão é a evolução da habilidade de reconhecimento auditivo.
A Figura 2 mostra a curva de evolução da compreensão auditiva, que, embora tenha a mesma configuração crescente da curva de reconhecimento auditivo, não atingiu o efeito teto com escore de 100% nas três medidas analisadas no último retorno estudado (68±6 meses de idade auditiva), pois no Q25 o escore foi de 80%, e o escore de 100% foi alcançado somente na mediana e no Q75.
A literatura relata que as crianças com audição normal iniciam a habilidade de compreensão auditiva por volta dos 18 meses(27), sendo capazes de responder a perguntas simples relacionadas a um evento, recontar pequenas histórias, reproduzir músicas e rimas. Ainda que o marcador clínico para a compreensão auditiva esteja sendo proposto aos 53±4 meses, constatou-se que, aos 30±3 meses de idade auditiva, 75% das crianças estavam com escore acima de 50% e mediana de 70%. Considerando os dados apresentados anteriormente para a habilidade de reconhecimento, a idade auditiva de 30 meses, embora não seja o marcador clínico de habilidade já desenvolvida, considerada quando o escore atinge 100%, pode representar o tempo necessário para que as crianças tenham um salto qualitativo na evolução ascendente destas habilidades que antecede a sua solidificação. Estes achados e marcadores clínicos trazem, para a área da audiologia educacional, perspectivas mais assertivas para o planejamento terapêutico condizente com o perfil de evolução das crianças. Somado a isto, saber que os marcadores clínicos de desenvolvimento destas habilidades, para as crianças implantadas até os 36 meses de idade cronológica, encontram-se em 41±4 e em 53±4 meses de idade auditiva, reconhecimento e compreensão auditivas, respectivamente, e, projetando estas crianças na sua idade cronológica, a criança com idade mais avançada na cirurgia, ou seja, neste estudo, aquela que recebeu o IC aos 35 meses de idade, estará com 75±4 meses e com 87±4 meses, quando estas habilidades estiverem solidificadas. A relevância disto reside no fato de que, ao longo deste perfil evolutivo, a criança teve a possibilidade de adquirir a linguagem oral e chegar no período de alfabetização e ensino fundamental com maiores chances de linguagem oral receptiva e expressiva estabelecidas.
Ademais, a variabilidade dos resultados demonstra que o IC favorece satisfatoriamente muitas crianças com deficiência auditiva, porém os benefícios não são idênticos para todas. Como observado nas Figuras 1 e 2, para ambas as habilidades, algumas crianças apresentaram resultados desviantes. Evidências na literatura demonstraram que a variabilidade dos resultados pode ser associada a inúmeros fatores(4,28) e, apesar de a pesquisa apresentar rígidos critérios de exclusão quanto às variáveis que poderiam influenciar negativamente o benefício obtido com o IC, observa-se a variabilidade de respostas.
A avaliação da criança candidata ao IC é multifatorial e realizada por equipe interdisciplinar, e abrange aspectos psicossociais, audiológicos, clínicos, anatômicos, de acesso à terapia fonoaudiológica especializada, dentre outros. Por ser multifatorial, os resultados estão vulneráveis à adversidade de um ou de aspectos associados, o que pode levar aos resultados desviantes. Estes achados reforçam a necessidade da orientação precisa à família no momento da decisão pelo IC como método de intervenção auditiva, pois, apesar de este dispositivo eletrônico possibilitar o acesso auditivo aos sons da fala, há um número significativo de crianças que poderá não corresponder à expectativa da família quanto ao desenvolvimento da linguagem falada(4).
Mediante o exposto, considerar a idade auditiva e não a cronológica para a análise destas habilidades investigadas é fundamental, especialmente na orientação e no aconselhamento familiar, quando os pais anseiam por resultados imediatos, pois comparam suas crianças implantadas aos pares ouvintes. O descompasso entre a idade cronológica e a idade auditiva deve ser explicado aos pais, diminuindo a ansiedade por resultados instantâneos.
Enfatiza-se que os resultados encontrados na presente pesquisa poderão servir como marcadores clínicos de desenvolvimento das Provas 5 e 6 do GASP, contribuindo para o processo de habilitação e reabilitação das crianças usuárias de IC implantadas antes dos 36 meses, de modo a auxiliar na identificação das variáveis que influenciam positiva ou negativamente o desenvolvimento da criança (Apêndice A - Figura 1A e Apêndice B - Figura 2B).
Deve-se observar que a aplicação do GASP ocorreu no silêncio, o que impede a análise da percepção auditiva da fala em um contexto mais amplo e que represente fielmente as experiências auditivas diárias, que não estão isentas de ruído, o que pode ser considerado uma limitação do estudo. Desse modo, faz-se necessário considerar esta condição ao usar estes marcadores clínicos de desenvolvimento para as habilidades de reconhecimento e compreensão auditivas.
As crianças desenvolveram progressivamente as habilidades auditivas avaliadas ao longo dos primeiros cinco anos de uso do IC. Não houve correlação entre o desempenho auditivo e a idade de implantação para as crianças implantadas antes dos 36 meses de idade. Para as habilidades de reconhecimento e compreensão auditivas, o marcador clínico foi aos 41±4 e aos 53±4 meses de idade auditiva, respectivamente.
Espera-se, portanto, que, por volta dos 60 meses de uso do IC, as crianças implantadas durante o período sensível de plasticidade neuronal possam compreender a fala sem o auxílio da leitura orofacial, alcançando as habilidades auditivas mais complexas.
Ressalta-se que os resultados desviantes devem alertar os profissionais sobre a vulnerabilidade do desempenho auditivo em função de aspectos multifatoriais, reforçando o cuidado na orientação e no aconselhamento familiar.