versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol., ahead of print Epub 03-Abr-2020
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0237
A infecção pelo vírus da dengue (DENV) é uma doença febril causada por um dos quatro sorotipos do vírus em questão. O DENV pertence ao gênero Flavivirus e à família Flaviviridae. Seus sorotipos são chamados DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4. O vetor de transmissão do vírus é o mosquito Aedes aegypti. A infecção pode ser assintomática ou sintomática. Quando sintomática, manifesta amplo espectro clínico, variando de doença discreta a grave potencialmente fatal. A patologia é classificada em três síndromes: dengue, febre hemorrágica da dengue e síndrome do choque da dengue.1
A glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF) apresenta um padrão histológico de lesão caracterizado pela oclusão de uma única ou de um grupo de alças capilares glomerulares por material esclerótico e lesão podocitária.2 A GESF é dividida em formas primárias e secundárias, que podem ser induzidas por fármacos, herança familiar/genética ou associadas a infecção viral, além das mediadas por resposta adaptativa a um número reduzido de néfrons.
A variante colapsante da GESF é a forma mais agressiva,3 e está frequentemente associada a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana.4 Contudo, a GESF colapsante pode ser secundária a outras infecções virais, como por citomegalovírus,5 parvovírus B19,4 hepatites B e C,6,7 e vírus Epstein-Barr.8 Outras causas de GESF colapsante incluem tuberculose pulmonar, leishmaniose, doenças autoimunes (doença de Still do adulto, síndrome semelhante ao lúpus, doença mista do tecido conjuntivo), doenças malignas (mieloma múltiplo, síndrome hemofagocítica, leucemia monoblástica aguda) e exposição a fármacos e drogas (interferon alfa, beta ou gama, esteroides anabolizantes, pamidronato, heroína).5
Tendo em vista a escassez de dados sobre o elo entre GESF colapsante e infecção pelo vírus da dengue, descrevemos dois casos para ilustrar essa provável associação.
O presente estudo foi realizado de acordo com critérios éticos e está em conformidade com a Declaração de Helsinque. Consentimento informado foi colhido de ambos os pacientes.
Um homem de 27 anos chegou ao pronto-socorro com febre, mialgia, cefaleia, dor retro-orbital, artralgia e astenia. Ele não tinha doença crônica conhecida. Exames sorológicos revelaram trombocitopenia. O paciente foi diagnosticado com dengue clássica, sem sorologia para confirmação diagnóstica, e foi tratado com hidratação venosa e medicamentos sintomáticos.
Após duas semanas com a doença, o paciente evoluiu com edema progressivo associado a urina espumosa. Ele negou hematúria, disúria, noctúria ou redução da diurese. Os exames de sangue mostraram 8,0 mg/dL de creatinina, 158 mg/dL de ureia, 5,8 mg/dL de potássio, 2,7 mg/dL de albumina e dislipidemia significativa. Amostra de urina única revelou proteína 4+, cilindros granulares raros e relação proteína creatinina (RPC) de 7,1. O paciente foi diagnosticado com síndrome nefrótica (SN). Os resultados da triagem para HBV, HCV, CMV, EBV e HIV foram negativos. Os complementos C3 e C4 estavam dentro da normalidade. O fator antinuclear (FAN) foi reagente 1:80 (padrão citoplasmático fibrilar).
O paciente foi tratado com 1,0 g de metilprednisolona por três dias, seguido de prednisona 60 mg por dia e furosemida endovenosa. Houve melhora clínica e laboratorial, com perda ponderal de 5 kg e diminuição da creatinina sérica para 4,6 mg/dL. O paciente foi submetido a uma biópsia renal guiada por ultrassom.
A microscopia de luz mostrou um aumento na matriz mesangial com obliteração e colapso frequente de segmentos de tufos capilares glomerulares, associados a aderências capsulares fibrosas (sinéquias) e hiperplasia podocitária acentuada em quase todos os 16 glomérulos amostrados, constituindo esclerose segmentar com padrão colapsante (Figura 1). O espaço tubulointersticial estava aumentado por fibrose (10-20%), com atrofia tubular proporcional e discreto infiltrado inflamatório mononuclear. Havia túbulos irregularmente dilatados e preenchidos com cilindros hialinos, determinando aspecto microcístico. A imunofluorescência foi positiva para IgM e C3 com padrão granular e irregular (+++/3+), predominantemente no mesângio. Demais marcadores foram negativos.
Figura 1 Dilatação do espaço de Bowman com colapso glomerular e hiperplasia podocitária. Vários glomérulos exibindo glomerulopatia colapsante e dilatação tubular (A, B, C).
O exame por reação em cadeia da polimerase (PCR) para a detecção de vírus Flavivirus foi positiva para infecção por DENV no tecido renal. Infelizmente, a caracterização genética para APOL1 não foi realizada. O paciente evoluiu bem, a creatinina caiu para 2,0 mg/dL e a RPC diminuiu para 0,5. Atualmente, o paciente utiliza apenas bloqueadores do sistema renina-angiotensina-aldosterona.
Um homem de 32 anos foi internado com histórico de febre, mialgia, cefaleia e vômito por cinco dias. Sua história pregressa indicava SN na infância, hipotireoidismo e uso recente de esteroides androgênicos. Sinais de hipovolemia foram identificados ao exame físico. O paciente recebeu reposição volêmica vigorosa com soro fisiológico isotônico. Cinco dias mais tarde, desenvolveu anasarca e notou redução na diurese. Exames laboratoriais iniciais confirmaram diagnóstico de infecção por DENV, por detecção do antígeno não-estrutural 1 (NS1) do vírus da dengue e trombocitopenia (36.000/mcL). Testes adicionais indicaram insuficiência renal aguda (IRA) estágio 2, com creatinina sérica elevada para 2,7 mg/dL a partir de valor basal de 0,98 mg/dL e hipoalbuminemia (1,4 mg/dL). Urinálise mostrou proteinúria ++ e proteinúria 24 horas de 3,24 g. A triagem para HBV, HCV, CMV, EBV e HIV foi negativa. Testes imunológicos, incluindo anticorpo anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) e complementos (C3 e C4), foram negativos ou dentro da normalidade. Por conta do diagnóstico de SN, o paciente foi submetido a biópsia renal. Microscopia de luz mostrou que seis dos 13 glomérulos apresentavam esclerose segmentar com hiperplasia podocitária e colapso do tufo glomerular. Também foi observada lesão tubular com dilatação cística. Os túbulos estavam preenchidos com cilindros hialinos (Figura 2). Imunofluorescência mostrou traços de IgG, C3 e kappa, com distribuição mesangial segmentar granular. PCR para infecção por DENV foi positivo no tecido renal. Não foi realizada caracterização genética para APOL1. O diagnóstico final foi GESF colapsante secundária a infecção por DENV. O paciente evoluiu bem após receber o mesmo tratamento oferecido ao paciente descrito no Caso 1. A creatinina caiu para 1,9 mg/dL e a RPC diminuiu para 0,7.
A infecção clássica por DENV inicia-se como uma infecção febril aguda, que coincide com um curto período de viremia que se resolve no terceiro dia após o início dos sintomas.1,9 A maioria das manifestações clínicas ocorre quando os níveis virais são indetectáveis no sangue periférico. O ácido nucleico do DENV nas células mononucleares do sangue periférico também permanece indetectável durante o período de convalescença.9 Os tipos de lesão renal mais frequentemente associados a infecção por dengue são insuficiência renal aguda e glomerulopatias agudas, com relevante acometimento intersticial e tubular. Dados sobre achados patológicos crônicos de lesões glomerulares, epiteliais e podocitárias, bem como proteinúria nefrótica, são escassos.
Estudos sugerem uma relação entre as variantes genéticas G1 e G2 do gene APOL1 e doenças renais,10 especialmente GESF.11,12 APOL1 é um dos seis membros da família de genes APOL. É o único membro secretado da família e produzido sistêmica e localmente nos rins.13 O papel biológico da APOL1 no podócito permanece desconhecido, e a presença isolada de alelos de risco renal não é suficiente para induzir lesão renal.14 Em 2018, Araújo et al. descreveram 13 pacientes com diagnóstico de arbovírus (dengue ou zika) e GESF na biópsia renal. A variante colapsante foi identificada em 11 pacientes e DENV foi observado pela técnica de PCR em sete deles.15 Os autores postularam que a infecção pelo vírus da dengue atuaria como um segundo insulto na evolução da doença renal. Contudo, não foi encontrado vínculo entre infecção pelo vírus da dengue e predisposição genética do paciente. Os autores sugeriram que novos estudos são necessários para investigar fatores de risco genéticos na população brasileira.15 Relatos anteriores no Brasil não encontraram associação entre variantes de risco de alelos do APOL1 e GESF colapsante.16
Como citado anteriormente, GESF colapsante é comumente associada a infecção viral, mais frequentemente a infecção por HIV e PVB19.3 Há poucas descrições na literatura dessa variante associada a arbovírus, como o vírus da dengue.15 Os mecanismos pelos quais o DENV pode causar GESF não foram totalmente elucidados. Sabe-se que o principal fator patogênico que induz lesões com padrão de GESF é a lesão podocitária.17
Um estudo com camundongos geneticamente modificados expressando a variante G2 do gene APOL1 mostrou que camundongos com mutação apresentavam menor densidade podocitária,17 achado considerado fator de risco para doenças glomerulares.18 Beckerman et al. demonstraram que doença renal caracterizada por albuminúria, azotemia, glomeruloesclerose e fusão dos pedicelos é causada por expressão podocitária específica de variantes de risco renal.18 Modelos humanos experimentais mostraram que se a perda de densidade podocitária for maior que 40%, a doença glomerular se torna progressiva e irreversível, independentemente da causa, resultando em glomeruloesclerose.19 A expressão de genes virais nas células renais induz a proliferação e desdiferenciação podocitária, apoptose e fibrose.20 Nesse contexto, sugerimos que o DENV penetra os podócitos e inicia a GESF colapsante.
Os casos descritos no presente artigo apresentaram SN e perda de função renal. No caso 1, o paciente apresentava infecção clássica por dengue (febre, mialgia, cefaleia, dor retro-orbital, artralgia, trombocitopenia e desidratação). Ele desenvolveu SN e IRA duas semanas após o início da doença (creatinina 8,0 mg/dL; RPC: 7,1).
No caso 2, o paciente apresentou manifestação clínica mais discreta (febre, mialgia, cefaleia, vômitos e desidratação). Ele tinha histórico de SN na infância e a infecção por dengue pode ter deflagrado a recidiva. Ambos evoluíram com IRA e não recuperaram plenamente a função renal.
Os relatos de caso fornecem evidências de que o DENV pode infectar tecido renal e induzir GESF colapsante. Contudo, os mecanismos fisiopatológicos das infecções por arbovírus e suas complicações orgânicas específicas não foram elucidados. Devido à gravidade da infecção por DENV, é importante que os profissionais de saúde identifiquem casos semelhantes e instituam o tratamento em tempo hábil. Infecção por DENV deve ser considerada na etiologia da GESF colapsante em países com alta prevalência da doença. Mais estudos são necessários para avaliar o papel da infecção por DENV na patogênese da GESF colapsante.