versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
Braz. J. Nephrol. vol.42 no.1 São Paulo jan./mar. 2020 Epub 25-Fev-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0239
A nefropatia membranosa (NM) é causada pela deposição subepitelial de imunocomplexos. A NM é responsável por cerca de 20% das glomerulopatias primárias em adultos e afeta predominantemente homens entre 40 e 50 anos de idade.1 Os pacientes apresentam proteinúria, edema, hipoalbuminemia e hiperlipidemia, sendo a forma primária (75%) devida a depósitos de imunoglobulinas in situ contra o receptor da fosfolipase A2 (PLA2R) do antígeno podocitário. No estágio I da doença, os glomérulos encontram-se normais à microscopia de luz (ML) e o diagnóstico só é possível através de imunofluorescência (IF) e microscopia eletrônica de transmissão (MET), que evidenciam depósitos subepiteliais de IgG. O estágio II apresenta projeções da membrana basal glomerular (MBG) entre os depósitos, denominadas "espículas", melhor visualizadas por coloração de prata. Com a progressão da doença os depósitos são incorporados à MBG, o que resulta em um aspecto de "corrente" (estágio III), para serem posteriormente reabsorvidos, aumentando a espessura da MBG (estágio IV).2
A coexistência de NM com outras doenças renais já foi relatada,3-6 incluindo NM e GESF,7,8 com GESF em suas variantes celular9 e colapsante.10,11 Portanto, relatamos o caso de uma paciente com características morfológicas de duas entidades glomerulares primárias, NM e GESF.
Uma jovem branca de 17 anos investigada por proteinúria apresentou-se com edema de extremidades inferiores associado a episódios de urina espumosa e hipertensão arterial. A paciente referiu não fazer uso de medicamentos, ausência de artralgia, artrite, lesões cutâneas ou histórico familiar de nefropatia. Seus exames laboratoriais à internação exibiram os seguintes resultados: creatinina sérica 0,8 mg/dL; ureia 22 mg/dL; glicemia 82 mg/dL; colesterol total 460 mg/dL; colesterol LDL 340 mg/dL; triglicérides 243 mg/dL; e albumina sérica 2,59 g/dL. Sua proteinúria era de 4370 mg/24h e a urinálise mostrava 300 mg/dL de proteínas, 10.000 leucócitos/mL e 22.000 eritrócitos/mL. O fator reumatoide estava em 13 UI/mL e os componentes C3 e C4 estavam normais. As dosagens de FAN, anti-DNA e a sorologia para HIV, HCV, HBV e VDRL foram negativas. Após os exames, a paciente começou a usar 40 mg/dia de furosemida e 20 mg/dia de sinvastatina.
A paciente foi submetida a biópsia renal sem intercorrências, e foram realizados análises por meio da ML, IF e MET. Havia 23 glomérulos para análise por ML. Todos os glomérulos apresentavam alças capilares espessadas devido a depósitos epimembranosos (Figura 1A). Havia também irregularidades na membrana basal formando "espículas" em padrão global e difuso nos glomérulos (Figura 1B). Além disso, dez glomérulos apresentavam aumento da matriz mesangial com colapso de alças capilares em menos da metade de cada glomérulo, caracterizando esclerose segmentar; alguns apresentavam hipertrofia podocitária e descolamento de podócitos no espaço urinário, com glomérulo exibindo lesão de ponta (Figura 1C). Havia discreta fibrose intersticial e atrofia tubular. O compartimento vascular não apresentou achados dignos de nota.
Figura 1 Cortes histológicos de biópsia renal com diagnóstico morfológico de nefropatia membranosa (NM) concomitante a glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF). Microscopia de luz revela (A) espessamento das alças capilares por depósitos epimembranosos (HE); (B) lesão de ponta por esclerose segmentar, hipertrofia podocitária e destacamento de podócitos no espaço urinário (HE); (C) irregularidades na membrana basal glomerular formando "espículas" (PAMS). Imunofluorescência para (D) IgG, (E) IgG4 e (F) PLA2R em padrão acentuadamente positivo finamente granular, subepitelial, global e difuso. Microscopia eletrônica exibindo alça capilar com depósitos subepiteliais elétron-densos com formação de "espículas" na MBG (G) e apagamento dos de pedicelos com áreas com reabsorção de depósitos (F).
A IF revelou marcação positiva acentuada finamente granular global e difusa para IgG, IgG4 e PLA2R nos glomérulos (Fig.1D), bem como das cadeias leves Kappa e Lambda. C3 apresentou positividade segmentar granular discreta nos glomérulos e positividade segmentar na cápsula de Bowman. IgA, IgM, C1q e fibrinogênio foram negativos.
A MET revelou depósitos subepiteliais amorfos elétron-densos, com alguns depósitos separados uns do outros por espículas na membrana basal (Figura 1E), áreas de reabsorção de imunocomplexos e apagamento de pedicelos (Fig.1F). Não havia depósitos mesangiais, subendoteliais ou outros depósitos glomerulares.
Depois da confirmação do diagnóstico, o tratamento com inibidor da enzima conversora da angiotensina (IECA) foi iniciado e a paciente entrou em remissão espontânea por um ano. Após esse período houve aumento na proteinúria (5712 mg/24h), o que levou ao início do tratamento com ciclosporina. Devido a ausência de resposta por três meses, iniciou-se tratamento com ciclofosfamida alternada com prednisona, com melhora da proteinúria desde então.
O presente relato descreve o caso de uma paciente com síndrome nefrótica (SN), cuja biópsia renal revelou padrão morfológico de duas entidades distintas. As irregularidades da MBG observados na ML, os depósitos de IgG e PLA2R vistos na IF e os depósitos subepiteliais elétron-densos identificados na MET, são característicos da nefropatia membranosa estágio II.2 Além disso, os achados de glomeruloesclerose segmentar e focal por ML, a hipertrofia podocitária, as lesões de ponta e o apagamento dos pedicelos visualizados MET, caracterizam a podocitopatia por GESF.12 Não houve evidência de doenças secundárias.
NM e GESF são importantes causas de SN em adultos, sendo a NM responsável por 20% e a GESF por 40% dos casos. A patogênese da NM envolve a formação de imunocomplexos na região subepitelial. A NM é considerada uma doença autoimune limitada ao rim, pois a formação de imunocomplexos se deve à ligação da imunoglobulina ao antígeno podocitário PLA2R in situ, que leva à ativação do sistema do complemento, causando lesão podocitária e consequentemente SN e insuficiência renal.13 A GESF é uma podocitopatia na qual a lesão glomerular é causada por alterações intrínsecas e/ou extrínsecas nos podócitos, que levam a apagamento dos pedicelos e esclerose.12
A NM tem um curso clínico amplamente variável, pois pode haver pacientes com remissão espontânea da proteinúria, proteinúria persistente ou progressão para insuficiência renal.1 A glomeruloesclerose é um achado comum na NM, e pacientes com esse achado geralmente apresentam pressão arterial mais elevada, proteinúria de duração mais longa, hematúria persistente e níveis mais altos de creatinina em relação aos pacientes sem glomeruloesclerose. Além disso, observa-se acentuada fibrose intersticial e atrofia tubular e presença de aterosclerose, indicando pior prognóstico para esses pacientes, o que provavelmente representa uma evolução da NM para a cronicidade. A maioria desses pacientes tem NM em estágios mais avançados, como III e IV, uma vez que a glomeruloesclerose pode se dever a lesões podocitárias em função da própria progressão da doença, gerando alterações ativas e degenerativas nessas células e levando à aderência ao epitélio parietal e ao desenvolvimento de esclerose.14,15
Embora a glomeruloesclerose na NM possa estar relacionada à progressão natural da doença, a esclerose nesse caso provavelmente não está relacionada ao dano epitelial causado pela progressão da doença para estágios avançados, mas provavelmente representa uma característica morfológica da GESF como doença glomerular primária. Portanto, esses pacientes provavelmente têm GESF primária e NM primária como duas doenças sobreponentes, pois apresentam esclerose segmentar focalmente na forma de lesões de ponta, glomérulos com hipertrofia podocitária e podócitos destacados no espaço urinário, que sugerem fortemente esclerose segmentar por podocitopatia.16 Comparativamente, a esclerose segmentar devida a processo cicatricial geralmente se apresenta como esclerose com áreas hipocelulares e aderência à cápsula de Bowman.
Este fato é corroborado pela literatura, que mostra que cerca de 78% dos pacientes com GESF acompanhada por NM apresentam esclerose segmentar acompanhada por podócitos hipertróficos, além de hipertensão, hematúria e proteinúria elevada em comparação a pacientes com NM sem esclerose.17
O caso de uma jovem com idade semelhante à da nossa paciente, em quem se observou esclerose segmentar acompanhada de hipertrofia podocitária, deposição de IgG finamente granular e apagamento de pedicelos, sugere a concomitância das duas entidades.9
Nossa paciente apresentou um perfil de imunomarcação por anticorpos compatível com NM primária, uma vez que deposição de PLA2R e IgG4 foi identificada na biópsia. Foi recentemente observado que pacientes com NM concomitantemente a GESF apresentam perfil clínico e níveis de autoanticorpos compatíveis com NM primária. Cerca de 80% dos pacientes com NM-GESF apresentam PLA2R circulante, semelhantemente a indivíduos com NM isolada. Em pacientes com GESF apenas, a triagem para PLA2R foi negativa. Da mesma forma, 75% dos pacientes com lesões combinadas e 79% dos pacientes com NM apresentaram expressão glomerular positiva para PLA2R. Além disso, os pacientes que apresentaram NM com ou sem esclerose tiveram deposição glomerular de IgG4 em comparação aos pacientes com GESF.18
No tocante à evolução clínica da paciente, após um ano ela entrou em remissão espontânea. Em seguida, a doença progrediu para proteinúria basal de 2655 mg/24h, o que se mantém até o presente momento. Foi relatado que a presença de glomeruloesclerose na NM está associada a pior prognóstico.19 Após seguimento de três anos, 64 pacientes com lesões combinadas apresentaram evolução pior do que pacientes apenas com NM, sem relação com os estágios mais avançados da NM.20 Isso indica que a ocorrência das duas doenças sobrepostas pode predizer o curso clínico dos pacientes com NM independentemente do estadiamento.
Tendo em vista os nossos achados e as descrições presentes na literatura, concluímos que GESF e NM podem se sobrepor, embora o mecanismo de concomitância não seja conhecido. Lesão glomerular inicial pode predispor o surgimento de uma doença mediada por imunocomplexos devido à lesão da barreira de filtração glomerular.13 Assim, a lesão podocitária na GESF pode levar à formação de imunocomplexos subepiteliais por exposição a antígenos locais, como observado em um paciente no qual, após sete anos de diagnóstico de GESF, NM foi identificada em uma segunda biópsia8, indicando que a lesão por GESF pode ter levado ao desenvolvimento de NM. Além disso, as lesões por NM podem levar ao surgimento de GESF, pois os depósitos subepiteliais podem dificultar a aderência dos podócitos à MBG através da integrina α3β1, levando à perda de podócitos. Áreas desnudadas da MBG favorecem a aderência dessas regiões ao epitélio parietal com formação de sinéquias, obliteração capilar e posterior esclerose, desenvolvendo assim a glomeruloesclerose segmentar.15
Alguns casos de NM apresentam glomeruloesclerose segmentar e focal tipicamente associada a progressão da doença. No entanto, relatamos o caso de uma paciente que parecia ter GESF e NM, ambas primárias, enquanto as características morfológicas da biópsia e a evolução clínica sugeriam fortemente a concomitância das duas doenças glomerulares primárias. Contudo, os mecanismos de lesão nesses casos ainda estão cercados por incertezas. Assim, mais estudos são necessários para elucidar a sobreposição dessas glomerulopatias primárias.