Compartilhar

Glomerulonefrite rapidamente progressiva associada a ANCA em uma criança com acometimento renal isolado

Glomerulonefrite rapidamente progressiva associada a ANCA em uma criança com acometimento renal isolado

Autores:

Mehtap Ezel Çelakıl,
Burcu Bozkaya Yücel,
Umay Kiraz Özod,
Kenan Bek

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.41 no.2 São Paulo abr./jun. 2019 Epub 06-Set-2018

http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0062

INTRODUÇÃO

A glomerulonefrite pauci-imune é mais comum em adultos do que em crianças e está associada à positividade do ANCA em 80% dos pacientes. A positividade do ANCA também comumente acompanha vasculites de pequenos vasos, como granulomatose com poliangiite, poliarterite nodosa microscópica (PAN) e síndrome de Churg-Strauss.1 A GN Pauci-imunológica é um dos padrões habituais de envolvimento renal nessas síndromes vasculíticas. No entanto, a positividade do ANCA nem sempre desempenha um papel na etiologia e nem sempre é um marcador de diagnóstico preciso. Em um número limitado de casos, o ANCA é negativo e o envolvimento renal é isolado. Há alguns relatos de GN rapidamente progressiva induzida por drogas, secundária à penicilamina, propiltiouracil e hidralazina.2

Devido à natureza rara e urgente da patologia, estudos randomizados controlados não são viáveis e os relatos de caso são a principal fonte de evidências para o tratamento de crianças com GN renal isolada associada a ANCA. Aqui, relatamos um caso pediátrico que respondeu bem ao tratamento imunossupressor inicial, apesar da histopatologia relativamente grave.

RELATO DE CASO

Uma menina de 7 anos apresentou mal-estar. Ela estava anêmica com aumento do nível de creatinina. Não havia história de artrite, artralgia, infecção, uso de drogas ou sintomas sistêmicos associados. Suas histórias médicas e familiares não eram dignas de nota. Os pais não eram parentes. Ao exame físico, seu peso era de 27 kg (percentil 50) e a altura de 135 cm (percentil 50). A temperatura corporal estava em de 36° C, pulso 75/minuto, frequência respiratória 26/minuto e pressão arterial de 106/77 mmHg (<90 p). Exames laboratoriais revelaram BUN: 27 mg/dL, creatinina: 1,19 mg/dL, TFG (segundo a fórmula de Schwartz): 59 mL/min/1,73m2, Na: 141 mEq/L, K: 5,5 mEq/L, ácido úrico: 5,65 mg/dL, albumina: 3,26 g/dL, colesterol: 162 mg/dL, triglicérides: 161 mg/dL e leucócitos: 7324/mm3. Esfregaço de sangue periférico mostrou dominância normocítica e normocrômica, e ausência de sinais de hemólise. A densidade do exame de urina foi 1018, pH 6, proteína 2+, sangue 3+ e abundância de eritrócitos dismórficos na avaliação microscópica.

A excreção de proteína na urina de 24 horas foi de 71 mg/m2/h. Os testes sorológicos revelaram C3: 183 mg/dL, C4: 40,8 mg/dL, ASO: 104, ANA (-), antiDNA (-), ANCA 4+, HbsAg (-), AntiHbs (+), anti-HCV (-). A ultrassonografia renal revelou espessura do rim e do parênquima de tamanho normal, com aumento da ecogenicidade bilateral do grau 1-2. Ecocardiografia e exame oftalmológico foram normais. A biópsia renal revelou GNRP pauci-imune com 12 crescentes celulares, 4 fibrocelulares e 4 globalmente escleróticos (20/25; 80%) de 25 glomérulos. Atrofia tubular e inflamação intersticial com infiltração predominantemente linfocitária foram observadas. Vasos e áreas perivasculares estavam normais (Figura 1). A microscopia de imunofluorescência não mostrou depósito imunológico significativo. Quanto ao tratamento, a paciente recebeu três pulsos de metilprednisolona (30 mg/kg) e ciclofosfamida (CYC) 2 mg/kg/dia por 3 meses com prednisona oral 1 mg/kg/dia. No mês seguinte, a remissão foi alcançada com creatinina sérica normal, e foi de 0,65 mg/dL no 3º mês de seguimento (Figura 2). O título sérico de p-ANCA diminuiu de 4+ para 1+. Então, a prednisona oral foi reduzida para 10 mg/dia. No seguimento clínico, a paciente continua em remissão.

Figura 1 Crescente celular com coloração de hematoxilina e eosina (x400). 

Figura 2 Valores de creatinina no seguimento. 

DISCUSSÃO

A GN rapidamente progressiva (GNRP) é uma das formas mais severas de GN. A alteração dos níveis de hematúria e proteinúria, juntamente com a deterioração súbita das funções renais, são os principais sinais clínicos. O envolvimento extrarenal, como sintomas gastrointestinais e pulmonares, é comumente encontrado.3,4 O padrão histopatológico típico é a formação de crescentes nos glomérulos através do envolvimento dos capilares glomerulares. Com base nos achados da imunofluorescência, a GNRP é classificada em três subgrupos: GN com anticorpo anti-glomerular da membrana basal, GN mediada pelo complexo imune (nefrite lúpica, nefrite por púrpura de Henoch-Schönlein, nefropatia por IgA) e GN rapidamente progressiva pauci-imune.5

A GNRP pauci-imune, uma emergência renal com lesão renal aguda, é relativamente rara em crianças em comparação com pacientes adultos. Yin e cols.6 relataram apenas 10 casos pediátricos de 1579 séries de biópsias renais em 23 anos. Em diferentes estudos pediátricos, a idade média na apresentação foi relatada variando entre 11 a 12,27 anos, enquanto o paciente mais jovem tinha 3 anos de idade.1,3,4 O prognóstico geral da condição é ruim. Dewan e seus colegas relataram a progressão para doença renal terminal (DRT) em 13 de 22 pacientes (59%) com GNRP. No mesmo estudo, apenas 1 paciente sofria de sintomas pulmonares.4 Devido ao desfecho desfavorável da doença, o diagnóstico imediato e o início precoce do tratamento são cruciais, especialmente em pacientes pediátricos. No entanto, devido à natureza rara e urgente da condição, a maioria das evidências para o tratamento clínico vem de relatos de casos ou séries de casos, ao invés de ensaios controlados randomizados. Quanto aos marcadores prognósticos, a alta creatinina sérica à admissão foi relatada como fator de mau prognóstico tanto para crianças quanto para adultos.7,8

Em nossa paciente, foi detectado aumento moderado da creatinina sérica, apesar da histologia renal relativamente grave, com quantidade significativa de formação de crescentes (80%). Essa discrepância entre a gravidade da lesão renal aguda e a morfologia renal, juntamente com o desfecho favorável inicial de nossa paciente, foi surpreendente para nós. No entanto, ainda não estamos muito otimistas para com as consequências a longo prazo do acometimento renal. Há pacientes que relataram ter diagnóstico e tratamento precoces por programas de triagem de urina na escola em alguns países.2 Na literatura há muito poucos pacientes com acometimento renal isolado e positividade para ANCA. Tem sido relatado que a maioria dos pacientes com envolvimento renal isolado apresentava sorologia ANCA negativa com melhores desfechos clínicos.9 Em um pequeno número de relatos de casos com envolvimento renal isolado, os sintomas sistêmicos mostraram desenvolver-se após um período médio de 6 anos a partir de o início da doença.7,10 O mesmo estudo concluiu que o envolvimento multissistêmico e o mau prognóstico dos pacientes diagnosticados durante a vida adulta foram decorrentes do diagnóstico tardio. Dada a baixa taxa de remissão e frequentes recidivas na população adulta, a necessidade de tratamento agressivo nesses pacientes é clara.10,11 Os atuais protocolos de tratamento incluem medicamentos potentes com reações adversas graves, como altas doses de corticosteroides, ciclofosfamida, rituximabe e plasmaférese.12,13 Embora o nível de creatinina da nossa paciente não fosse muito alto, os resultados da biópsia revelaram a formação de difusa lua crescente com esclerose. Dado o fato de que a gravidade da histopatologia renal é um bom preditor para o acometimento sistêmico futuro, decidimos conduzir nossa terapia a um protocolo imunossupressor mais agressivo, mesmo que a remissão tenha sido alcançada em nossa paciente.

Com este relato de caso, procuramos enfatizar que a biópsia renal é importante no manejo da GN pauci-imune pediátrica associada à ANCA, especialmente em pacientes com achados renais discretos ou subclínicos. A ausência de achados sistêmicos que não o acometimento renal pode levar a dificuldades diagnósticas. Portanto, um alto índice de suspeita é crítico para o pronto diagnóstico e tratamento dessa condição, já que é uma emergência renal relativamente rara em crianças.

REFERÊNCIAS

1 Khalighi MA, Wang S, Henriksen KJ, Bock M, Keswani M, Chang A, et al. Pauci-immune glomerulonephritis in children: a clinicopathologic study of 21 patients. Pediatr Nephrol 2015;30:953-9.
2 Kanno S, Kawasaki Y, Maeda R, Miyazaki K, Ono A, Suzuki Y, et al. An 11-year-old girl with antineutrophil cytoplasmic antibody-associated glomerulonephritis identified by a school urinary screening program. CEN Case Rep 2014;3:232-6.
3 Hattori M, Kurayama H, Koitabashi Y; Japanese Society for Pediatric Nephrology. Antineutrophil cytoplasmic autoantibody-associated glomerulonephritis in children. J Am Soc Nephrol 2001;12:1493-500.
4 Dewan D, Gulati S, Sharma R, Prasad N, Jain M, Gupta A, et al. Clinical spectrum and outcome of crescentic glomerulonephritis in children in developing countries. Pediatr Nephrol 2008;23:389-94.
5 Kouri AM, Andreoli SP. Clinical presentation and outcome of pediatric ANCA-associated glomerulonephritis. Pediatr Nephrol 2017;32:449-55.
6 Yin XL, Zou MS, Zhang Y, Wang J, Liu TL, Tang JH, et al. Twenty-three-year review of disease patterns from renal biopsies: an experience from a pediatric renal center. J Nephrol 2013;26:699-707.
7 Ellis EN, Wood EG, Berry P. Spectrum of disease associated with anti-neutrophil cytoplasmic autoantibodies in pediatric patients. J Pediatr 1995;126:40-3.
8 Baldree LA, Gaber LW, McKay CP. Anti-neutrophil cytoplasmic autoantibodies in a child with pauci-immune necrotizing and crescentic glomerulonephritis. Pediatr Nephrol 1991;5:296-9.
9 Shimizu M, Sekiguchi T, Kishi N, Goji A, Takahashi T, Kozan H, et al. A case of a 6-year-old girl with anti-neutrophil cytoplasmic autoantibody-negative pauci-immune crescentic glomerulonephritis. Clin Exp Nephrol 2011;15:596-601.
10 Moroni G, Ponticelli C. Rapidly progressive crescentic glomerulonephritis: Early treatment is a must. Autoimmun Rev 2014;13:723-9.
11 Perkowska-Ptasinska A, Bartczak A, Wagrowska-Danilewicz M, Halon A, Okon K, Wozniak A, et al; Polish Society of Nephrology. Clinicopathologic correlations of renal pathology in the adult population of Poland. Nephrol Dial Transplant 2017;32:ii209-ii218.
12 Yu F, Huang JP, Zou WZ, Zhao MH. The clinical features of anti-neutrophil cytoplasmic antibody-associated systemic vasculitis in Chinese children. Pediatr Nephrol 2006;21:497-502.
13 Hogan SL, Nachman PH, Wilkman AS, Jennette JC, Falk RJ. Prognostic markers in patients with antineutrophil cytoplasmic autoantibody-associated microscopic polyangiitis and glomerulonephritis. J Am Soc Nephrol 1996;7:23-32.