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Glomerulopatia esquistossomótica com depósitos mesangiais de IgA: relato de caso

Glomerulopatia esquistossomótica com depósitos mesangiais de IgA: relato de caso

Autores:

Fabiana Oliveira Gonçalves,
Tânia Maria de Souza Fontes,
Ana Paula Pereira Santana Lemes Canuto

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.39 no.1 São Paulo jan./mar. 2017

http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170015

Introdução

A esquistossomose é uma das parasitoses infectocontagiosas que mais afetam o homem.1,2 Causada por vermes do gênero Schistosoma, tendo como hospedeiros intermediários caramujos de água doce do gênero Biomphalaria - que pode evoluir desde formas clínicas assintomáticas até extremamente graves.1,3 Estima-se que 3,5% da população mundial (cerca de 200 milhões de pessoas) é infectada por três principais espécies de Schistosoma (mansoni, haematobium e japonicum).2

O acometimento renal é uma forma grave da esquistossomose e ocorre em 10% a 15% dos pacientes com a forma hepatoesplênica, sendo a síndrome nefrótica (SN) a apresentação clínica mais comum. Trata-se de uma complicação causada por deposição de imunocomplexos (IC),4-6 sendo raro no contexto brasileiro apresentar-se com depósitos mesangiais de imunoglobulina A (IgA).3

Quando instalada a lesão renal, o quadro histológico predominante é a glomerulonefrite membranoproliferativa (GNMP) (mesangiocapilar), com acentuação lobular. O segundo tipo histológico mais encontrado é a glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF).1,4,5,7

O prognóstico da lesão renal causada pela esquistossomose não se modifica com os esquemas terapêuticos propostos (esquistossomicidas isoladamente ou associados a imunossupressores). O dano renal mostra-se progressivo e a doença evolui para a doença renal crônica terminal (DRCT).1,4,6

Apresentação do caso

Paciente de 36 anos acompanhada pela gastroenterologia devido à esquistossomose hepatoesplênica, tendo sido submetida à esplenectomia em 2007. Há cerca de 6 meses, vinha apresentando proteinúria em exame de rotina. No início do ano de 2015 apresentou quadro clássico de SN (proteinúria > 3,5 g/24h, hipoalbuminemia, dislipidemia e edema) associada à hipertensão arterial sistêmica (HAS), sem hematúria, sem alteração da função renal (Quadro 1).

Quadro 1 Evolução dos exames no período de agosto de 2013 a novembro de 2015 

Exames/Datas Valores de referência 16.08.13 20.03.14 27.03.15 24.08.15 28.09.15 14.10.15 23.11.15
Ureia (mg/dl) 10,0 - 50,0 24,0 22,0 16,0 18,0 22,0 29,0 15,0
Creatinina (mg/dl) 0,70 - 1,20 0,58 0,54 0,64 0,68 0,65 0,78 0,74
Transaminase Glutâmico Pirúvica (TGP) (U/L) 0 - 31 100 75 57 84 129 74
Transaminase Glutâmico Oxalacética (TGO)(U/L) 0 - 32 68 56 49 111 141 106
Triglicerídeos (mg/dl) 65 - 150 105 150 157 120 117
Colesterol total (mg/dl) < 200 308 472 535 302 254 319
Albumina 3,5 - 5,0 g/dL 2,9 2,4
Pesquisa de elementos anormais/sedimento na urina
Proteínas Negativo Positivo(++++) Positivo(+++) Positivo(+++) Positivo(+++) Positivo(++)
Hemoglobina Ausente Ausente Ausente Ausente Ausente Ausente
Hemácias /campo 0 0 0 3 Raras
Leucócitos /campo 2 8 4 10 3
Proteinúria e microalbuminúria
Volume urinário/ 24h mL 2000 2000 1960 1900
Microalbuminúria (mg/24h) 0,0 - 30,0 3620,8 3048,2 2039,5
Proteinúria de 24h (mg/24h) 30 - 140 4372 2888 2760 1766

Fonte: Resultados laboratoriais do Hospital de Base do Distrito Federal.

Paciente apresenta exame físico normal, sem comorbidades e sem antecedentes familiares de DRCT.

Exames complementares mostram elevação de aminotransferases, normocomplementemia, fator antinúcleo não reagente, sorologias virais negativas (hepatite B, hepatite C e HIV), hipertensão portal, estato-hepatite não alcoólica (EHNA) com fibrose avançada e confirmação por Fibroscan, úlcera duodenal, varizes de esôfago.

Instituída a terapia com losartana e atenolol, paciente evoluiu com redução importante de proteinúria para níveis subnefróticos (indicada biópsia renal), resultado mostrado nas Figuras 1 a 3.

Fonte: MEC Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) - Serviço de Nefropatologia - Disciplina de Patologia Geral - Uberaba, MG.

Figura 1 Microscopia de luz (ML). 

Fonte: MEC Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) - Serviço de Nefropatologia - Disciplina de Patologia Geral - Uberaba, MG.

Figura 2 Imunofluorescência (IF). 

Fonte: MEC Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) - Serviço de Nefropatologia - Disciplina de Patologia Geral - Uberaba, MG. Disciplina de Patologia Geral. http://www.uftm.edu.br/patge/ Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Figura 3 Microscopia eletrônica. 

Concluiu-se que a presença de depósitos de IgA, sendo mais intensos que imunoglobulina G (IgG), acompanhados de C1q e C3, poderia corresponder à nefropatia por IgA secundária, com 4/13 glomérulos esclerosados, arterioloesclerose hialina discreta e espessamento fibroelástico intimal moderado em artéria interlobular. Outra possibilidade, como há depósitos de C1q, seria lúpus eritematoso sistêmico (LES), o que foi descartado, pois a paciente não preenchia outros critérios clínicos e/ou sorológicos. Há também a descrição de atrofia tubular focal discreta associada à fibrose intersticial leve e presença também de fibrose subintimal leve em artéria de pequeno calibre.

Com esse padrão de lesão apresentado nas biópsias (ML, IF e ME), pode-se inferir que o caso trata-se de uma glomerulopatia esquistossomótica com depósitos mesangiais de IgA.

Discussão

A glomerulopatia por schistosoma tem seis classes, segundo Barsoum8 e Johnson:9 Classe I - glomerulonefrite proliferativa mesangial, microhematúria e proteinúria subnefrótica; Classe II - glomerulonefrite exsudativa difusa, SN aguda e toxemia; Classe III - glomerulonefrite membranoproliferativa, hepatoesplenomegalia, SN, HAS e falha renal; Classe IV - Glomeruloesclerose segmentar e focal, hepatoesplenomegalia, SN, HAS, falha renal; Classe V - amiloidose, hepatoesplenomegalia, SN, HAS, falha renal; Classe VI - glomerulonefrite crioglobulinêmica (associada ao vírus da hepatite C), hepatoesplenomegalia, SN, púrpura, vasculite, artrite, HAS, falha renal. Conforme a biópsia da cliente, ela apresenta histologia de classe I e sintomatologia de classe III.

Em estudo brasileiro realizado por Rodrigues et al.,2 em pacientes com S. mansoni, observou-se que 12,7% de 63 pacientes apresentavam acometimento glomerular, com presença de lesão mesangial em todas as amostras (depósitos eletrodensos em mesângio). Na avaliação da imunofluorescência, houve 85% com depósitos de imunoglobulinas, IgG em 50%, imunoglobulina M (IgM) em 63% e IgA em 38%. A fração de Complemento 3 (C3) foi identificada em 75% e C1q em duas amostras.

Em todos os casos foram observados depósitos de IgA nos túbulos renais, ao redor dos cilindros, e Kappa e Lambda em 75%. Depósitos eletrodensos foram encontrados nas estruturas glomerulares de três pacientes, todos com GNMP tipo 1. Em síntese, a amostra demonstrou: quatro pacientes com GNMP tipo 1; um paciente com esclerose segmentar com mesangioproliferativa e depósitos de C3; um paciente com depósitos mesangiais de IgA, C1q e C3 e um paciente com esclerose segmentar e mesangial com depósitos de IgM, C3 e C1q.2

A glomerulopatia esquistossomótica ocorre em decorrência de infecção crônica por Schistosoma mansoni.1,6 Segundo é explanado pelo Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde,1 Dos-Santos et al.10 e Nussenzveig et al.,3 quando a lesão renal está instalada, o quadro histológico geralmente é a glomerulonefrite mesangiocapilar.

O segundo tipo de glomerulopatia mais encontrado nesses casos é a GESF, entretanto ainda não é bem elucidado a relação entre GESF e glomerulopatia por Schistosoma,3,8 e está mais relacionad a a negros.

Paciente apresentou C1q positivo, que segundo Gusmão et al.,11 tem sido fortemente associado ao envolvimento renal por LES, entretanto cliente não fechou critérios de LES conforme Sociedade Brasileira de Reumatologia.12

O diagnóstico histológico de nefropatia por IgA (NIgA) é direto, e é definido pela presença de depósitos imunes de IgA-dominante ou codominante dentro do glomérulo como mostrado pela imunohistoquímica e imunofluorescência.13,14 O produto da ativação da via clássica do complemento C1q não é tipicamente encontrado na NIgA.

Segundo a classificação de Oxford,13 a intensidade da imunopositividade por IgA deve ser mais do que traços e sua distribuição é caracteristicamente mesangial, com ou sem depósitos em alças capilares. IgG e IgM podem ser positivos, porém não em maior intensidade que IgA.

Segundo Barsoum et al.,15 aventa-se que IgA pode ser um mediador tardio da lesão glomerular nesses casos. A dominância de depósitos de IgA mesangial no contexto egípcio é comum, sugerindo a significante patogenicidade glomerular por IgA que requer um fator de comorbidade com uma exposição concomitante aos antígenos schistosomais.

Nos estudos de Brito et al.,7 somente um de seus casos, com GN membranosa, apresentou IgA (+), IgG (++), IgM (+) e C3 no glomérulo, o que, conforme Nussenzveig et al.,3 sugere que os depósitos de IgA em glomerulopatia esquistossomótica sejam raros no Brasil, por fatores geográficos, quando comparados aos achados de Barsoum et al.15

Pode-se considerar como fator de progressão da doença renal os depósitos glomerulares de IgA que têm sido observados em pacientes com hipertensão portal na forma hepatoesplênica da esquistossomose, sendo explicados pela disfunção na depuração das imunoglobulinas pelas células de Kupffer.14

A importância da IgA na patogênese desta nefropatia é desconhecida e são necessários estudos para redefinir a estrutura molecular dos depósitos glomerulares de IgA.14

Pacientes com o diagnóstico de NIgA são tratados com inibidor da enzima conversora de angiotensina (IECA) e/ou BRA, podendo haver associações, tornando-os mais efetivos, quando apresentam proteinúria ≥ 1 g/dia, sendo hipertensos ou não, com função renal normal e lesões histológicas leves.16,17 Como se apresentou o caso em questão, mostrando melhora progressiva da proteinúria.

Conclusão

Embora os parâmetros mundiais e nacionais apresentem a GNMP como sendo a principal lesão histológica na infecção por Schistosoma mansoni com comprometimento renal,3,8,18 o caso em questão apresenta histologia de uma GN esquistossomótica com depósitos mesangiais de IgA.

A importância da IgA na patogênese desta nefropatia ainda é desconhecida. O tratamento com BRA resultou em melhora da proteinúria, contribuindo para retardar a progressão para DRCT

A GN proliferativa mesangial é a forma mais precoce e mais frequente, seguida pela GNMP, favorecendo a hipótese do mesângio como alvo inicial. A apresentação clínica é variável, sendo a glomerulopatia assintomática em até 35% dos pacientes. Entretanto, como o diagnóstico é realizado tardiamente, SN, HAS, e hipocomplementemia são achados comuns.7,19

Conhecer as diversas apresentações histológicas da glomerulopatia esquistossomótica é necessária diante do parâmetro de frequência nacional.3,18

Pacientes com glomerulopatia esquistossomótica não apresentam melhora da progressão da doença com tratamento antiparasitário,8,10,20 entretanto, o tratamento com antiproteinúrico pode retardar a progressão da DRCT.8,21

REFERÊNCIAS

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